O HOMEM LEÃO (em prosa)

O HOMEM LEÃO (14 jul 11)

(Tradicional hindu, recontado por William Lagos.)

Segundo a tradição hinduísta, existiam dois tipos de gênios, primos-irmãos entre si, os Devas e os Asuras. Na realidade, como todo gênio, não seguiam os mesmos princípios éticos que regem os homens, não eram nem bons, nem maus, segundo a forma como o entendemos. Mas os Devas, em geral, vinham em socorro dos seres humanos quando estes lhes pediam seu auxílio, enquanto os Asuras não somente não os ajudavam, como lhes pregavam peças e brincadeiras de mau gosto, algumas vezes bastante perigosas e prejudiciais. E os Devas, então, interferiam em favor dos homens, frequentemente entrando em conflito com os Asuras por causa disso. Por esta razão, os Devas são tradicionalmente considerados como gênios bons, comparáveis aos anjos, enquanto os Asuras são tidos como gênios do mal e assemelhados aos demônios. Mas é claro que há exceções.

Entre estas exceções se encontrava um certo Asura, que atendia pelo nome complicado de Hyranyakashyapu ou, para facilitar a pronúncia, Hiranya Kashiapu ou ainda “Hiranya” para os íntimos... Este Asura desenvolvera a ambição de viver eternamente, um privilégio de que só gozam o próprio Brama, pai dos homens e dos deuses, Seu filho Vishnu e Shiva, o espírito conservador e preservador de todas as criaturas, (mahadeo, ele fez tudo!), a Santíssima Trindade do hinduísmo. Ora, os Devas e Asuras já haviam bebido o Amrita, o elixir da longa vida, mas não eram realmente imortais e muito menos invulneráveis.

Hiranya fora dotado de grande inteligência por Brama e concebeu o plano de obter suas boas graças através da demonstração da maior virtude, mantendo-se sempre a Seu lado e seguindo todos os Seus preceitos, um dos quais era o Moksha, a libertação de todos os desejos materiais, a fim de merecer unir-se a Brama em Seu Nirvana e finalmente libertar-se da Sansara, a roda das reencarnações. E assim, tornou-se extremamente virtuoso, meditando aos pés de Deus e afastando de si todas as tentações da vida material durante várias décadas, conforme o tempo que contam os homens, que aos olhos de Brama não chegam a constituir um só momento. Mas Brama sabia muito bem qual era a sua intenção, pois lê nos corações dos homens, dos gênios e de todas as criaturas e conhece todos os seus sentimentos e propensões.

Contudo, tanto fez Hiranya Kashiapu, tanto progrediu na senda da virtude e da abnegação, que finalmente Brama se decidiu a compensar seu esforço. Sabia que ele era um Asura e que lhe fora extremamente difícil contrariar sua natureza, o que lhe conferia ainda maior mérito. Por outra parte, havia uma centelha de possibilidade de que ele realmente tivesse alcançado a Moksha, a negação dos desejos e mesmo Vishnu e Shiva se sentiram inclinados a interceder por ele, já que o Asura conseguira convencer a si mesmo de que só desejava a sublimidade do Nirvana e estava sendo sincero dentro de seu próprio coração. Deste modo, para testar a sua sinceridade, Brama lhe transmitiu o pensamento de que estava disposto a lhe dar uma recompensa, que ele poderia pedir o que quisesse.

Ora, Hiranya Kashiapu até esquecera, em sua intensa busca da virtude, o motivo inicial que sua alma rude transformara em um lótus de inocência. Porém Deus o aguardou, em sua paciência, enquanto o gênio ponderava, no que para ele parecia uma longa espera, mas que para Brama não foi mais que uma fração de segundo. Mas considerou que o tempo passava muito mais lentamente para seu discípulo, ainda inserido em Maya, a ilusão das coisas materiais, apesar de todo o seu esforço.

Finalmente, depois de muito pensar, lá do fundo de sua alma emergiu a sua intenção primeira, a de conquistar a imortalidade por meio de uma intensa demonstração de sua devoção a Deus. Por um momento, vacilou, sopesando bem sua condição presente de paz e tranquilidade, mas sua natureza de Asura começou a se manifestar e, finalmente, o desejo cresceu dentro de sua alma. Relutou ainda por um momento, sabendo que só é digno do amor de Brama quem realmente se abstém de todo o desejo material, mas finalmente, deixou que o desejo o dominasse e perdeu assim toda a virtude que havia conquistado tão duramente, durante décadas de esforço. Se Brama não conhecesse tudo e se pudesse desapontar, este teria sido o momento, mas ele conhecia a natureza de todas as criaturas e vivia totalmente fora do tempo, de modo que já soubera desde sempre que Hiranya Kashiapu, a despeito de quanto fizera em contrário, acabaria por falhar neste seu teste final.

