VISÃO DE BELEZA *

Trabalhar era para fazer durante o dia, a noite era para lazer e descanso, aquilo estava mexendo com seu metabolismo na inversão dos seus costumes, andava impaciente, intolerante consigo mesmo. Acabava por chegar no horário em que a maioria dos mortais se preparavam para sair, e ele chegando para dormir. Pior de tudo era a perda do sono, depois de cochilar entre uma ligação e outra do plantão no suporte para clientes do banco. Havia sempre alguém para infernizar nas madrugadas, razão pela qual era necessário estar a postos. O fato bom era o acréscimo no salário pelo adicional noturno, aquilo amenizava um pouco o incômodo, mas não supria o desconforto de alterar os costumes. Tinha o dia de sol quente para dormir e a noite para trabalhar, o difícil era conciliar o sossego com os naturais barulhos da vida cotidiana de um dia claro, movimentado, assim estava se tornando um sonâmbulo...

Acostumava chegar em casa e ir para a cozinha, se controlando para não tomar café e acabar de vez com o sono, necessário descanso, assim tomava um copo de água, esperava sentir o torpor do cansaço para enfim recolher-se ao leito. Da janela em que estava absorto tomando em goles a água, observava desatento uma sombra humana, que apesar de ainda tão cedo, mexia com a terra de uma floreira de alvenaria no prédio, o pequeno jardim suspenso ficava no parapeito da janela, onde debruçada, revolvia a terra e ajeitava as plantas, belas rosas e margaridas... A cozinha dava visão para os fundos do prédio fronteiriço.

Cada louco com a sua mania... pensava esboçando um riso. Esse procedimento era diário, todos os princípios de manhã em que retornava, enervado do trabalho, contando os dias para voltar à sua rotina normal, via sempre aquela figura feminina naquela tarefa de cuidar daquela floreira, que, diga-se, estava exuberante, dando frutos, ou melhor, flores, rosas brancas, vermelhas, amarelas, graciosas margaridas e crisântemos. A faina acabava já com os primeiros raios de sol, quando os pássaros, em alegre algazarra, vinham visitar aquela florista, como que compartilhando de seus afazeres entretida em sua paciente ocupação diária, até a delicadeza de beija-flores eram vistos, aquilo o entretinha, então, vencido pelo cansaço, cedia ao sono reparador.

Nos dias que se seguiram, como um ritual, acompanhava a movimentação daquela mulher, entretida com sua roseira, bem cedo, quase ainda na madrugada, sempre pontual, presente em seu posto.. Acostumara-se em observá-la, aquilo fazia com que esquecesse os incômodos que sentia pela inversão de horários de trabalho e as chateações suportadas nas noites intermináveis com o descanso incomodado e interrompido, além dos clientes insatisfeitos transferindo a ele, atendente, seus azedumes e mau humores.

Certa madrugada, chovia, entrou rápido em casa, pegou o copo com água e, pasmo, observou que a mulher, com um guarda chuvas aberto, protegia o jardim suspenso, tentando evitar que suas flores fossem danificadas pelos excessos da chuva... ali permaneceu, vigilante, até que as águas fossem amainando, virando chuviscos.

Aquela cena surreal durou algum tempo, onde via-se na torcida por ela vencer as forças da natureza, parecendo um Davi em luta com um Golias, portando como arma apenas um frágil protetor desafiando a força indômita, até a água amainar e ela fechar o protetor de suas queridas flores... Então foi vencido pelo torpor do cansaço.

Acompanhava o desenvolvimento das plantas de tenras a adultas, brotando vivas, oásis colorido em contraste com a parede quase cinza de fumaça do edifício. Ela trabalhava incansável em cada nascer do dia claro, e ele passou a assisti-la de longe, até que, sempre vencido pelo sono, adormecesse.

Estabelecia-se uma nova rotina, a de assistir o trabalho meticuloso daquela estranha mulher, jovem ainda, talvez bela, pois não conseguia vê-la em detalhes, dada a distância. Mas o que o surpreendia era a assiduidade com que cuidava daquele espaço florido, parecendo que rejuvenescia a cada dia em esplendorosas cores nas vivas flores, tal o enfeite em uma natureza inexpressiva, até agressiva, pois era um paredão escuro, sem pinturas há tempos e enegrecido pela fuligem sedimentada em anos de descaso. Assim, sobressaía naquela paisagem lúgubre, a beleza daquele verdadeiro enfeite natural, quebrando a sisudez do cinza plúmbeo.

Passou a nutrir por aquela pessoa desconhecida uma admiração especial, como se fizesse, sozinha, num trabalho de formiguinha, toda a diferença. Enaltecia daquele pequeno jardim, como uma desculpa pela presença sombria daquela edificação mal cuidada. E, sem se dar conta, era seu espectador à distância, entretido com seu trabalho diuturno no raiar das madrugadas.

As férias do colega se consumiram, ele voltara ao sonhado horário normal, onde se trabalha com a luz do dia e se descansa nas noites.

Entretanto, permanecia aquele desejo de apreciá-la em seu trabalho, ganhara um admirador anônimo, jamais percebia que era vista e acompanhada de outra janela, de uma cozinha, por um morador que, por força das circunstâncias, madrugava.

O tempo se encarregou de as coisas, para ele, voltar à normalidade, sendo a imagem da florista uma lembrança terna que ficou na memória, já não a acompanhava, dormia naquele horário, só acordando mais tarde...

Numa manhã de domingo, saindo para dar um passeio, enquanto esperava para atravessar a rua, a viu de longe, parecia ser ela. Dava a entender que tinha dificuldades para transpor a distância entre as duas calçadas, ou seria impressão dele ? Aproximou-se.

_ Bom dia, posso ajudá-la em alguma coisa ? Só então observou que ela tateava com um pequeno bastão, próprio para pessoas com deficiência visual. Agradecida, deu o braço para que fosse transposta entre as pequenas distâncias.

- Sou seu vizinho, do prédio em frente. A via cuidando da sua floreira, sempre bem cuidada, lindas flores...

- Então, apesar de não enxergar muito, a ouviu satisfeita: são a minha vida, uma forma que encontrei de saudar sempre um novo dia... muito obrigado !

Ela se afastava, e ele, lágrimas escorrendo, colhia mais uma flor no jardim das lições da vida...

*PUBLICADO EM LIVRO NA ANTOLOGIA DE CRÔNICAS DA CÂMARA BRASILEIRA DE JOVENS ESCRITORES, CBJE-RJ, DEZEMBRO DE 2011.