O TESOURO DO ALHAMBRA (em prosa)

O TESOURO DO ALHAMBRA

(Conto popular espanhol, recontado por William Lagos.)

Na cidade de Granada, localizada no sul da Espanha, havia um aguadeiro chamado Peregil, cujo trabalho consistia em trazer água de um dos rios que confluíam para a cidade, descendo da Sierra Nevada, a fim de vendê-la aos habitantes, porque nessa época o sistema de canalização de água e os esgotos existentes desde o tempo dos romanos tinham sido negligenciados e ficaram entupidos. Peregil descia todos os dias, antes do nascer do sol, enchia um barril de água com a capacidade de cinquenta litros e o trazia nas costas para vender a seus clientes na cidade. Esvaziado o barril, voltava ao rio Genín ou ao rio Beiro, onde as águas corriam mais límpidas, conforme o lado da cidade em que acabasse de esvaziá-lo, enchia-o de novo, colocava-o outra vez às costas e retomava a faina de vender água de porta em porta.

Havia um terceiro rio que desembocava na cidade, chamado Darro, mas Peregil nunca recolhia a sua água, porque trazia barro de aluvião das terras altas que atravessava. O aguadeiro vendia a água a um ceitil por litro, ganhando portanto cinquenta ceitis em cada barril, ou no máximo, dois maravedis por dia. Não podia cobrar mais, porque havia muita concorrência na cidade; além disso, outros aguadeiros possuíam carroças e carroções e traziam vários barris por vez, cobrando o mesmo preço. Como tinha sete filhos pequenos, tudo quanto ganhava era gasto com a alimentação e não conseguia economizar um ceitil (que corresponde a um centavo) para adquirir sequer um carrinho de mão.

Para mal dos pecados, depois que sua esposa ganhara o sétimo filho, viajara até a casa de seus pais para mostrar-lhes o neto de três meses; durante a viagem, pegara uma febre maligna e morrera pouco depois de retornar. Como resultado, já que não podiam pagar ninguém, Jéssica, a filha mais velha, então com apenas onze anos, assumira todos os encargos da casa: cozinhava, lavava, passava, remendava, cerzia, limpava o casebre e cuidava dos irmãos menores. Mas nem Peregil nem Jéssica se queixavam da vida: aceitavam suas penas como coisa natural e iam à missa todos os domingos para agradecer pela saúde e por outras pequenas bênçãos em suas vidas.

A família de Peregil já fora abastada, mas a chegada de um novo governador à cidade, Dón Ortuño Ortega de Ortiz y Orellana, correspondera a um severo aumento dos impostos. Quando seu pai morreu, Peregil perdeu a casa e todos os seus móveis. A única coisa que conseguiu salvar foi um livro de contos de fadas ilustrados e, por sorte, tinha aquele casebre que herdara de sua avó materna. A única distração de Jéssica era ler as histórias encantadas, que se passavam na antiga Espanha, de mistura com histórias reais de seus antepassados.

Granada era uma cidade muito antiga, fundada pelos iberos, o povo mais antigo que a história registra na Espanha, que se haviam fundido aos celtas, chegados um pouco mais tarde, formando os chamados celtiberos. Existiam em Granada muralhas construídas pelos iberos datando do século sexto antes de Cristo, para se defenderem dos invasores cartagineses, que vinham do norte da África. Antes deles, os gregos haviam fundado várias colônias no sul da Espanha e os fenícios estabelecido vários entrepostos comerciais, vivendo mais ou menos em paz com os habitantes anteriores. Mas os cartagineses chegaram com intenções de conquista, escravizaram os habitantes e os matavam nos altares de seus deuses sedentos de sangue humano.

Um general cartaginês, Aníbal Barca, reunira um grande exército, trazendo elefantes da África, saíra da Espanha, cruzara o sul da França e atravessara as montanhas dos Alpes, derrotando os romanos em várias batalhas; somente em Canas, suas tropas haviam matado mais de oitenta mil legionários romanos, abrindo as portas da Itália e deixando Roma praticamente indefesa; então marchara para o sul, até uma cidade chamada Cápua, onde parara, até hoje não se sabe exatamente porquê. Os romanos agradeceram a seus deuses menos sanguinários pela proteção, renovaram seu exército e acabaram por derrotar os cartagineses.

Logo a seguir, as legiões romanas haviam ocupado o território que os cartagineses haviam conquistado, construindo cidades e estradas de pedra, algumas das quais existem até hoje, castelos e muralhas, templos e jardins, mas também, o que fora mais útil, erguendo imensos aquedutos para transportar água para as cidades e plantações e estabelecendo um sistema de esgotos, cujos restos ainda são mostrados, à exemplo dos que existiam em Roma e através do Império. Levaram dois séculos, mas lentamente conquistaram a Espanha e Portugal inteiros, cujas principais cidades ainda datam do tempo dos romanos.

Mais tarde, o Império desmoronou e foi invadido por tribos de germanos, vindos da Alemanha, da Polônia e da Europa Central, onde se haviam tornado numerosos demais para todos se alimentarem. A Espanha e Portugal foram conquistados pelos visigodos, que ocuparam e conservaram as cidades e os sistemas de irrigação, conservando os usos e costumes dos romanos e até deixando de falar sua língua antiga, adotando o latim, a língua dos romanos. Fundaram vários reinos, entre eles o de Toledo, de que fazia parte a Vega de Granada, as campinas que incluíam a cidade.