Então o Asura deixou que aquela ânsia o dominasse e pediu a Brama o que sempre desejara: que ele o tornasse imortal, para que pudesse viver sempre a seus pés... E quando afirmou isso, estava sendo sincero, porque sua alma ainda estava cheia de virtude. Deus soube disso também, mas o perdoou e lhe disse mansamente: “Meu filho, tudo o que nasce deve morrer, para que seja mantido o equilíbrio do mundo. Pede-me qualquer outra coisa que te darei, menos essa.” “Mas meu pai,” retorquiu Hiranya Kashiapu, “não existe qualquer coisa igual a essa... Posso então, para compensar o que não posso ter, pedir-te uma série de pequenos dons que, em seu conjunto, não serão grandes o bastante para se equiparar ao da imortalidade?”

Brama assentiu, sabendo o que Hiranya pretendia. Sua natureza de Asura se afirmava e, com sua grande argúcia animal, tentaria enganar ao próprio Deus... Mas ele sorriu e disse que atenderia a seus desejos... “Senhor, que eu não possa ser morto por qualquer criatura que tenhas criado, por ninguém nascido de mãe ou de pai e nem sequer por algum espírito que tenha nascido do fogo ou do vento. É pedir demais?” Mas Brama abanou a cabeça, sorriu e concedeu o que pedira. “É só isso que queres, meu filho?” Hiranya se animou e pediu outra vez:

“Meu pai, concede-me a graça de que não me possa matar qualquer ser nascido de ovo ou de semente, nem formado desde as pedras, a terra e a areia do chão, nem gerado pela espuma do mar ou os borrifos das ondas, nem surgido entre os vegetais, nem formado por qualquer tipo de magia!...” Ainda sorrindo, Brama lhe garantiu que tudo isso lhe daria. Hiranya insistiu: “Meu santo pai, perdoa o teu filho te pedir mais uma vez, porém concede-me a graça de que eu não possa morrer nem de noite e nem de dia, nem no mar e nem na terra, nem nos vulcões, nos ciclones, nas monções ou em qualquer outro fenômeno dos ares, que eu não possa perecer em qualquer parte da terra ou em qualquer cantinho do planeta, por menor que seja...” Brandamente, Deus lhe concedeu o vasto pedido.

Hiranya animou-se: “Perdoa, meu pai, mas permite que teu servo te fale ainda uma vez: que nenhum inimigo me possa matar no mar ou na terra, no ar ou embaixo da terra, que eu não possa ser ferido por qualquer arma de guerra, ferramenta ou outro utensílio fabricado pelos gênios ou pelos homens, nem pelo sopro do ar ou pela chama que salta do fogo, nem por qualquer doença, moléstia ou outro mal que afete os homens ou os gênios, os animais, os vegetais, os minerais da terra ou qualquer outra criatura, vivente ou não, cuja forma possa ser gerada por qualquer destes gêneros...” Mais uma vez, Deus assentiu e lhe concedeu o que pedia.

Hiranya acrescentou: “Meu pai, perdoa teu filho uma vez e que seja a derradeira, mas permite que eu não possa morrer de acidente, nem de qualquer desastre ou catástrofe natural, que jamais caia em qualquer armadilha, que não seja afetado por nenhum veneno... E que nem meu corpo, nem minha mente possam vir a provocar minha morte...” “Também isto te concedo,” disse o bom Brama. Então Hiranya se calou, porque não conseguia se lembrar de mais nada que pudesse lhe causar a morte, embora pensasse com a maior concentração possível.

Ao ver que se calava, disse-lhe Deus: “Eu te garanto todos os dons que me pediste. Mas agora, volta ao mundo natural e entre na lida que travam entre si as criaturas do bem e do mal, porque junto de mim não podes mais ficar... Estás carregado de desejos e não podes mais aspirar ao Nirvana. Volta a teu povo, os Asuras, a quem hás de dominar e lhes ensina a obediência a meus preceitos. Por difícil te pareça, esta tarefa que te designo será fácil para ti, se conservares os mesmos sentimentos que cultivaste até hoje.”

