A Busca de uma Espera

Meu nome é Charles Begaws, sou morador da Rua Princeton, número 4. Tenho alguns anos de vida, na verdade, tenho 88 anos. Muito tempo se passou desde aquele dia, foram setenta anos, mas em minha memória ‘inda parece ter sido ontem. Na época, como os bons matemáticos previram, eu tinha 18 anos, o ano era o de 2010. Eu não era o tipo de garoto que chamava atenção das garotas, mas tinha um bom número de amores, cartas e paixões declaradas. Quanto aos garotos, eram como as garotas: havia os que me amavam, e os que não. Não era feio, não era belo. Era só o Charles, da Rua Princeton, número 4.

Tudo aconteceu em uma noite, uma noite que durou o tempo exato de um livro. Mas seria chato contar, mas contarei da melhor maneira possível. Eu estava no terceiro ano. Era da turma dos caras felizes, era da turma mais benquista. Era um bom aluno, só não gostava de literatura e de poesias. Para quê? Por que escrever algo que ninguém lerá? Por que falar de sonhos, rumores, tempestades que nunca virão? Mal sabia eu, tolo e inóspito garoto, que dentro de poucos – na verdade sessenta anos – teria a resposta.

Era meio-dia e meia, o sol estava quente, o vento frio. Olhava ao meu redor e via as garotas, algumas sorriam, outras não. Os garotos também. Alguns corriam jogando bola ou exercitando-se. Outros liam romances de Goethe. Eu? Apenas estava sentado pensando no que almoçar. Como sempre minha mãe estava atrasada.

Minha mãe... O que dizer de mamãe? Uma figura quase que pitoresca. Uma verdadeira cobra na pele de mulher, um ser repugnante e que eu amava, e etc. Mamãe não era dessas. Era como Julieta, sempre doce e meiga, alguém que, sei eu, morreria por mim. Ela tinha olhos verdes – está ai um motivo para odiá-la: eu tinha olhos azuis, heranças de papai. Papai era um homem dos negócios: vendia armas. Ora para os “mocinhos”, ora para os “vilões”. Morreu jovem: tinha 33 anos. Levou um tiro na porta de casa. Eu vi tudo da janela, não fiz nada. Como disse, amava meus pais, e etc.

Voltando ao meu almoço, depois de longos minutos de espera por mamãe – que em partes adorou a morte de meu pai: herdou bilhões de dólares e uma imunidade na Justiça. Como dizem os teóricos do Caos: “um simples bater de asas no Atlântico, pode causar um furação no Pacifico.” Será? Digo que sim: um simples tiro na porta de uma casa, matando o que restava de uma família, poderia deixar alguém feliz. Um pai rico, sem parentes? Restava a esposa e o filho. Poderia estar feliz não?Acho que não: preferia minha família, ou ao menos o que tinha restado dela.

Almocei qualquer coisa, algo francês eu acho. Queria dormir um pouco, mas tinha lição: fazer uma redação sobre algum político corrupto eu acho. Pensei em papai, mas acho que ele deveria estar vivo, não? Falei sobre algum senador de algum lugar, não sei nem ao menos o nome de minha personagem. Eu era bem diferente de mamãe e papai: eu era honesto, não gostava de violência, de crimes. Era pacato. Resolvi ouvir um pouco de música. Qual? Fiquei horas por escolher uma, que quando dei por mim já era quase noite. E quando terminei de ouvir já era de madrugada. Eu ouvi Alanis Morissette, Crazy. É uma boa música. Não a ouço muitas vezes, mas ouço. Prefiro rock a melodias e sinfonias. Não gostava muito de ouvir mulheres. Hoje, nada me resta se não ouvi-las e imaginá-las.

Deixei o cd rodando. Dormi ao som de Alanis. A noite foi se adentrando. Colocava em estado imperturbável, como se nada mais estivesse vivendo, além de mim e meu sono. Sonhos? Não me lembro de nenhum. Pesadelos? Poucos. Não costumo sonhar com nada. Sonhos são coisas estranhas: fazem do homem um rato dentro de sua toca. Sempre esperando a hora certa de sair. A hora em que o gato não está mais em casa. Quando o gato sai, os ratos fazem a festa. Isso são sonhos: ratos que aproveitam da saída da razão, este gato insano que some às vezes para fazerem a festa. Eu não gosto de sonhar, mas sabem o que dizem: os sonhos fogem ao controle dos homens. E mais: eles refletem o que temos dentro de nosso mais profundo inconsciente, nosso mais profundo eu. Um lugar que até mesmo os mais corajosos desconhecem, um mundo que sai deste. Será mesmo? Contar-lhe-ei o meu: estava em uma casa, cheia de nada. Cheia de nada? Como pode uma casa cheia de nada? Então como podemos estar cheios de tudo? A casa estava cheia de nada, cheia de algo que faltava. Algo que inexplicavelmente não estava lá.