Os romanos haviam chamado Granada de Ilíberis, nome que os visigodos conservaram. Mas depois de trezentos anos, eles se dividiram. Seus reis eram eleitos pela assembleia dos guerreiros e por morte do rei Ágila, foi eleito Recaredo ao invés de seu filho do mesmo nome, que pretendia tornar-se Ágila Segundo. Recaredo perseguiu seus adversários com o apoio da igreja e tentou converter à força seus súditos judeus ao cristianismo. Os partidários de Ágila pediram a Tarik, que governava a África do Norte em nome do Islam, a religião dos muçulmanos, que viesse em seu socorro.

Tarik foi transportado de barco com sete mil soldados e venceu facilmente a Recaredo com o auxílio dos milhares de visigodos, ciganos e judeus que se haviam tornado seus inimigos devido às perseguições; mas Ágila e seus partidários foram reduzidos a súditos de Tarik, depois de uma rápida campanha, em que conseguiu conquistar a Espanha e Portugal inteiros em apenas três anos, quando os romanos tinham levado dois séculos. Estabelecida a paz, os árabes conservaram as cidades, os aquedutos e os esgotos e adotaram os modelos romanos na construção de casas e jardins, como os visigodos já o haviam feito. Granada passou a ser chamada de Ilibira, um nome que se transformou aos poucos em Elvira.

Finalmente, o general Al-Azir se declarou independente de Toledo e fundou o califado de Elvira, cujo nome trocou para Medinet Al-Grenata, devido ao grande número de romãzeiras ali existentes, porque gostava muito de romãs, ou “granadas” na língua local, de onde veio o nome de Granada. Ele construiu um grande palácio chamado Alhambra e uma fortaleza, Albayzín, ao redor da qual os mouros construíram suas casas, segundo o modelo copiado dos romanos, porque em sua terra natal moravam em tendas; e plantou em frente ao Alhambra um grande jardim, com fontes e rios atravessados por graciosas pontezinhas, que foi chamado de Generalife. As igrejas foram transformadas em mesquitas, apagados os quadros pintados nas paredes, chamados de afrescos (porque a tinta era aplicada no reboco ainda fresco) e quebradas as imagens dos santos, uma vez que a religião dos muçulmanos proíbe a representação de pessoas. Tudo foi decorado com arabescos e mosaicos, além de magníficos rendilhados de pedra, esculpidos pelos moçárabes, que eram os cristãos escravizados.

Granada foi a última cidade que os católicos espanhóis conseguiram reconquistar. Infelizmente, os reis e padres espanhóis daquela época odiavam os muçulmanos e tudo que eles representavam, depois de setecentos anos de guerra e assim destruíram tudo o que havia sido erguido por eles; o Alhambra foi escavado em busca de tesouros e o Generalife abandonado às ervas daninhas. Pior que tudo, demoliram os aquedutos, deixaram entupir-se os esgotos. Estavam muito mais interessados em reunir tesouros, expulsaram os judeus e escravizaram os mouros, depois de libertarem os escravos cristãos. A cidade entrou em decadência, sem água encanada e as ruas transformadas em esgotos a céu aberto.

Tudo isso podia ser lido no livro de Jéssica, enquanto Peregil, na falta de outro emprego, arranjou uma barrica e passou a viver vendendo a água dos rios. Aos domingos, quando trabalhar era proibido, levantava-se muito cedo para cortar a lenha da semana e fazer os consertos necessários no teto e nas paredes da choupana, rezando a Jesus e à Santa Virgem para que ninguém o fosse denunciar aos monges da Inquisição. Depois se lavava, trocava de roupa e levava os sete filhos à catedral para assistirem à missa. Peregil era um católico devoto e acendia velas para pedir proteção e perdão pelos pequenos trabalhos que realizava em casa durante a madrugada de domingo.

Depois da missa, caminhavam até o Generalife semiabandonado, almoçavam frugalmente e Peregil dormia à sombra de uma árvore ou sob o sol de inverno, enquanto os pequenos brincavam e Jéssica lia e relia o seu livro encantado, que já quase sabia de cor. Na segunda-feira de madrugada, Peregil retomava o trabalho de costume. E assim iam sobrevivendo, até que um dia Dón Ortuño Ortega Ortiz y Orellana, o governador da cidade, para financiar seu luxo e seus banquetes, resolveu aplicar um novo imposto, cobrando dos aguadeiros um maravedi por dia, sob o pretexto de que os rios e outeiros pertenciam ao rei, de quem ele era o representante.

Os demais aguadeiros protestaram em vão e acabaram por pagar a taxa diária. Mas como Peregil iria pagar, se ganhava no máximo dois maravedis por dia e gastava tudo com a alimentação dos filhos, sem conseguir sequer comprar roupas novas para as crianças esfarrapadas? Era Jéssica que remendava e recortava os vestidos da mãe falecida para servirem em si mesma e nos irmãos. Mas o governador não quis saber e mandou a guarda ir buscá-lo ao palácio. Peregil explicou sua situação, mas Dón Ortuño foi inflexível. Se não podia mesmo pagar em dinheiro, então deveria pagar com seu trabalho. Peregil protestou que já trabalhava a semana inteira, do alvorecer ao pôr-do-sol, somente para sustentar seus filhos. “E aos domingos?” indagou o governador.