Hiranya despediu-se, humildemente, indo buscar as terras dos Asuras, de que se afastara há quase meio século, mal se lembrava do caminho que até lá conduzia. Mas enquanto caminhava, sua natureza inferior já começava a dominá-lo, lenta, mas seguramente e ele pensava: “Eu deveria ter pedido muito mais! Não me lembrei de pedir especificamente que nenhum homem me pudesse trucidar... Mas todos os homens têm mãe e pai, portanto, não me podem tocar. Porém ainda estou sujeito a Kali, a Morte!... Entretanto, também ela foi criada e não me poderá ferir. Mas e o Destino ou a Sorte? Ora, todos dois são feitos de vento e não me poderão fazer mal. Nem homem, nem gênio, nem qualquer outra criatura irá causar minha morte. Só estou sujeito ao tempo inconquistável, mas a velhice é provocada por meu corpo e o cansaço da vida por minha mente, lembrei-me de pedir que nem estes pudessem ocasionar o meu falecimento. Não, para todos os efeitos, eu sou imortal! Viverei tanto quanto o próprio Brama!”

Ao chegar nas terras dos Asuras, foi até sua antiga casa e descobriu que estava ocupada por seu filho mais velho, Praladha, que tinha agora muitos filhos e numerosos netos. Foi bem recebido, mas portou-se com humildade. “Fica com minha casa, meu filho, vou morar em uma caverna...” E realmente, foi montar residência em uma gruta escura. Mas logo no dia seguinte, Praladha foi pedir-lhe que viesse para casa. “Senhor meu pai,” ele disse, “sua ausência foi tão longa que todos pensamos que havia morrido. Meus irmãos repartiram entre si a herança e eu fiquei somente com a casa paterna... Tenho muitos filhos e netos numerosos, mas seu quarto está preparado. Terá de suportar meus descendentes, mas todos somos a sua família, por favor, volte comigo para o quarto que lhe preparei...”

Hiranya pretendeu que não queria, mas tanto Praladha insistiu, que reuniu os escassos pertences que recolhera e voltou com ele para sua antiga casa. Em seu quarto, encontrou sua velha esposa, que o recebeu com grande alegria. Mas o tempo lhe fora ingrato. Ele lembrava de uma mulher jovem e bela, fresca como as rosas e encontrava agora uma anciã fanada, alquebrada, murcha e sem energia. Mas sua virtude ainda permanecia nele e tratou-a com carinho, deitando-se com ela nessa noite e aquecendo-a com o calor de seu corpo ainda jovem. Não era assim que pretendia passar a imortalidade, mas insistiu consigo mesmo que deveria continuar a prática da virtude: nunca deixaria que sua natureza inferior de Asura o dominasse!

Mas a natureza grosseira de seu povo se manifestou claramente quando foi procurar os seus outros filhos, que o trataram com rudeza, pensando que ele voltara para reclamar a herança que haviam repartido. Além disso, viam que ele tinha o mesmo aspecto de cinquenta anos antes, enquanto eles, como toda a criatura vivente, haviam envelhecido e ficaram cheios de inveja e de ressentimento.

Pior ainda ocorreu ao encontrar os demais Asuras, que não o queriam reconhecer nem aceitar. Ao contrário, foram dizer ao rei que ele voltara para lhe tomar o trono e logo o monarca o mandou prender. Hiranya defendeu-se, dizendo que não tinha a menor intenção de derrubá-lo e se propôs a fazer-lhe um juramento de fidelidade. Mas juramentos não têm qualquer valor para os Asuras e o rei não confiou nele, duvidou que fosse realmente Hiranya Kashiapu e mandou chamar o carrasco para lhe cortar a cabeça. É claro que isso não poderia ser feito, mas ninguém sabia disso e Hiranya não quis abrir o jogo. Ao contrário, disse que, se era assim, desafiava o rei para um duelo. Era um direito que ele tinha e o rei não se poderia negar, senão perderia todo o prestígio entre seus súditos rebeldes e contenciosos.