O mais estranho de tudo isso era que não tinha medo. Sentia-me em casa, como se tudo estivesse em seu devido lugar, como se nada mais importasse. Estava feliz, como nunca havia estado nestes últimos anos sem papai. Desejei que tudo fosse assim para sempre. Tolice: como eu disse os sonhos não servem para nada. Eles são rato que se divertem quando a razão sai de casa.

Por falar em casa: aquela era uma bela casa. Tinha madeiras velhas, parecia ser da época do colonialismo. Droga! Colonialismo, até nos sonhos o tema da prova de história estava em minha mente? Espere. Se conseguir pensar, estou acordado. Mas como, se não estou em casa? Talvez os sonhos não sejam tão ratos assim. Talvez sejam. Só queria acordar, sair daquela casa velha e mofada.

Resolvi explorar o lugar: havia fotos em preto e branco. Poderia passar horas e horas imaginando quem seriam aquelas pessoas. Que seriam dela hoje: ossos? Pó? Matéria? Alma? Estranho, mas eu agora consigo entender que eu sou apenas isso: corpo. O que sobrará de mim quando isso se for? Talvez eu deixe alguma “amada mulher” rica. Não, definitivamente, não. Não é isso que eu quero. Quero se lembrado por algo, algo... Mas o quê?

O despertador tocou. Era tão estranho: primeiro querer sair. E quando sair: querer voltar. A mente humana é mesmo fantástica. Cheia de ações e não-ações, mas ambas, ações. Muitas vezes corremos atrás de nossos sonhos. Buscamos a felicidade. Outras, esperamos que tudo aconteça e quando passar por nós: estará tudo ótimo.

Hora de levantar. Hora de viver um novo dia, um dia como outro qualquer. Cheio de problemas e coisas para resolver. Cheio de tudo. Pobre de mim: não sabia que o dia seria cheio. Não cheio de tudo, como eram os outros dias. Mas, cheio de nada, como seriam os outros dias, o resto dos dias...

Café. Nunca quis um café como agora. Desci as escadas, no caminho vi a porta do quarto de mamãe aberta, olhei e não a vi. Imaginei que talvez tivesse ido trabalhar, ou algo do tipo. E onde estaria Marta? Chamei por nossa empregada por toda a casa, e nada. Café: onde estaria o café? Droga! Tantos dias para Marta faltar, e justo hoje? Só poderia ser brincadeira...

Genial: não precisava tomar café em casa. Poderia tomar um no caminho da escola. Tomei meu banho, comumente. Mas algo mudaria meu dia: o rádio ligou sozinho em uma música. Forgiven. Seria demais ouvir Alanis antes de ir para a escola? Com certeza. Desliguei o rádio e tomei meu rumo.

Cada passo que dava era estranho: nenhum carro. Nenhuma bicicleta. Nada. Tudo, simplesmente tudo, tinha parado. Era como de madrugada: tudo está lá, mas não acontece. Nenhum carro? Ninguém correndo para pegar um ônibus. Nada. Tudo vazio. Solitário... Sem nada.

Achei estranho, mas continuei. E a cada passo tudo piorava. O centro de Silverston estava vazio. O shopping, os mercados, tudo. Não havia ninguém. Preocupei-me. Passei a imaginar o que teria ocorrido. Talvez um ataque nuclear? Não, estaria cheio de soldados e máquinas. O que estaria acontecendo?

A situação, que parecia não poder ficar mais estranha, piorou: a escola. Vazia, não havia alunos. Não havia professores, nada. Somente o vazio das salas. E o mais estranho: tudo estava arrumado. Como se somente as pessoas tivessem desaparecido. Assustei-me, e assustado estou até hoje. Deixe a mochila e corri para casa. Peguei o telefone e disquei o número de mamãe: - O número chamado está fora da área de cobertura ou está desligado. Tentei o de Marta, o mesmo. Liguei para o meu: chamou. Estranho. Liguei para nosso vizinho Robert, o mesmo: - O número chamado está fora da área de cobertura ou está desligado. Todos os números, exceto o meu estavam fora da área de cobertura.

Disquei para a polícia, os bombeiros, os hospitais e as funerárias. Tudo, absolutamente tudo, deixou de funcionar. Exceto meu número. Estava como fome. Desde que me levantei não comi nada. Então, tomei o cartão reserva (uma coisa que mamãe sempre me incentivou: guardar um cartão, em um banco à parte para emergências) e fui. Mal sabia eu que não seria necessário.