Peregil protestou que nos domingos ele ia à missa, que era proibido trabalhar, já com medo de ter sido denunciado aos monges por cortar lenha e conservar a casa nas madrugadas de domingo... Mas o governador declarou que ele era o juiz da cidade e sabia muito bem que ele passava as tardes no jardim do Generalife à procura do tesouro que o califa deixara enterrado em algum lugar. Peregil negou, dizendo que aproveitava para descansar, enquanto os meninos brincavam, mas Dón Ortuño não quis saber: “Aproveite para capinar o jardim, fazer funcionar as fontes de novo e consertar as pontes quebradas...”

Deste modo, o pobre Peregil perdeu sua única tarde de descanso, atendendo às ordens do governador, trabalhando toda a tarde, sem ganhar um único ceitil em troca; ao contrário, o governador dizia que sua dívida de seis maravedis por semana só fazia aumentar, porque uma tarde de trabalho não valia o salário de tantas moedas. Jéssica cuidava dos pequenos, alguns dos quais começavam a arrancar ervas daninhas para ajudar o pai, mas a seguir se punham a brincar e depois iam dormir. Jéssica lia em seu livro encantado, louca para descobrir o tesouro que diziam existir nas ruínas do Alhambra, ainda erguidas ao lado do jardim do Generalife. Mas seu pai apenas ria, dizendo que não havia tesouro nenhum, eram só histórias de fadas e que, se tivesse havido qualquer tesouro, há muito teria sido descoberto por tanta gente que havia escavado as ruínas.

Uma tarde, com o pai tentando consertar uma fonte e os seis irmãos já adormecidos, Jéssica pôs de lado seu livro e partiu a explorar as ruínas. Os corredores eram escuros, mas o teto desabara em alguns pontos, de modo que sempre entrava a luz do sol aqui e ali. Mas Jéssica sentiu-se atraída por um corredor ainda inteiro, completamente envolto na escuridão. Enveredou por ele, apalpando as paredes para se orientar, até que, numa volta do corredor, avistou uma luz amarelada à distância, parecendo envolta em fumaça. Mas não era fogo e muito menos a luz do sol. Curiosa, foi avançando, até encontrar uma porta entreaberta, que, por estranho que parecesse, não fora arrancada para ser usada na casa de alguém, como acontecera com todas as demais.

A luz provinha de uma fresta na porta e Jéssica espiou para ver o que havia do outro lado. Nesse instante, escutou uma voz suave, dizendo: “Pode entrar, menina. Não precisa de ter medo. Somente alguém com o coração puro poderia encontrar este salão.” Ainda que estivesse um pouco assustada, Jéssica abriu a porta e entrou, piscando os olhos, deslumbrada pela luz dos candelabros que aqueciam cada canto da peça. Depois que se acostumou, viu uma riqueza de detalhes a seu redor, jarrões preciosos, tapeçarias, almofadas, tapetes trabalhados, cofres e arcas, baús e vasos de ouro, de cujas beiradas se derramavam colares de ouro e pedras preciosas. Mas nunca vira jóias ou moedas de ouro e era apenas o brilho de tudo aquilo que a fascinava.

Enfim, olhou para o centro da peça e lá estava, sentada sobre um grande cofre coberto por um pano de veludo, uma jovem loura de extrema beleza, trazendo na cabeça uma tiara de ouro cravejada de pedras verdes e vermelhas. Ela se vestia do mesmo jeito que as princesas de seu livro mágico, tinha a pele muito clara e feições de grande nobreza, embora marcadas por tristeza e sofrimento. Jéssica emudeceu completamente, sem saber o que dizer. Mas a jovem sorriu e lhe disse: “Sou Recareda, ou Ricarda na sua língua, filha do rei Recaredo, o último rei visigodo de Toledo. Estou aqui aprisionada há setecentos anos, porque não quis me converter à religião dos mouros e um alquimista maligno, chamado Al-Azhar, me lançou um feitiço, que só podia ser quebrado por palavras mágicas proferidas por uma menina pura. Queres ser minha redentora?”

Jéssica assentiu com a testa, ainda incapaz de falar. Mas a princesa perguntou por seu nome e o nome de seus pais. Jéssica respondeu e a princesa sorriu com bondade, ao saber que sua mãe era falecida. “Minha mãe e meu pai também morreram há setecentos anos... Tens sorte de ainda teres teu pai e ele ser bom para ti. Mas escuta: como te disse, sou cristã e visigoda e o feiticeiro mouro que me encantou invocou Sheitan, o maior diabo dos muçulmanos; mas o demônio, após realizar o encantamento, como lhe fora pedido, voltou-se contra o mago e o fez cair em profundo sono, em tudo semelhante à morte... Estou sentada sobre o caixão em que ele jaz há setecentos anos...”

Jéssica estremeceu, pensando que havia um morto no salão com ela... Mas a princesa continuou: “Jéssica, minha querida, só tu podes me salvar, há setecentos anos que ninguém consegue descobrir este salão. Tens boa memória? Porque terás de decorar palavras mágicas e repeti-las exatamente, porque só assim Sheitan permitirá que o encanto se desfaça...” Jéssica disse que tinha e a princesa prosseguiu. Então, vou te ensinar quatro versos para desfazeres o encantamento. Vou te dizer um de cada vez e terás de decorar exatamente, para não errares nem uma só palavra, está bem?”

Jéssica de novo concordou e a princesa lhe disse: “Em primeiro lugar, temos de impedir que o demônio atrapalhe a quebra do encanto. Ouve bem, grava na memória, para depois repetires o que te vou ensinar, no exato momento em que eu te disser.”

