Técnica e Espontaneidade

Outro dia - Ih, mentira! Já faz tempo... - me peguei pensando de onde tirara essa idéia, a de escrever. Meu primeiro impulso foi responder: “Ora bolas, porque mesmo!”, assim como faziam os adultos da minha infância, quando eu vinha com meus enervantes “por quês”. Pensando, pensando... (não como o burro da minha tia, que morreu assim) peguei no sono e sonhei com uma história que corria como um filme, em sépia. A história foi mais ou menos assim:

Já havia muito que Espontaneidade – Espontânea, para os amigos - andava tentando melhorar suas habilidades textuais. Numa dessas favoráveis constelações da vida, achou-se com tempo disponível e uma vaga num dos cursos mais concorridos do semestre. Já cansada de tantos cursos focados em gramática, Espontânea buscava outra coisa, embora não soubesse ainda bem o quê. E lá se foi, toda contente, rumo à primeira aula.

A turma estava lotada. Lá estavam, entre outros, Criatividade, Imaginação, Prazer-de-Escrever e Técnica. A instrutora, Professora Doutora-Doutora Crítica - Não é erro não; é Doutora duas vezes mesmo, que defendeu duas teses de doutorado. Se bem que aqui será simplesmente Dona Cri-Cri, apelido (sigiloso?) de corredores. Bom, em seus julgamentos, mostrava-se ora simpática, ora cruel. Acima de tudo, uma profissional com excelentes qualificações.

A turma encontrava-se uma única vez por semana, por duas horas. Entre uma semana e outra havia um ritual que todos tinham que cumprir: para cada semana era dado um tema. Cada participante escrevia um texto, com um numero limitado de palavras, e o submetia à revisão, anônima, feita pelo próprio grupo. As aulas giravam em torno da discussão de defeitos e qualidades dos textos da semana. Somente a instrutora conhecia a autoria de cada texto.

Espontânea, distraída como ela só, teve um texto excluído da discussão logo na primeira semana. Isso, por haver excedido - e muito! – a quantidade máxima de palavras.

- Mas esse curso não é para "se escrever"? – tentou ainda argumentar com a professora.

- As regras são bem claras. Além do mais, não tenho tempo suficiente para ler todos os textos. Pedi 200 palavras, no máximo, e não um romance! – replicou a professora, encerrando o assunto. Foi o suficiente para que Espontânea não repetisse o erro.

Logo na primeira rodada de discussões, notável participação da colega Técnica. Suas considerações eram pertinentes porém duras, secas, a ponto de alguns colegas tomarem suas observações como algo pessoal – o que na verdade não era, pois a autoria dos textos era omitida - e não quererem mais participar nas próximas discussões.

Espontânea, por sua vez, observava calada e ia tentando aprender com os erros que Técnica apontava, muitas vezes até com um certo prazer. Para que todos pudessem aproveitar melhor os momentos de discussão, Dona Cri-Cri sugeriu, para cada ponto negativo, que se procurasse - e encontrasse - algo positivo em cada texto, para contrabalancear. Logo ficou bem claro para o grupo que a colega Técnica economizava em elogios, contudo extravasava quando se tratava de encontrar defeitos.

Do meio para o final do curso, Espontânea nem tinha mais vontade de continuar escrevendo, de tanto que se preocupava com a forma. No entanto, um desejo enorme de ir até o fim ardia cada vez mais forte dentro dela. Parecia que havia se tornado questão de honra escrever um texto no qual Técnica não pudesse encontrar defeito - Essa filha da mãe vai ver uma coisa! Pode esperar!

Espontânea escrevia e concentrava-se em evitar os erros já conhecidos, mas Técnica sempre encontrava algo novo para criticar. Dona Cri-Cri não opinava. Deixava o circo pegar fogo e limitava-se a fazer anotações. Ao final de cada rodada, cada participante recebia de Dona Cri-Cri uma avaliação individual, via Email.

Então chegou a tarefa final. Um texto, naturalmente. Um ensaio, para ser mais precisa. Faltando poucos dias para encerrar o prazo de submissão, Espontânea encontra-se, numa lanchonete, com alguns colegas que, tímidos, manifestavam-se pouco durante as discussões semanais.

- Pois é gente, tô de saco cheio desse curso... E logo eu, que adoro escrever! – contou o entediado Prazer-de-Escrever.

- Tô tão desiludida, não tenho mais vontade de continuar – emendou de lá a baixinha Autoconfiança.

- Eu também! Olhe que tenho uma vontade de esganar aquela arrogante daquela Técnica! Quando abre a boca, só é pra encontrar defeitos no que escrevemos. Tenho ímpetos de sair correndo da sala, pegar minha amiga Imaginação pela mão e ir lá pra fora, tomar ar puro, fazer outra coisa. Se tem uma coisa que eu não suporto é me sentir amarrada, tolhida, presa. Abaixo a repressão! – Completou Criatividade, indignada.

- Eu nunca havia pensado que escrever fosse tão difícil... – comentou Espontânea.

- Querem saber de uma coisa, gente: mandemos a Técnica e suas criticas plantar batatas!– reagiu Prazer-de-Escrever, como se tivesse tomado um choque e, em seguida, reavendo a habitual exaltação, adicionou: - Técnica, com sua obsessão por forma e sentido perfeitos só está nos causando bloqueio. Eu não entendo como a professora ainda não se manifestou durante nossas discussões. Os comentários individuais que tenho recebido dela são bastante encorajadores até... Para quê se escreve, afinal?

