A casa da mangueira

Existe numa rua movimentada, por incrível que pareça, uma casa que já foi branca. O tempo sem pintura nova deixou-a com matizes de uma palheta de pintor.

É cercada por edifícios, alguns muito elevados. Resistiu à especulação imobiliária, e não cedeu espaço para surgir mais um prédio de muitos andares. Tem uma mangueira de meio século de existência, que todos os meses de outubro, até dezembro, fica apinhada da fruta. Esta melhora sempre que há uma poda em maio, principalmente.

- Lugarzinho bom de ser visitado, mano.

- Que nada! Isto é casa velha, de gente velha. Não vamos levar nada daí.

- Como é que você sabe?

- Eu conheço o dono. É um cara estranho, mas muito legal. Sempre deixou que nós apanhássemos mangas. Já matei muita fome e ganhei bons trocados, vendendo as mangas.

- Maluco ele?

- Sei lá. Mas é estranho, isto é mesmo. Deixava a gente pegar manga sempre, mas só de manhã.

- Como é?

- O que estou falando. O cara deixava que pelasse a mangueira, não se incomodava, mas de tarde ninguém entrava lá.

- Não entrava por quê?

- Por respeito. Ele nunca deixou de abrir o portão para a gente. Esquisitão, o cara. Não deixava garoto pequeno subir na mangueira. Mas eu cansei de subir, e pegar mais de trinta mangas, pelo menos três vezes na semana.

- Não deixava garoto pequeno subir na árvore por quê?

- Ele disse que um guri quase morreu, era pequeno e levou um tombo. Teve sorte, estava nos primeiros galhos e não aconteceu nada. Se a mangueira estivesse molhada de chuva, nem pensar. Não adiantava insistir. O cara não deixava ninguém subir.

- Mangueira molhada escorrega demais, mano.

- Qualquer árvore molhada é chata de encarar. Para você levar um tombo, é só vacilar. Desce mesmo.

- Olha, a mangueira foi podada. O cara te conhece?

- Não sei, tem tempo que não apanho mais mangas, mas um entregador de um mercado pediu para subir, tinha apanhado muita manga quando era menor. Não sei se o cara reconheceu ele. Mas deixou catar, numa boa.

- Ninguém entrava no peito?

- Cansavam de entrar. Mas quando ele via, mandava descer.

- E alguém obedecia ao mané?

- Todos gostavam dele. Obedeciam porque sabiam que sempre iam sair no lucro. Uns carinhas que se meteram a besta e subiram na árvore no peito, foram obrigados a descer. Ele tinha um rifle, e quando passávamos cedo para ir ao colégio, escutávamos o barulho de tiros. Ele treinava sempre.

- Dava tiros em casa, com arma de fogo? Os homens nunca empombaram com ele?

- Eu acho que não atirava com arma de fogo. Era ar comprimido. Mas treinava todos os dias, cedinho.

Esta conversa estava sendo travada por dois rapazes de menos do que vinte e cinco anos de idade. A aparência deles não era nada amistosa.

De fato, tudo o que foi dito pelo que conhecia a casa, era verdade. O dono da casa, desde novo, nunca barrou a entrada dos “mangueiros”, que aborreciam bastante, mas eram crianças e alguns visivelmente pediam mangas por fome mesmo. Duas mangas, pelo tamanho que possuem até hoje, equivalem a um bom almoço. Sempre que perguntado por que permitia aquela farra na mangueira, sua resposta era a mesma. “Acaso eu vou conseguir chupar tanta manga?”

Certa manhã, ele foi comprar pão numa padaria próxima. Fato quase inacreditável, pois não fazia isto nunca. Na metade de um quarteirão, viu que era inevitável se encontrar com um rapaz forte, de aparência bruta e nada amistosa. Pensou que ia levar um assalto. Normal, isto. É o que todos pensamos.

- Bom dia, seu João. Acordando cedo?

- Bom dia, rapaz. Como sabe meu nome?

- Esqueceu de mim, seu João?

- É, não estou lembrado não – suspirou aliviado. Agressão não iria sofrer, pelo sorriso do jovem que tinha pela frente.

- Cansei de pegar manga na sua casa.

- É mesmo? Não podia lembrar, eram todos pirralhos, e você está um homem. Como vai você e sua turma?

- Alguns estão trabalhando, como eu. Sou mecânico de automóveis.

- Que boa novidade, rapaz! E os outros?

- Alguns não se deram bem.

- Como assim?

- O senhor lembra do meu primo, aquele que chamava de mico?

- Aquele molequinho que ia nas partes mais altas e difíceis?

- Ele mesmo. Morreu.

- Morreu? Como foi isto?

- Ele preferiu ganhar a vida no tráfico. A polícia matou o Dinho.

É sempre assim. Quando não são presos, estes rapazes dificilmente passam dos vinte e cinco anos.

É a miséria humana. A miséria de todos nós. Mas a casa, com sua cinqüentenária mangueira, continua como era antes.

Estamos em setembro. Não demora, e os “mangueiros” estarão de volta.

Quantos vão sobreviver, ninguém sabe.