Aceito o desafio, o rei revestiu-se de uma forte armadura que o protegia dos pés à cabeça, cingiu uma espada e pegou sua lança, atacando Hiranya totalmente desprotegido e sem lhe dar o menor aviso. Isso pode nos parecer desleal, mas estava perfeitamente de acordo com os costumes dos Asuras, a quem só interessava a vitória, não importando como fosse obtida. Mas como Hiranya era invulnerável, desviou-se facilmente dos golpes do rei e, quando este o acertava, não lhe provocava sequer um arranhão. Mas ele não lembrara de pedir a Brama para não sentir dores e os golpes o começaram a incomodar bastante. Decidiu-se a acabar logo com aquilo, atacou o rei com as mãos nuas, que não podiam ser feridas, derrubou-o no solo e pisou-lhe a garganta com o pé, até que o rei pediu quartel e publicamente lhe concedeu o cetro, a coroa e o trono. Em troca, Hiranya poupou-lhe a vida, mas o baniu do reino.

Tornado rei dos Asuras, surpreendidos demais por ver um gênio desarmado derrotar o rei que vencera a todos os seus adversários para assumir a liderança, foi aceito sem protestos. Pensou até em governar com justiça e sabedoria, para incutir naquele povo rude os preceitos de Brama, mas era uma raça difícil de controlar e logo os filhos do rei se ajuntaram, não para devolver a coroa ao pai, mas para matá-lo e depois duelar entre eles a fim de determinar quem seria o novo rei.

Tentaram matá-lo de todas as formas, mas Hiranya era invulnerável e vencia sempre, embora logo se cansasse de perdoar os vencidos, que na primeira oportunidade se voltavam de novo contra ele; passou então a matá-los com suas próprias armas. Atacaram-no com um machado, com espadas e com lanças e ele usou as próprias armas dos adversários para matá-los. Tentaram jogá-lo em um abismo e ele pulou às gargalhadas, carregando consigo seus três agressores, que se espatifaram lá embaixo, enquanto Hiranya em breve retornava ileso; aos que tentaram afogá-lo, ele os puxou para debaixo da água, até que morressem e voltou tranquilamente à superfície; e quanto tentaram amarrá-lo e jogá-lo em uma fogueira, puxou consigo os que o atacavam e os ficou segurando, enquanto morriam aos berros, saindo depois ele mesmo do fogo, sem ao menos se chamuscar.

Depois, algumas mulheres Asuras o seduziram e tentaram dar-lhe veneno, que ele tomou sem qualquer dano e então beijou a mulher que lho dera e cuspiu-lhe dentro da boca, fazendo com que morresse, retorcendo-se de dor... Com tudo isso, Hiranya foi ficando ressentido e tornou-se cada vez mais cruel, torturando as famílias de seus agressores, até que os Asuras se lhe submeteram totalmente. Ele os conduziu ao combate, vencendo os Devas, mas sem conseguir lhes tomar a fortaleza, embora lhes determinasse o pagamento de um pesado tributo; e aos homens, a quem escravizou. E passou a oprimir violentamente seu próprio povo, exigindo impostos e taxas cada vez mais numerosos, enquanto se dedicava somente a seus prazeres. Bebia litros e litros de vinho ou cerveja sem se embriagar e comia quantidades assombrosas de alimentos, sem engordar uma grama, porque seu corpo ou sua mente não lhe podiam fazer mal.

Além disso, deu poderes a seus filhos para governarem em seu lugar, enquanto buscava somente os seus prazeres e estes passaram a oprimir os demais Asuras, que não se atreviam a reagir, por medo de seu pai, que declarara ter recebido de Brama a invulnerabilidade, o que era um fato; e a imortalidade, no que mentia. Somente Praladha se recusou a participar disso e os irmãos zombavam dele, chamando-o de idiota e de covarde. Mas Hiranya lembrou-se daquela tarde em que Praladha o fora buscar para morar em sua casa e, embora habitasse agora no palácio do rei, proibiu firmemente seus filhos de maltratarem o irmão mais velho. Mas tornou-se desconfiado e, temendo que um dos seus próprios filhos o quisesse matar a flechadas, foi com ele até o caminho de uma avalanche, que o esmagou, deixando Hiranya ileso. E para provar o seu poder, convocou todos os Asuras para irem com ele até um vulcão. Atirou-se dentro da lava da cratera, saiu nadando entre as rochas derretidas e subiu pela beirada, sem qualquer marca na cabeça ou no corpo. Até mesmo as longas tranças e a barba que usava agora pela cintura não mostravam o menor vestígio de queimadura.