- Sério? Os nossos também! – disseram Criatividade e Imaginação, em coro, revigoradas com a declaração do colega.

- Peraí gente! – atalhou Espontânea – É bem verdade que Técnica tem sido severa conosco, mas não podemos negar que suas críticas têm nos ajudado. Olhem, acho que o quê devemos fazer é não levá-la tão a sério, e estou dizendo isso a mim mesma em primeiro lugar. Talvez a Cri-Cri simplesmente não queira interferir no processo, pois cada um tem que encontrar o seu caminho, por conta própria. Durante todo esse tempo, tenho me preocupado tanto com as opiniões da Técnica que até me esqueci das verdadeiras mensagens que queria transmitir com meus escritos, esqueci dos meus leitores, gente para quem realmente estava motivada a escrever.

Os colegas ouviram-na atentamente e assentiram, em silêncio. Sentindo–se um pouco mais encorajada, Espontânea despediu-se: - Desculpem-me, amigos. Devo deixá-los agora. É que tenho um texto para terminar e entregar até o final da semana. Até a próxima!

- Sim, e nós também. Até!

Ultimo dia de curso. Tensão. Ansiedade. Dessa vez os julgamentos foram proferidos, abertamente, por Doutora-Doutora Crítica:

- Colegas, como vocês mesmos já devem ter percebido, progredimos muito até aqui. Isso me alegra profundamente, já que o objetivo maior de nossos encontros era dar-lhes ferramentas para a produção de textos cada vez melhores. Eu, de minha parte, estou satisfeita com os resultados. No entanto, tenho algo especial para cada um de vocês.

Técnica, seus textos são em geral muito bons. Estrutura, Gramática Ortografia, Norma etc. Impecáveis! Por outro lado, penso que tenha negligenciado, de certa forma, seus leitores. Seus textos são excessivamente formais, precisos e diretos, soam frios. Até parece que foram produzidos por um computador. Se você pretende seguir um caminho literário, aconselho-a a melhorar o trabalho com as emoções. Seu leitor é, acima de tudo, um ser humano – e gosta de ser tratado como tal.

Os textos produzidos por Prazer-de-Escrever, Imaginação e Criatividade pareceram-me já muito mais naturais. No entanto, não há que se olvidar das considerações da Técnica. Os mecanismos da Linguagem existem, exatamente, para que se tire deles o proveito desejado. Lembrem-se: palavra é poder, mas é preciso saber usar. As idéias dos textos são muito boas, e originais também. Meus sinceros parabéns! Por outro lado, o verdadeiro escritor revela-se mesmo é na hora de se trabalhar o texto. Pelo menos assim dizem alguns dos grandes nomes da Literatura mundial.

Espontânea, você... Algo que me chamou bastante a atenção em seus textos foi a metamorfose deles, ao longo de nossos encontros. O seu esforço em atingir “a forma perfeita” – de acordo com a colega Técnica, claro! – fez-lhe partir do muito informal, passar pelo extremo formal e depois voltar para um meio-termo, ponto em que pude perceber, novamente, vida em seus textos. Gosto da forma honesta e cuidadosa de seus escritos.

E assim foi com o restante da turma, até proferir seu discurso final:

- Até que nos tornemos grandes escritores, cada um de nós tem um longo caminho a percorrer e, sobretudo, muito o que aprender. Um conselho que poderia lhes dar é o seguinte: busquem equilíbrio por meio de seus escritos; misturem vários elementos, tais como Espontaneidade, Técnica, Criatividade, Imaginação, tudo regado a intuição, como nos mostrou o colega Prazer-de- Escrever; envolva os leitores, converse com eles; Ah, e muito importante: não levem as críticas assim tão a sério! Biografias de grandes autores nos mostram que escrever é algo que se faz, primeiro, com o coração, depois com a cabeça. A única fórmula certa parece ser mesmo aquela que diz: “Escrever só se aprende MESMO escrevendo!”

E assim, com o discurso da professora ainda ressoando na cabeça, fui acordando devagar, tomando consciência de onde estava. Tinha uma sensação incrivelmente boa, de ter aprendido muita coisa útil enquanto dormia. Interessantes os caminhos da mente humana...

Vez ou outra tenho medo dos meus sonhos. É que me parecem tão reais! Será que foi mesmo só um sonho? Tantos detalhes... Sei lá... Talvez em uma outra vida?... Quem sabe...

Nota da autora:

Escrevi esse texto já faz muito tempo (pelo menos há uns seis meses atrás) Creio que o escrevi inspirada num dos primeiros textos que li aqui, no Recanto. Estava marcado para ir para a lixeira. Reli, dei uma ajeitadinha e resolvi dar a ele uma nova chance... Afinal, o pior que pode acontecer com ele é não cair na graça dos leitores... Ah!, Nabokov, ao terminar seu manuscrito de Lolita, amassou-o e atirou-o ao fogo. Parece-me, se não me falha a memória, que a mulher dele foi lá, salvou o manuscrito e o guardou. Vai ver quase todo escritor tem dessas coisas, escrever coisas pra jogar na lixeira, no fogo... Tem uns mais corajosos, que preferem correr o risco e publicar! :-)