"Por três arcanos na palma de minha mão,

Diablos, te conjuro a abrir os três jarrões

e a libertar os pobres corações,

aprisionados por ímpia maldição!..."

Jéssica disse que havia decorado palavra por palavra. A princesa então lhe disse: “Vai até aquele altar que está na parede do fundo. Há um graal sobre ele, uma taça esculpida em um único cristal, sem ganga e sem jaça. Bebe o vinho que contém a taça e, no fundo dela, encontrarás três arcanos: uma lua de prata, uma estrela de ouro e uma cruz de ferro brilhante. Toma os três em tua mão e, só depois disso, repete sem um só erro as palavras que te ensinei, querida, mas com o maior cuidado para não errar uma só sílaba.”

Jéssica andou até o altar e lá estava a taça. Segurou-a com as duas mãos, porque era pesada, e tomou o vinho que havia dentro dela. O vinho era doce e revigorante. Após o derradeiro gole, viu que no fundo estavam realmente os três objetos santos que a princesa mencionara. Recolocou a taça sobre o altar e os retirou um por um. A lua de prata, a estrela de ouro e a cruz de ferro brilharam na palma de sua mão. Então a menina se virou para a princesa, que se voltara em direção a ela sem se levantar; a princesa acenou afirmativamente e ela entoou:

"Por três arcanos na palma de minha mão,

Diablos, te conjuro a abrir os três jarrões

e a libertar os pobres corações,

aprisionados por ímpia maldição!..."

Os três objetos brilharam ainda mais em sua mão e a fumaça que pairava no ambiente se dissipou, permitindo que ela visse com mais clareza tudo o que estava a seu redor. Houve um estrondo e saltaram as rolhas que fechavam os três maiores jarrões que havia no quarto. A princesa fez sinal para que voltasse até ela e Jéssica parou em frente ao cofre coberto de veludo em que Ricarda se assentava. Só então percebeu que a princesa estava presa por três correntes: uma de prata em sua perna esquerda, um de ouro em seu tornozelo direito e uma de ferro negro e brilhante em volta da cintura. Cada uma delas tinha um cadeado imenso feito do mesmo metal.

A princesa retornou: “Fizeste bem, querida... Sheitan continua aqui, mas não poderá interferir, desde que o desencantamento seja feito à perfeição. Agora escuta de novo: olha ao redor, verás um jarrão prateado da tua altura à tua esquerda, um jarrão dourado à tua direita e um jarrão de ferro negro e brilhante colocado ao lado da porta por onde entraste. Cada um deles contém um de meus guardiães e cada guardião tem a chave de um dos meus cadeados. Decora as palavras que te vou dizer e vai até o jarrão prateado.”

"Belo espírito, aqui aprisionado,

da corrente de prata dá-me a chave!

A Lua te darei, sem mais agrave..."

Depois, falou a princesa: “Esse jarrão contém o espírito do cigano Mylanos, que era conselheiro de meu pai e que tentou me defender do alquimista. Como castigo, Al-Azhar o aprisionou e lhe deu uma das chaves das correntes que me aprisionam. Mas ele é um bom espírito, somente está encantado como eu mesma. Vai lá, diz sem medo o que te ensinei e ele será libertado.” Jéssica dirigiu-se ao jarrão de prata e falou:

"Belo espírito, aqui aprisionado,

da corrente de prata dá-me a chave!

A Lua te darei, sem mais agrave..."

Prontamente, começou a subir uma fumaça da boca do jarrão, que se condensou em um homem de barba negra e olhos verdes, usando uma boina vermelha, uma camisa branca, um colete bordado e calções negros. Mylanos abanou a cabeça e lhe entregou a chave de prata. Jéssica tomou a chave e lhe entregou a lua de prata. Mylanos agradeceu, transformou-se de novo em fumaça, subiu em direção ao teto do salão e se dissipou.

Jéssica voltou com a chave, enfiou-a no cadeado que prendia o grilhão preso à perna esquerda da princesa. A chave girou facilmente e a corrente se desprendeu e caiu ao solo. A princesa deu um suspiro de alívio e falou: “De novo, decoraste corretamente e fizeste tudo bem. Agora escuta com toda a atenção, pois não podes errar os próximos versos.”

"Nobre espírito, aqui aprisionado,

da corrente de ouro dá-me a chave!

A Estrela te darei, sem mais agrave..."

“Decoraste bem? Olha que é parecido e não deves errar uma só sílaba... Vai até o jarrão dourado, que guarda o espírito do judeu Salomão; ele era o tesoureiro de meu pai e foi quem intercedeu pelos judeus quando os padres insistiam com o rei para forçar os seus irmãos a se converterem ao cristianismo e que depois me defendeu quando meu pai foi derrotado pelos mouros. Como castigo, Al-Azhar o encantou e transformou em meu segundo guardião. Ele tem a chave de ouro da segunda corrente... “ Jéssica avançou até o jarrão de ouro e repetiu, sem errar uma só palavra:

"Nobre espírito, aqui aprisionado,

da corrente de ouro dá-me a chave!

A Estrela te darei, sem mais agrave..."

Outra vez, uma fumaça começou a subir do gargalo do jarrão e se condensou em um homem de longa barba branca e olhos castanhos, usando um turbante e compridas vestes orientais, envolto em um albornoz, que lhe fez uma curvatura, entregou-lhe a chave e tomou a estrela de ouro de sua mão. Então, o velho agradeceu, seu espírito novamente se transformou em fumaça, subiu até o teto do salão e se desvaneceu. Jéssica voltou até onde se achava a princesa, girou a chave de ouro na fechadura da corrente que prendia seu tornozelo direito e o grilhão caiu a seus pés no mesmo instante.