A única pessoa a quem ainda escutava era Praladha, que às vezes o admoestava por seu mau procedimento, mas a quem Hiranya, com um resto de virtude em seu coração, nunca punia. Mas depois começou a maltratar-lhe os filhos e netos, sua própria família, pois eram seus netos e bisnetos e, quando Praladha foi interceder em seu favor, tomado de impaciência, mandou exilá-lo do reino. O filho o obedeceu, sem protestar, reuniu a família, que ficara inteiramente de seu lado e se aprontaram para deixar o reino. Mas ao ver quantos guerreiros iam com ele, Hiranya ouviu maus conselhos e mandou prender sua mulher e toda a família. “Segue sozinho, Praladha, pelas sendas que escolheres! Mas tua mulher e teus filhos vão ficar aqui: terás receio, assim, de conspirar!...”

Praladha protestou-lhe seu amor e lealdade, mas Hiranya a essa altura já havia ultrapassado todos os limites da maldade e era incapaz de confiar na sinceridade de ninguém. Praladha afastou-se sozinho e começou a sopesar as coisas. O amor da esposa, de seus filhos e seus netos pesou mais do que o respeito que ainda sentia pelo pai. E então tomou a mais difícil e mais corajosa das decisões. Depois de muito meditar, foi procurar Kali, a deusa da Morte. Entrou em seu reino sombrio, cercado por esqueletos, fantasmas e mortos recentes e uma série de monstros horríveis além de toda a imaginação. Mas era o mais virtuoso dos Asuras, porque não procurara libertar-se do desejo para conseguir uma recompensa, mas apenas fazia o bem e era movido pelo amor de sua esposa e de seus filhos. Assim, encheu-se de valor, enfrentou todos os perigos e os monstros o reconheceram pelo que era e deixaram-no passar.

Encontrou Kali sentada em seu trono de ossos, chupando a medula de uma tíbia e bebendo sangue em uma taça formada por uma caveira cortada. Ela era bela, mas tinha oito braços e seis deles seguravam terríveis armas de destruição. Praladha curvou-se diante dela, juntando as mãos com todo o respeito, mas a morte não confia em ninguém, pois sabem que ninguém sente amor por ela, mesmo aqueles que odeiam a vida e a buscam para acabar com o sofrimento e assim fez um sinal e prenderam o visitante no baraço de uma rede formada por nervos de mortos entrelaçados. Praladha encolheu-se de nojo, mas não se moveu. Então Kali lhe falou:

“Quem és tu, que ousaste me enfrentar? Qual o ardil que me queres aplicar? Ou que súplica me vieste apresentar? Fica sabendo que a ninguém perdoo, quando lhe chega a hora, mas para ti ainda é cedo, muito embora tenhas tido o desplante de vir ainda vivo até meu reino, como quem deseja matar a própria Morte!...”

“Minha senhora, disso não se trata,” respondeu Praladha. “Não vos desejo mal, a morte é o fim necessário e natural. Eu vim aqui para pedir grande favor, embora isso vá contra meu amor, meu respeito e minha própria natureza. O que eu suplico é que a Morte a meu pai abata...”

Kali o fitou, até com certo espanto. “Eu te conheço... Tu és Praladha, o filho de Hiranya Kashiapu, e sei bem que não me fazes esse pedido a esmo... Estou a par de tudo o que teu pai tem feito, mas a esse teu pedido eu não posso aceder. É muito difícil o teu pai morrer, pois Brama lhe concedeu multifários dons... Ele não pode ser morto por qualquer criatura que Deus tenha criado, por ninguém nascido de mãe ou de pai e nem sequer por algum espírito que tenha nascido do fogo ou do vento. Eu sou uma deusa, mas também sou uma criatura de Brama, portanto, não posso tocá-lo diretamente, ele foi muito esperto. Também pediu a graça de não poder ser morto por qualquer ser nascido de ovo ou de semente, nem formado desde as pedras, a terra e a areia do chão, nem gerado pela espuma do mar ou os borrifos das ondas, nem surgido dentre os vegetais ou minerais, nem formado por qualquer tipo de magia!...” Brama ainda lhe concedeu a graça de não poder morrer nem de noite e nem de dia, nem no mar e nem na terra, nem nos vulcões, nos ciclones, nas monções ou em qualquer outro fenômeno dos ares, nem ainda perecer em qualquer parte da terra ou em qualquer canto do planeta, por menor que seja...”