Fui andando, já que não tinha carta e não havia ônibus pelo caminho. Nem ônibus, nem pessoas, nem cães. Pássaros, tampouco. Nada. Tudo havia desaparecido ou, como uma loucura, nunca existiu? Quando cheguei, o mercado parecia uma casa vazia. Velha, mas ainda sim, aconchegante.

Não havia ninguém: nem funcionários, nem clientes. O que fazer? Peguei algumas coisas e fui para casa. Estava um pouco assustado ainda, mas estava tendo encontrar uma razão lógica para tudo isso. Para todo um mundo ter desaparecido, como se nunca tivesse existido. Como se tudo fosse apenas um sonho... O sonho. Lembrei-me dele. Seria tão bom que o despertador tocasse, e eu me levantasse com mamãe gritando comigo.

Preparei algo para comer. Nada muito divino, como as comidas francesas que mamãe encomendava nos restaurantes da cidade. Nada muito bom, como as comidas de Marta. Algo apenas, comível. A TV: será que haveria algo nela? Liguei. Todos os canais estavam fora do ar. Droga. Coloquei um filme: Diários de Motocicleta. Havia alugado ontem, mas não assistido. Resolvi ver. Um ótimo filme. Lavei a louça, já que Marta não viria. A essa altura, já tinha aceitado que em Silverston, possivelmente, não haveria ninguém, além de mim.

Liguei meu computador e para minha surpresa a internete funcionava. Fiz login em meu skype e nada. Não havia ninguém. Pesquisei no Google e não havia nada. Todos os sites estavam fora do ar. Tudo havia saído ar. Desesperei-me. Gritei, chorei. Dormi. Queria muito dormir, por os pensamentos em ordem, ver se tudo não poderia passar de um simples sonho, de um simples pesadelo. Tudo bem, um sonho ou pesadelo, porquê de simples não teria nada.

Eram quase oito horas da noite quando acordei. Acordei feliz. Tudo tinha voltado ao normal, até que sai na rua e tudo continuava lá. Como de manhã: tudo sem nada. Assisti ao filme de novo. E de novo. O assisti quatro ou cinco vezes. Cansado, tirei do aparelho e fui até a locadora: vazia. Procurei um filme, e o peguei: levei um papel e anotei quanto havia custado o filme. Assim fiz no mercado e em todo o resto. Anotava o nome do estabelecimento e quanto estava devendo lá, para o caso de tudo voltar ao normal.

Os dias foram passando. Veio uma semana, um mês, dois. E o tempo voava, como se Hermes, o deus grego do comércio, tivesse emprestado para ele suas sandálias e seu capacete. Tudo acontecia normalmente: veio à primavera, depois o verão. O calor era insuportável. Veio então o outono e o frio do inverno. Tudo seguia: menos a naturalidade da própria vida.

E tempo passou. As árvores cresceram, deram frutos. As flores desabrocharam. Mas o resto continua igual. Tudo como era. Não teria problemas com roupas, comida ou o quer que fosse: não havia mais ninguém no mundo. No mundo? Não seria um pouco precipitado dizer isso? Está questão assolou minhas noites por dias e dias. Até que tomei uma decisão, não sei se correta e acertada, mas tomada: eu iria procurar por alguém. Quem quer que fosse: alguém deveria estar por aí. Pensando o mesmo que eu? Seria irônico demais. Mas, deve haver alguém. Tem de haver.

Tranquei-me em meu quarto por semanas. Não tomava banho ou comia. Apenas pensava: como sair de Silverston e procurar alguém no mundo? Tomei nota de tudo o que precisaria: comida, um carro. Um carro! Não sabia dirigir? Precisaria estudar e achar livros sobre o assunto. Aprender a concertar um carro, para o caso de ele quebrar. Precisaria aprender primeiros socorros, ter um kit para isso. Roupas, armas – nunca se sabe o que pode estar lá fora. Precisaria de tudo isso, para encontrar algo que talvez seja nada. Irônico? Não. Repugnante.

E assim foi seguindo minha vida: aprendi a dirigir. Li sobre primeiro socorros. Aprendi código Morse e todo o resto. E os anos seguiram. Tudo mudava, mas nada mudava. Era como se a vida continuasse, sem alguém para vivê-la. Sentia muito medo de seguir em busca de algo que pode nem existir. Era como... Era como um sonho. Questionei-me sobre o caráter irônico de meu aferimento. E os anos continuavam.

Continuavam cruelmente. Cada dia que passava eu pensava em desistir. Mas algo dentro de mim, algo que não sabia explicar me fazia continuar. Algo que eu mesmo desconhecia. Algo que não poderia fazer sentido. Era o meu sonho: encontrar alguém. Finalmente, eu entendi o valor dos sonhos. Não eram ratos que se divertiam quando o gato saía. Eram gatos que saíam, para que um rato chamado razão pudesse divertir-se.