Recareda moveu as pernas para ativar a circulação depois de tantos anos, mas não se ergueu de onde estava. Então falou: “Jéssica, você é uma menina pura e corajosa e até agora fez tudo exatamente como lhe expliquei. Mas Sheitan está enraivecido porque o encantamento está sendo quebrado e vai procurar um pretexto para conservar o feitiço. Portanto, vou te ensinar os últimos versos, que não podes errar de forma alguma, mas dizer as palavras tintim por tintim, sem trocar uma só sílaba, sem gaguejar e sem hesitar... caso contrário, tudo o que foi feito até agora se desfará e tu ficarás prisioneira neste salão junto comigo, só Deus sabe por quantos anos mais... Escuta bem:

"Santo espírito, aqui aprisionado,

da corrente de ferro dá-me a chave!

A Cruz eu te darei, sem mais agrave..."

“Ao repetires, todo cuidado é pouco! As palavras são muito parecidas com as anteriores e Sheitan tentará fazer com que hesites ou gaguejes... Mas tem coragem e confia em Deus. Já decoraste? Pois bem, vai até o jarrão de ferro brilhante, que contém o espírito do príncipe Ludovico, meu irmão, que sacou a espada contra o feiticeiro e foi por este condenado a ser o meu terceiro guardião. Ele tem a última das chaves...” Jéssica concordou com a cabeça, porque não queria falar nada antes, por medo de se atrapalhar, caminhou até o jarrão de ferro negro e brilhante e disse:

"Santo espírito, aqui aprisionado,

da corrente de ferro dá-me a chave!

A Cruz eu te darei, sem mais agrave..."

Prontamente, começou a subir fumaça do gargalo do jarrão, enquanto o ar tremia a seu redor, a luz escurecia e se iluminava de novo e um estranho chiado de cólera chegava a seus ouvidos, porque Sheitan sabia ter sido derrotado... A fumaça se condensou em um cavaleiro de barba loura, usando um elmo e uma armadura de ferro negro e brilhante, que lhe estendeu a mão direita. Jéssica pegou a chave de ferro e lhe entregou a cruz. O cavaleiro disse uma prece em agradecimento, transformou-se de novo em fumaça, subiu em volutas até o teto e depois desapareceu. Jéssica foi uma última vez até o lugar em que se assentava Recareda, introduziu a chave no cadeado de ferro e dito e feito! A corrente que envolvia a cintura da princesa se soltou e caiu ao solo com um tinido!...

A princesa se ergueu, esticou os braços e as pernas e estirou as costas e o pescoço, suspirando de alívio. Depois, envolveu Jéssica em um abraço apertado e agradeceu: “Menina corajosa, tu me salvaste! Mas agora não te assustes com o que vai acontecer. Uma das paredes do salão vai ruir e o rei meu pai virá me resgatar...” Dito e feito: a parede da esquerda desapareceu e chegou um cavaleiro da armadura resplandecente e uma coroa na cabeça. Era o rei Recaredo, montado em um corcel negro e puxando pela rédea uma égua branca. Atrás dele, montados em belos cavalos, com vestes brancas e brilhantes e um arcano em cada testa, vinham os três guardiães, seguidos por uma escolta de garbosos cavaleiros, portando lanças, alabardas e pendões.

O rei desmontou, tomou sua filha nos braços e a beijou. Depois, abraçou também Jéssica e lhe disse:

" Presta atenção às instruções de um rei!

Os três jarrões são o prêmio do portento,

pura Jéssica, pois quebraste o encantamento

mas não leves mais nada, pois essa é a Lei!...”

"Cada um deles contém grande tesouro:

um de dinares de prata se acha cheio;

outro tem jóias e pérolas, meio a meio

e há no terceiro maravedis de ouro!..."

"São pesados demais, chama teu pai:

ele tem forças para os carregar,

mas ninguém pode trazer para ajudar,

se outrem entrar, daqui nunca mais sai!"

"Eu te agradeço pelo que fizeste

e rezaremos por ti no Paraíso...

Vamos partir agora, que é preciso:

um bom futuro ganhaste e mereceste!..."

Então Recaredo ajudou sua filha Ricarda a montar na égua branca. A princesa estendeu a mão e Jéssica a agarrou com as duas e a beijou. A princesa falou então: “Quem deveria beijar tua mão sou eu. Tu me salvaste e isso não tem preço. Mas vou te fazer uma última recomendação. Segue as instruções de meu pai à risca e não entres nunca mais neste salão depois disso, nem tu, nem o teu pai, porque Sheitan permanece aqui. Ele não atrapalhará a retirada de tua recompensa, mas qualquer pessoa que entrar aqui de novo será levada por ele para seu reino de fogo. Adeus, querida, obrigada mais uma vez!...”

A comitiva abriu alas e o rei e a princesa saíram, seguidos pelos três guardiães e toda a escolta. Quando o último cavaleiro atravessara, a parede se restaurou magicamente. Jéssica ficou olhando em torno, maravilhada. Nada havia mudado, apenas o ataúde que parecia um cofre estava recoberto com um pano de veludo e este não tinha a menor ruga, como se ninguém jamais tivesse sentado sobre ele. No chão, havia três correntes amontoadas, uma de prata, uma de ouro e uma de ferro negro e reluzente... Jéssica sentiu um arrepio a percorrer-lhe a espinha e saiu depressa do salão em busca de seu pai.

