UM AVIÃO NA FIGUEIRA

São comuns no Rio Grande do Sul figueiras gigantescas, tendo muitas delas mais de quinhentos anos. Em São Leopoldo, na região da Feitoria, onde crescemos, eu, meu irmão e nossa irmã, havia algumas, sendo que a maior delas foi destruída pela ação devastadora de membros da população que se formou próximo a ela, no Bairro São Cristóvão, conhecido antigamente pelo apodo de Caída do Céu, que evoca sombrias lembranças. A árvore estava a leste do Bairro, num vasto terreno baldio, contornado em parte pela Avenida Maria Emília de Paula e a rua Artur Sel.

Em 1974, quando tinha oito anos, estivemos sob essa figueira, eu e o Cirdo, meu tio, irmão do pai, juntamente com o tio Avelino Vianna, irmão da vó, mãe do pai, e o Ademir, primo do pai, capturando abelhas. Foi quando caminhei por sobre suas grossas raízes e balancei pendurado a seus potentes gaLhos. Sob a árvore havia uma casa em ruínas e a figueira estava imersa em denso mato nativo. Seu tronco era tão grosso que precisaria uns cinco homens para abraçá-lo. Um de seus galhos era enorme, podendo encobrir umas três casas de tamanho médio. Em 1996 percebi que deles cresceu por debaixo do chão, indo brotar afastado da árvore.

Agora que a figueira não existe mais, talvez esse galho seja poupado pelos incessíveis jovens que ao longo de uns trinta anos foram corroendo seu tronco com fogueiras no interior de uma cavidade que nele iniciaram, até que em algum tempo entre 1996 e 2001 o caule não mais pode sustentar a árvore, quando ela transformou-se em lenha que, talvez, tenha queimado em alguns fogões da vila.

Seguindo a inclinação do terreno em direção ao sul, há uns cento e cinqüenta metros da primeira figueira, há ainda uma outra, aparentando mais ou menos a meia idade da primeira. Há muito tempo não ando para aquelas bandas, pelo que não sei em qual estado se encontra.

Retornando para o Centro pela Avenida Feitoria, na curva antes da Lomba dos “Inheca”, á direita, na esquina com a rua Chicago, há a loja Madesandri. Na frente desta loja, no outro lado da rua Chicago, no mesmo lado direito da avenida Feitoria, está uma pecuária, que era um atacado de alimentos chamado Radael, que já estava ali em 1975, assim como o armazém que havia na casa atrás do estacionamento onde funcionou a revenda de carros Japonês. Nessa casa também funcionava a barbearia do Sérgio, que se mudou para o lado do posto Kauer, na Avenida Rio Branco.

Em 1975, a única pista da Avenida Feitoria continha uma grossa camada de pó bem fino, que formava uma densa nuvem quando os carros passavam. Havia nas redondezas apenas o atacado Radael e a casa do armazém, além de uma ou outra casa. Justamente onde hoje está o prédio da Madesandri, havia uma figueira quase tão grande quanto a primeira de que falei. A frente dela, dando acesso à rua Chicago, havia uma grande porteira de madeira por onde se entrava na propriedade e se seguia um caminho curvo entre as vacas, cruzando um grande campo inclinado até uma planície meio encharcada, onde ficava a casa da chácara do seu Leopoldo. Uma vez, quando era muito menor, estive lá na garupa da bicicleta do pai. Essa casa distava da porteira umas quatro quadras das que hoje lá existem, quase junto a onde hoje passa a Avenida Imperatriz Leopoldina, próximo de onde está a Madeireira São Cristóvão. Tudo por ali, seja na direção do norte ou na do leste, era campo, tendo apenas a vila à esquerda. Mesmo a caixa d’água do SEMAE levaria anos para ser construída.

Nós morávamos numa das casas construídas pelos colonos portugueses, talvez, no século XVIII, em uma grande chácara há mais ou menos um quilômetro a sudeste dali, costeando o lado leste da descida da rua Juliana Fortuna, entre a rua R. S. Meirelles, que hoje está lá, a norte, e a chácara do Gumercindo, ao sul. Isto tudo sob os espessos fios de uma grande rede de alta tensão. A leste, após um grande charco, um córrego separava a nossa chácara da temida vila Caída do Céu. O trilho que hoje é a rua Felipe Uebel terminava na porteira da nossa chácara.

A casa da chácara não existe mais, a metade norte da propriedade é hoje ocupada por uma favela e as ruas na redondeza são todas calçadas ou asfaltadas.

De uma das encostas onde estava a chácara assistíamos às arruaças e corre-corre da polícia na vila Caída do Céu. Da outra encosta, em direção ao sul, assistiríamos pouco tempo mais tarde os tratores abrindo ruas na encosta oposta, na Fazenda Born. No vale dessas duas encostas, há uns dez metros de profundidade, corria um arroio, onde havia uma cascata, na qual nos banhávamos. Hoje a cascata é cercada de casebres e a corrente do arroio virou esgoto a céu aberto.

Mas a nem todas as notícias assistíamos ao vivo e simultaneamente. Algumas delas ouvimos falar e outras depois conferíamos. Certo dia de céu muito azul seguimos o Cirdo, a Marta e a Marli, que, curiosos, alcançaram um alvoroço que passou ao pé da torre de alta-tensão, na rua Flordoaldo Pires Mello, que cruza a Juliana Fortuna há uns cem metros acima de onde estava a porteira da chácara. Ao questionamento de nossos tios juvenis, responderam os curiosos seguidores do alvoroço que um avião tinha caído na chácara do seu Leopoldo. Então acompanhamos os curiosos para também ver o acidente e chegar perto de um avião, o que até então não tínhamos feito. Eu ia imaginando que um Boing teria caído e haveria muita gente destroçada pelos arredores, além de que a casa do seu Leopoldo deveria estar em pedaços, já que, segundo meu entender, o avião teria caído sobre ela. Entretanto, algo me intrigava, pois como teria sido, se nem tínhamos ouvido o estrondo da explosão.

Foi longa e cansativa a caminhada sob o escaldante sol de verão na poeirenta Avenida Feitoria. Naquele tempo, toda a terra por ali era coberta de campo e mato nativo, desde a parada de ônibus, onde hoje há um triângulo, na frente da Borracharia Jones, na altura da torre de alta-tensão, até a entrada da chácara do seu Leopoldo.

Mas valeu a pena o esforço, pois de fato havia lá um avião caído, embora que não houvessem corpos despedaçados, nem mesmo o piloto tinha se machucado, tampouco a casa do seu Leopoldo estava em ruínas. O avião que caiu era o que conhecíamos por teco-teco, um pequeno monomotor, do tipo que costumávamos ver no céu fazendo piruetas que nos davam frio na barriga. Ele estava sobre a árvore, enganchado nos galhos, parecendo que tinha pousado ali de propósito. Quase não tinha avarias, exceto pela cobertura das asas, que pareciam de papel rasgado coberto de verniz.

Só não cheguei mais perto e não subi na árvore para tocar no avião porque não era permitido, mas pude vê-lo bem de pertinho, há uma distância de uns cinco metros, balançando nos arames farpados da cerca que estava mais ou menos onde hoje é a parede da frente da loja da Madesandri.

Wilson do Amaral Escritor
Enviado por Wilson do Amaral Escritor em 07/02/2008
Reeditado em 21/07/2008
Código do texto: T849715