E os anos passaram para mim. Há alguns anos atrás estava com 20 anos. Depois com 30, e 40 anos. Então, vieram os 50, 60 e 70 anos. Tantos anos sempre encontrando um empecilho para minha jornada. Primeiro foi aprender a dirigir. Depois os primeiros socorros. Logo, veio às armas, depois o carro apropriado. Ler mapas. Acabei estudando tudo o que deveria estudar na escola, sozinho. Não tinha um professor, então, deveria acertar. Sempre.

Foi quando, em uma ida à biblioteca, procurando por um livro sobre caça, encontrei um livro de histórias aberto. Achei engraçado. Depois me animei: poderia ter sido alguém. Procurei por toda a biblioteca, cada canto. Cada sala, cada andar e banheiro. E nada. Talvez tivesse sido eu quem o derrubou. Era um livro de histórias antigas. Sobre guerras que ocorreram a séculos. Sobre algo que eu não tinha vivido e que, possivelmente, não viveria.

Sentei-me para ler, parecia interessante: contava o momento em que Aquiles, um herói grego, filho de uma deusa, morre. Achei interessante e li: Aquiles, quando jovem foi banhado em um rio, que deixou sua pele invulnerável. Mas sua mãe, uma bela deusa, esqueceu-se do calcanhar. E este, seria seu único ponto fraco. Durante a guerra descrita, um arqueiro qualquer dispara uma flecha que, guiada pelo deus Apolo – ultrajado com as ofensas de Aquiles –, perfura o calcanhar do jovem. Quando terminei, coloquei-me em um estado de riso incontrolável, que logo foi controlado por um ápice de loucura: escrever para o futuro sobre minha vida.

Loucura. Eu? Escrever um livro? Loucura. Só poderia estar ficando louco. E estou mesmo. Quando cheguei a casa, liguei o computador e comecei a escrever. E contei, contei. Contei tudo o que aconteceu comigo. Escrevi durante cinco anos. E quando acabei, imprimi. E intitulei: A jornada de Aquiles. Uma clara homenagem aquele Aquiles, que sendo invulnerável dentro de seu mundo, dentro de sua heroicidade, morreu pelas mãos de um desconhecido. Alguém que, mesmo guiado por um deus, era comum. E isto ficou dentro de minha cabeça por dias e dias.

Enfim, chegaram-se meus 87 anos. Sentia-me cansado, velho. Mas ainda havia dentro de mim um calor e uma força, algo que meu verdadeiro rato desconhecia: o sonho. O sonho de encontrar alguém fosse quem fosse. Fosse um bandido, um ladrão, uma mulher, uma criança. Fosse quem fosse eu deveria encontrar. Eu tinha de encontrar. Era o que me restava: resolver esta duvida cruel que me corroia por dentro. Era como se tudo se resumisse a uma busca por nada. Nada além de um sonho, nada além de um simples e misero sonho. Como podia ser isso? Criar uma vida inteira em torno de algo tão peculiar, tão falível. Tão repugnante como um sonho.

E assim eu vivi os meus 88 anos: buscando algo que eu nunca soube se existiu. Algo que fugia de minha própria consciência. E foi com exatos 88 anos, oito meses e cinco dias, no dia seis de julho de 2080, eu peguei a chave do carro, os livros, o meu livro, tudo. Tudo o que havia preparado para esta busca. Uma busca que durou toda a minha vida. Melhor, uma espera por uma busca que durou toda a minha vida. Algo que na verdade nunca aconteceu. Eu estava sozinho no mundo. Não sabia por quê. Não queria saber o porquê. Só queria ter certeza. Ter certeza de que estava sozinho, de que não havia um cachorro em qualquer parte do mundo para me fazer companhia.

Era só o que me restava: buscar. Buscar por algo. Por alguma coisa. Por alguém. Talvez eu encontre um dia, talvez eu ache. Talvez não.

Foram setenta anos de uma vida preparando-se para algo. Algo que nunca veio. Como o Aquiles do passado, Charles também foi vitima de algo comum. Algo que é tão comum, que chega a fugir do mesmo: a morte. E no dia em que ia partir para sua tão esperada busca por certezas, uma busca que possivelmente duraria todo o resto de sua vida, ele, simples e comumente, morreu. Morreu por uma flecha guiada por algo que até eu desconheço...

"Leiam minha apresentação: http://www.recantodasletras.com.br/cartas/2394709"

Le Vay
Enviado por Le Vay em 05/07/2010
Reeditado em 23/07/2010
Código do texto: T2359379
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