Peregil já estava no corredor, com um archote aceso na mão. Jéssica correu para ele e o pai envolveu-a com o braço esquerdo, começando a repreendê-la pelo susto que lhe dera. Mas Jéssica contou-lhe toda a história. A princípio, o aguadeiro não acreditou, mas viu a luz passando pela fresta da porta, fez o sinal da cruz e decidiu entrar. Voltou a seguir com um dos jarrões, no qual havia recolocado a rolha e depois voltou para pegar os outros dois. Homem sensato, não tentou pegar mais nada, conforme a injunção do rei Recaredo. Jéssica o ajudou e levaram os três jarrões para o Generalife. O crepúsculo já estava virando noite, mas Peregil apagou o archote e o colocou ao lado de um dos pilares da entrada; a seguir, enterrou dois deles em um canto do jardim, bem cobertos com palha e terra. Noite fechada, colocou o terceiro nos ombros e voltou para casa com os sete filhos.

Em lá chegando, recomendou segredo a Jéssica, que serviu o jantar e pôs os irmãos para dormir sem dificuldade, pois já passava bem da hora de costume. Então foram abrir o jarrão, que estava cheio até a boca de moedas de prata de todos os tipos, siclos judeus, dinares árabes, dracmas gregas, sestércios romanos, moedas cartaginesas, visigodas, persas, turcas... No meio delas, havia algumas moedinhas menores, embora também de prata, o que foi uma sorte. No outro dia, Jéssica foi comprar comida com uma delas e roupas usadas para si e seus irmãos, a fim de substituir os farrapos. Foi comprar em muitos lugares diferentes, regateou e pechinchou, como se fosse o único dinheiro que tivesse, para não chamar a atenção.

Peregil foi até o rio com sua barrica, como de costume, vendeu a água a seus clientes habituais e foi depois procurar um carrinho de mão e uma carga de lenha; mas em um canto do galpão, viu um carroção atirado, velho e estragado, perguntou o preço, regateou e pechinchou e combinou pagar a prestações. Colocou a carga de lenha dentro dele, entrou no meio dos varais e seguiu puxando o veículo bamboleante até em casa, com grande esforço, já que uma das rodas estava quebrada pela metade, a outra frouxa, o eixo meio rachado... Passou a tarde consertando o veículo e depois lhe deu uma mão de tinta. No dia seguinte, trouxe a barrica de água de costume, mas depois comprou mais cinco barricas velhas e alugou um burrinho.

Voltou para casa, calafetou as barricas com alcatrão, colocou-as dentro do carroção, atrelou o burrinho e foi até o rio. Voltou com seis barricas cheias de água, empurrou o carroção enquanto o burro puxava, porque a carga estava muito pesada e conseguiu vender a água toda por três maravedis, uma fortuna para ele... Ainda trouxe uma segunda carga, foi pagar o imposto, um pouco dos atrasados e ainda pagou uma parte do que devia pelo carroção. Ao ver o veículo consertado e pintado, o antigo dono ficou meio desapontado. “Mas preço é preço”, declarou, dando de ombros e soltando uma risada...

Nos outros três dias, Peregil foi buscar água duas vezes por dia no rio, ganhando seis maravedis diariamente, pagando o imposto e diminuindo os atrasados. Chegado o domingo, levou a família inteira à missa, como de costume, melhor vestidos e melhor alimentados, comprou um círio (uma vela de cera grossa), que foi acender no altar da Virgem em agradecimento por sua boa sorte. Depois voltou em casa, atrelou o burrinho ao carroção e levou os filhos para o almoço habitual no Generalife, agora já bem mais limpo, passando a tarde a capinar, conforme as ordens do governador. Após cair a noite, colocou vários sacos de capim no carroção, para alimentar o burrinho, escondeu o segundo jarrão no meio deles e voltou na boleia, com os sete filhos encarapitados na carroceria, muito contentes com o passeio...

Na semana seguinte, continuou fazendo duas viagens ao rio por dia, não fez mais porque o carroção ficava muito pesado e ele tinha de empurrar para ajudar o burrinho. Mas acabou de pagar o carroção, além de diminuir bastante a sua dívida na coletoria. Não fez nada demais, mas sua pequena prosperidade já foi suficiente para despertar a inveja de seus colegas aguadeiros e, no domingo seguinte, um deles o acompanhou às escondidas enquanto ia trabalhar no Generalife.

Não viu nada de suspeito o dia inteiro, nem tampouco chamou a atenção, porque a essa altura, com o jardim já bem mais apresentável, muitas outras pessoas estavam vindo passear e fazer piqueniques. Mas quando caiu a noite e já se preparava para ir embora, observou Peregil carregar novamente o carroção com os sacos que o vira encher de capim durante a tarde e... de repente, aparecer com um fardo rígido nas costas, que não tinha a menor aparência de um saco de capim. Peregil o escondeu no meio dos sacos, os meninos sentaram em cima e foram para casa. Foi quanto bastou para o invejoso desconfiar e ir até a casa da guarda acusar Peregil de ter roubado dinheiro de alguém. Embora o Alhambra ficasse ali perto, não passou pela sua cabeça que ele tivesse encontrado algum tesouro, só acusou o outro de ladrão, porque ele mesmo já roubara antes, embora ninguém o soubesse.