Kali suspirou e prosseguiu: “Ainda recebeu outras graças: que nenhum inimigo o possa matar no mar ou na terra, no ar ou embaixo da terra, que não possa ser ferido por qualquer arma de guerra, ferramenta ou outro utensílio fabricado pelos gênios ou pelos homens, nem pelo sopro do ar ou pela chama que salta do fogo, nem por qualquer doença, moléstia ou outro mal que afete os homens ou os gênios, os animais, os vegetais, os minerais da terra ou qualquer outra criatura, vivente ou não, cuja forma possa ser gerada por qualquer destes gêneros. Brama permitiu-lhe além disso que não possa morrer de acidente, nem de qualquer desastre ou catástrofe natural, que jamais caia em qualquer armadilha, que não seja afetado por nenhum veneno... E que nem seu corpo e nem sua mente possam vir a provocar-lhe a morte... Como vê, meu bravo Praladha, estou de mãos atadas...”

“Mas o meu pai tem praticado tanto mal! Deve existir um meio de o impedir!...” Respondeu-lhe Kali: “De sob uma montanha há de sair; se for lançado acorrentado no lugar mais fundo dos oceanos, também emergirá ileso... Contudo... nem assim é imortal, ainda que esteja fora de meu alcance. Ele esqueceu de suplicar a Brama que o próprio Deus se abstivesse de o matar!... Ele é imutável, em Seu longo respirar, mas Vishnu, Seu filho, tem Sua essência... Só ele pode interromper essa existência. Vai pois, Praladha e por seu auxílio clama! Eu te aconselho, devido à tua coragem: terás de andar durante sete anos, conforme o tempo calculam os humanos...”

“Eu o farei, senhora, mas certamente encontrarei muitos perigos, terei de procurar abrigo contra o frio e alimento para me nutrir...” Mas Kali respondeu: “Não, meu gênio corajoso. Terás na testa o meu sinal a reluzir até o momento em que te prostrares perante Vishnu. Nem homem, nem gênio, nem animal, nem qualquer outra criatura te poderá fazer mal, mesmo porque tua hora não chegará ainda por muito tempo. A fome e o frio são criaturas de Deus, por isso, não sentirás fome e não passarás frio durante todo o tempo que durar a jornada, desde que não te desvies do caminho ou desistas da empresa.”

E Kali estendeu uma das armas que trazia em seus braços e dela brotou um raio que atingiu Praladha em cheio na testa. Sentiu um calor e uma dor terríveis e pensou que Kali zombara dele o tempo todo e que agora o havia fulminado. Mas logo tudo passou. Tocou com a mão na testa e, bem no lugar em que colocaria um bindi de açafrão para atrair a boa sorte, havia uma marca funda. Foi tateando e viu que tinha o formato de uma caveira. Era a marca de Kali! Curvou-se sete vezes perante a deusa, as mãos postas em sinal de agradecimento e veneração e saiu de seu angustiante domínio.

Caminhou realmente, durante sete anos, como os contam os homens, nem sequer um minuto aos olhos de Brama. Não sentiu cansaço, nem de dia e nem de noite, não passou fome e não tremeu de frio, muito embora não parasse, não se cobrisse e nada comesse durante todo esse período. A única coisa que o perturbava era a preocupação com o destino de sua família, mas estava fazendo o que podia ser feito. Finalmente, avistou a morada de Vishnu, no meio de um belíssimo jardim. Não viu ninguém, mas sentiu que espíritos benignos o vigiavam. A porta estava aberta e foi entrando até o grande salão, em que Vishnu o aguardava, sentado em posição de lótus.

Praladha curvou-se e ia narrar a Vishnu o que sucedera e a natureza de seu pedido, porém o deus guerreiro lhe disse simplesmente: “Praladha, eu protejo os que são meus.” Então o virtuoso Asura calou-se e Vishnu prosseguiu: “Sei muito bem o que desejas, meu Praladha: conheço bem os crimes de teu pai. Por toda a Terra a sua maldade vai, mas por meu Pai ele foi muito abençoado... Descansa agora em meu palácio, filho amado. Eu te atenderei, porém matar teu pai é uma tarefa atribulada... Contudo, encontrarei um meio de o vencer sem quebrantar as promessas de meu Pai.”

Praladha curvou-se sete vezes, de mãos postas, sem proferir palavra e um espírito o levou até os aposentos que lhe haviam sido preparados. Banhou-se e quebrou o jejum de sete anos, depois do que deitou-se em um divã coberto de coxins, passou as mãos no rosto e descobriu que o sinal de Kali havia desaparecido. Foi olhar-se em uma bacia cheia d’água e percebeu que não restara sequer uma cicatriz. Então agradeceu a Kali e a Vishnu e depois dormiu profundamente. Durante o sono, falou com sua esposa e filhos e se tranquilizou, sabendo que nenhum deles fora morto por Hiranya Kashiapu, embora tivessem de pagar pesados tributos e executar muitas tarefas e deveres pesados e desagradáveis, mas nem por isso tão horríveis e penosos como os que executavam os demais Asuras e ainda mais os homens infelizes, nem impostos tão pesados como os que eram cobrados dos Devas para que suas terras não fossem invadidas e seu povo escravizado.

Enquanto isso, a vasta inteligência de Vishnu concebeu um plano para derrotar Hiranya. Embora partilhasse da essência divina, sobre a Terra teria de agir de maneira concreta e, para isso precisava de um avatar. Mas tinha de ser um avatar muito especial, uma forma incriada e não-nascida de nenhuma das criaturas de seu pai Brama, um metamorfo divinal e puro... Não lhe custou muito e já descia à Terra, inserindo-se no interior de um grande pilar de pedra, onde se metamorfoseou, sem que o avatar em nada partilhasse da natureza da pedra. Tornou-se Naramsinha, o homem-leão. Da cintura para cima, tinha forma humana, embora com chifres e quatro braços, para melhor lutar. Em cada uma das mãos tinha uma longa unha inquebrantável e, da cintura para baixo, era um leão de quatro patas e uma longa cauda sinuosa, que também pretendia utilizar para o combate.

E então, esta estranhíssima e potente criatura foi desafiar Hiranya. Mas este era também muito astucioso e logo adivinhou quem Naramsinha de fato era. “Até tu, Vishnu,” disse o rei, “me vens desafiar? Eu te conheço, apesar do teu disfarce... Mas não podes a teu Pai desobedecer e eu te vencerei facilmente em combate. Embora tampouco eu te possa matar, terás de te confessar vencido, deixar que eu ponha o pé na tua garganta e te submeteres a mim...”

Disse Vishnu: “Sabes que eu jamais me submeterei. E lembra de que sou um só deus com meu Santo Pai e partilho de sua essência. E esqueceste de pedir que o próprio Brama não te pudesse abater...”

Hiranya teve um sobressalto, mas logo se recuperou. “Brama também é meu pai, como o é de todas as criaturas... Ele me concedeu bênçãos infindas e nem tu me podes vencer. Não poderei ser morto por qualquer criatura que Deus tenha criado, por ninguém nascido de mãe ou de pai e nem sequer por algum espírito que tenha nascido do fogo ou do vento. Não poderei ser morto por qualquer ser nascido de ovo ou de semente, nem formado desde as pedras, a terra e a areia do chão, nem gerado pela espuma do mar ou os borrifos das ondas, nem surgido entre os vegetais, nem formado por qualquer tipo de magia!... Não poderei morrer nem de noite e nem de dia, nem no mar e nem na terra, nem nos vulcões, nos ciclones, nas monções ou em qualquer outro fenômeno dos ares, nem ainda perecer em qualquer parte da terra ou em qualquer cantinho do planeta, por menor que seja...

“Nenhum inimigo pode me matar no mar ou na terra, no ar ou embaixo da terra, não posso ser ferido por qualquer arma de guerra, ferramenta ou outro utensílio fabricado pelos gênios ou pelos homens, nem pelo sopro do ar ou pela chama que salta do fogo, nem por qualquer doença, moléstia ou outro mal que afete os homens ou os gênios, os animais, os vegetais, os minerais da terra ou qualquer outra criatura, vivente ou não, cuja forma possa ser gerada por qualquer destes gêneros. E o santo Brama ainda me permitiu que não possa morrer de acidente, nem de qualquer desastre ou catástrofe natural, que jamais caia em qualquer armadilha, que não seja afetado por nenhum veneno... E que nem meu corpo e nem minha mente possam vir a provocar-me a morte... A própria Kali está de mãos atadas e não pode me tocar... Meu caro Vishnu, sou invulnerável e não morrerei enquanto Brama existir!...

Mas Vishnu lhe respondeu: “Não foi isso que meu Pai te prometeu. As outras coisas menores, sim, mas não te deu a imortalidade e ninguém pode existir pelo mesmo tempo que Brama existirá. Repara ainda que não sou nenhuma criatura, mas partilho da essência de meu pai. Não nasci, mas vivo desde sempre. Tampouco sou teu inimigo, apenas o encarregado de te punir, sem que tenha por ti qualquer animosidade, somente contra os teus mal-feitos. Não vou usar nenhuma arma, ferramenta ou utensílio contra ti, apenas meu próprio corpo e meu próprio vigor. Portanto, Hiranya, prepara-te para morrer!...