Não foi levado a sério, porque todos conheciam muito bem Peregil, como homem honesto e trabalhador, mas no dia seguinte, por questão de rotina, o capitão da guarda relatou a denúncia ao governador e ambos caíram na gargalhada... Mas Dón Ortuño só riu por fora, por dentro ficou desconfiado e iniciou uma investigação. Descobriu que os filhos de Peregil estavam melhor vestidos, que ele tinha comprado o que lhe pareceu ser um carro novo, barricas, um burrico... E que ele vinha pagando os impostos diariamente na coletoria e já abatera uma boa parte de sua dívida... O governador juntou dois mais dois e achou que dava cinco... Mas o que realmente despertou sua cobiça foi a história do círio que Peregil tinha acendido no altar da Virgem, que custava no mínimo um maravedi.

Ambicioso e sabendo que sua gente não era de confiança, mandou encilhar seu cavalo e nessa noite, depois de escurecer, foi bater na casa do aguadeiro. Peregil ficou muito assustado com a visita do governador, mas o mandou entrar com todo o respeito, disse a Jéssica que levasse as crianças para o outro quarto e indagou o motivo da visita, achando que fizera muito bem em enterrar os três jarrões no abrigo do burrinho, embaixo da palha que o animal comia e em que se deitava.

O governador começou a falar de forma amigável, dizendo que havia inspecionado o jardim e que o serviço dele estava realmente ficando muito bom. Depois lhe deu os parabéns pelo carroção novo e pelo burro... Peregil explicou que comprara um carroção velho a prestações e que ele mesmo o reformara e pintara e que o burrico era só alugado... O governador insistiu que seus filhos pareciam melhor vestidos, que soubera que ele estava pagando os impostos em dia, como era seu dever... e que fora muito agradecido em acender no altar da Virgem um círio tão caro... Peregil explicou que estava ganhando muito mais com o carroção, mas o governador quis então saber de onde saíra o dinheiro para o carroção.

Peregil tentou explicar de novo, mas o governador o mandou calar a boca, porque não estava ali para bancar o idiota. Que uma coisa ou duas se explicavam, mas que ele estava fazendo gastos demais de uma hora para outra. Que fora denunciado como ladrão, no que ele não acreditava, mas que só podia haver uma explicação: ele deveria ter encontrado uma panela com moedas no Generalife enquanto estava capinando. Peregil jurou por Deus, por Jesus e a Santa Virgem que não encontrara coisa alguma no jardim, o que era a pura verdade... Mas o governador não se convenceu.

“Escute bem: posso mandar prendê-lo e na cadeia o carrasco vai lhe arrancar toda a verdade, só que quando você sair de lá – se sair... – estará de um jeito tal que nem seus filhos o reconhecerão. Ou posso mandar um destacamento para fazer busca e apreensão em sua casa. Se eles não encontrarem nada em seguida, vão desmanchar seu teto, demolir suas paredes, quebrar seus móveis e cavocar toda a sua horta. Além disso, são gente muito grosseira e certamente irão machucar os seus filhos... especialmente a sua menina mais velha, que já está ficando meio grandinha... Ou então, você pode me contar a verdade agora e me levar ao lugar em que encontrou o dinheiro, pois então, serei generoso e o deixarei ficar com uma parte do que achou... digamos, o carroção e o burrico e você poderá continuar a trabalhar sem ser importunado... Escolha: é pegar ou largar.”

Peregil estremeceu e confessou que realmente encontrara algumas moedas de ouro e prata, mas que não fora no jardim. Havia uma sala no Alhambra cheia de riquezas, mas ele não podia entrar lá de novo, porque havia um encantamento e uma maldição, só se podia entrar uma vez e sair com o que se pudesse carregar. O governador arregalou os olhos de cobiça e perguntou se havia muita coisa lá. Peregil respondeu que era um tesouro incalculável, mas que estava fora do seu alcance. Ele já havia entrado uma vez e não podia entrar de novo, por causa do feitiço. O governador mudou de tom, começou a ameaçar e já ia bater no aguadeiro, quando Jéssica abriu a porta do quarto e entrou na sala.

A menina se prontificou a guiar o Sr. Governador até o local, só que não podia entrar lá dentro, ela o levaria até a porta, mas ele teria de entrar sozinho. O governador pensou um momento e aceitou a oferta, colocou a menina na garupa e saíram para o Alhambra, noite fechada. Era inverno, caía neve e ninguém andava pelas ruas. Chegados ao Alhambra, ele amarrou o cavalo em um galho de árvore, pegou Jéssica pelo braço e foram caminhando até as ruínas. No escuro, ele hesitou – e se fosse uma armadilha? Virou o queixo de Jéssica para cima com os dedos da mão esquerda e lhe disse que estava armado e não se importaria de a matar primeiro, caso houvesse uma emboscada e ele fosse atacado. Para provar sua intenção, deu-lhe um beliscão que fez doer seu braço inteiro.

Jéssica disse que não havia emboscada alguma e que seu pai tinha deixado um archote atrás do pórtico da entrada. Que o Sr. Governador o acendesse e ela iria na frente para o guiar, qualquer coisa que atacasse, ela seria a primeira vítima, mas não tinha medo. O Sr. Governador estava com medo? Dón Ortuño sentiu-se incomodado e disse que não tinha medo de nada, mas que ninguém enfiava a cabeça em um corredor escuro sem saber o que poderia acontecer. Mas acendeu o archote que Peregil havia deixado e entrou no corredor atrás da menina, até que dobraram uma esquina e apareceu a luz que passava pela fresta da porta.

Então Jéssica parou e repetiu que o poderia levar até a porta, mas não podia ir mais adiante por causa do encantamento. Disse-lhe Jéssica então que o tesouro era defendido por Sheitan, o demônio mais poderoso dos maometanos e que ele teria de lhe pedir permissão por amor de Alá. Ora, Dón Ortuño era católico praticante e não queria se meter com heresias ou bruxarias, mas sua ambição era maior. Empurrou Jéssica até a porta, mas ela olhou pela fresta da porta e depois saiu para um lado. “Eu já lhe disse que não posso entrar, porém o Sr. Governador pode entrar e depois sair com quanto ouro e jóias puder carregar. Mas Sheitan está lá dentro, disfarçado de princesa... O senhor entra e diz a ele as palavras mágicas que lhe vou ensinar.”

"Diablos, dê-me a chave,

Pelo nome de Alá,

Sem mais entrave!..."

O governador hesitou, mas empurrou a porta e ficou parado por um momento, ofuscado pelo brilho dos candelabros refletido no ouro e nas jóias que via por toda parte. Assim que sua visão normalizou, fixou o olhar em uma mulher sentada sobre um cofre coberto com um pano de veludo, bem no meio do salão. Nem reparou nas correntes emaranhadas no chão junto a seus pés. Respirou fundo e disse:

"Diablos, dê-me a chave,

Pelo nome de Alá,

Sem mais entrave!..."

Prontamente, Sheitan assumiu sua forma normal e entregou-lhe a chave com um sorriso. Saiu para um lado e ficou pairando no ar, sustentado por suas asas de morcego. Dón Ortuño levantou o pano de veludo que cobria o cofre do tesouro e disse ao diabo que desaparecesse. Sheitan não se fez de rogado e sumiu em pleno ar. O governador deu um suspiro de alívio, girou a chave na fechadura e a tampa se abriu imediatamente...

Mas lá dentro, em vez de ouro, prata ou diamantes, estava deitado o feiticeiro Al-Azhar, que prontamente estendeu os braços, envolveu Dón Ortuño em um abraço apertado e o puxou para dentro de seu ataúde, que não era cofre coisa nenhuma!... Sheitan soltou uma sonora gargalhada e a tampa do caixão se fechou, com os dois abraçados em seu interior!... Então Jéssica viu o diabo bater com o casco fendido no chão e imediatamente o salão inteiro desapareceu, deixando atrás de si apenas a escuridão e um cheiro forte de enxofre...

Jéssica soltou um grito de pavor, girou nos calcanhares e correu para a saída, sem sequer um tropeção, apesar do escuro. E o archote? Dón Ortuño havia entrado com ele na mão e o deixara cair ao ser puxado para dentro do que seria seu túmulo eterno... O cheiro a acompanhava e quando chegou ao cavalo, este se assustou, rebentou a rédea e saiu em carreira desabalada até se perder pelos campos fora da cidade. Daí a dois dias foi trazido de volta e a cidade inteira comentava sobre o estranho desaparecimento do governador, sem que ninguém soubesse a explicação.

Jéssica chegara em casa sem ser vista e ninguém desconfiou dela nem de Peregil. Mas este pensou bastante, vendeu a casa pelo melhor preço, comprou quatro cavalos, que atrelou em seu carroção, agora bem reforçado, colocou seus pertences no interior, os três jarrões escondidos em um fundo falso, subiu na boleia com Jéssica, enquanto os seis meninos menores sentavam entre móveis velhos e sacos de batatas e deixou a cidade, buscando um lugar em que sua riqueza pudesse ser aceita sem chamar a atenção.

Levaram duas semanas viajando e cruzaram a fronteira de Portugal sem serem perturbados por ninguém, era só uma família de camponeses pobres... Em Lisboa, primeiro alugou um casarão, montou um armazém na parte de baixo e se arranjaram no andar de cima... O negócio prosperou, porque Peregil comprou bastante mercadoria e viveram tranquilamente durante muitos anos. Peregil casou de novo e, no devido tempo, Jéssica também se casou, teve muitos filhos e foi muito feliz. Seus irmãos também se encaminharam na vida, cada um seguindo seu próprio destino.

Mas à bela cidade de Granada nenhum deles nunca mais voltou... Contudo, recebiam notícias de vez em quando, através de viajantes e ficaram sabendo que nos saraus e serões familiares, a lenda do tesouro do Alhambra continuava a ser contada, embora nunca ninguém o tivesse podido encontrar, de mistura com outras histórias interessantes, como aquela de Dón Ortuño Ortega de Ortiz y Orellana, o governador nomeado pelo rei, que governara com mão de ferro a cidade durante muitos anos e que desaparece sem deixar rastro. Mas ninguém gostava dele, não tinha amigos e nem sequer família e a opinião geral era a de que alguém o havia matado e escondido o corpo em algum lugar. O fato é que ele nunca mais foi visto por ninguém, nem em Granada, nem em qualquer outra parte da orgulhosa Espanha. Com o tempo, a história se tornou uma lenda e o narrador sempre concluía, dizendo:

Que o melhor mesmo é perguntas não fazer,

Pois talvez venha Sheitan lhe responder...

E todos lhe batiam palmas pela história, enquanto uma série de risinhos nervosos percorria a sala e alguns espiavam por sobre os ombros, vendo através das janelas a escuridão da noite fria de inverno...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 14/06/2011
Código do texto: T3033988
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