Mesmo que sentisse algum estremecimento interno, Hiranya Kashiapu retorquiu: “Não me podes matar, Vishnu, nem de dia e nem de noite, nem no mar e nem na terra, por nenhum acidente ou fenômeno natural, não me podes causar doença ou me soprar algum veneno... Mais ainda, já te falei que o santo Brama afirmou que não posso perecer em qualquer parte da terra, do mar ou do ar ou em qualquer cantinho do planeta, por menor que seja... Eu não te temo, Vishnu!”

No instante seguinte, sem aviso, conforme sua natureza de Asura, Hiranya lançou-se contra Vishnu e os dois se engalfinharam e lutaram durante horas. Vishnu não podia matar Hiranya e as forças deste constantemente se renovavam, porque seu corpo e sua mente não lhe podiam causar a morte. Naturalmente, Hiranya tampouco podia matar Vishnu, cuja força e energia eram eternas e assim, o combate se foi prolongando hora após hora, enquanto os Asuras observavam os dois lutarem sem parar, cheios de espanto, enquanto a família de Praladha ousava esperar contra a própria esperança.

Mas Vishnu só estava ganhando tempo, esperando a chegada do crepúsculo, quando não era nem de dia e nem de noite... Ao ver adensar-se a escuridão, Hiranya percebeu a manobra, mas disse, resfolegando: “Não importa, Vishnu! Eu estou sobre a terra e não posso ser morto em qualquer cantinho dela! E se me ergueres no ar, tampouco posso ser morto nele e muito menos dentro da água!... Desiste, Vishnu e aceita a submissão!...”

Mas Vishnu nem se dignou a responder ao prepotente. Ele tampouco se lembrara de pedir a Brama para ser imune à sufocação. Não poderia ser morto dessa forma, mas Vishnu enrolou sua flexível cauda em seu pescoço, até que ficasse sem respiração e perdesse os sentidos. Então Vishnu dobrou seus vastos joelhos de leão e colocou Hiranya sobre eles, sem tocar em ponto algum o solo, portanto não se achava mais em qualquer cantinho da terra... E então, com uma de suas unhas pontiagudas e inquebrantáveis, rasgou-lhe a garganta, fazendo com que todo o seu sangue se derramasse... Assim, Hiranya morreu em perfeita saúde, sem que seu corpo ou sua mente provocassem a sua morte... Vishnu iludira todas as bênçãos, pois nem sequer catástrofe ou acidente o haviam acometido!

Praladha despertou subitamente e um espírito o levou até a terra dos Asuras, onde encontrou sua esposa, filhos e netos, todos gozando de perfeita saúde e sem um osso quebrado e sem que lhes faltasse qualquer membro do corpo. Imediatamente os seus irmãos e os demais Asuras lhe ofereceram a coroa, mas Praladha recusou. O trono havia sido conspurcado por seu pai Hiranya e por seus predecessores e tinha, além disso, a consciência de que não poderia governar um povo tão rebelde e contencioso como os Asuras, sem se deixar contaminar pela cólera e pela vaidade.

Viveu em paz o resto de seus dias, erguendo preces a Brama diariamente e agradecendo a Shiva, humildemente, por sua preservação e pela dos seus... Mas o objeto principal de seu louvor era Vishnu, que adorava com fervor e a quem entoava frequentes salmodias, porque, mais uma vez, viera salvar os gênios, a Terra e os homens...

Mas Hiranya foi levado pela Morte, a chacoalhar os dentes, de ironia... E toda a corte esqueletal sorria, pois todo o orgulho, seja de gênios, de homens, ou de qualquer outra criatura seria vencido por Kali, mais cedo ou mais tarde... porque tudo o que nasce, tem um dia de morrer, pois toda a carne é relva e assim partilha de sua sorte.

EPÍLOGO

Mas e o Homem Leão? Era só um avatar,

só uma forma que Vishnu empregou,

da qual depois nunca mais precisou...

Mas dos hindus permanece na memória;

seu nome em festivais recebe glória,

em gratidão por ter vindo nos salvar!...

LEIA TAMBÉM A VERSÃO POÉTICA!...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 15/07/2011
Código do texto: T3096132
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