A ALMA PENADA

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Meus Contos

Conta-se que em uma cidadezinha do interior, uma idosa senhora - viúva de muito tempo - vivia em companhia de um chipanzé que ganhara nos idos tempos em que era artista circense. Certo dia, essa senhora caiu doente, e a cada dia adoecia cada vez mais; já nem saia mais do quarto, de modo que era amparada pelas suas comadres. Vencida, afinal, pela enfermidade e pela velhice, deixou à velha senhora este mundo, confortada com a comunhão e a extrema unção realizada pelo padre da paróquia.

Enquanto as beatas preparavam as cerimônias fúnebres e rezavam os últimos ofícios pela defunta, o chipanzé, num canto do quarto, observava tudo com atenção. As comadres amortalharam o corpo e o colocaram no caixão; veio o padre e, juntamente com a irmandade religiosa, realizou as cerimônias de costume: fazer as orações pela alma da defunta e cantar os hinos. Em seguida, o corpo foi levado para a igreja, que ficava próxima, para que se desse o velório.

O macaco que durante a encomenda do corpo não dera um pio, mas observara tudo; agora voltava a atenção às coisas que o rodeavam. Começou a despejar as gavetas e a examinar o que continham. Como tinha observado à defunta nos seus trajes mortuários, a forma como tinha a cabeça coberta pela mortalha, o macaco começou a se vestir exatamente do modo que presenciara. Mas, cansado da brincadeira, deitou-se na cama, jogou por cima de si o lençol que cobrira a defunta e ali se deixou ficar até adormecer.

O velório prosseguia na igreja, quando uma das comadres lembrou-se de que, a falecida havia lhe pedido para ser enterrada junto com bíblia dela. Então, as comadres retornaram a casa da falecida para buscar o livro santo. Quando entraram no quarto e viram o macaco amortalhado, fugiram aterrorizadas, pensando terem visto, na realidade, a alma da defunta. Na igreja, depois de tomarem água com açúcar e recuperado o fôlego, contaram que tinham visto a alma da falecida comadre repousando no leito onde estivera doente.

A notícia se espalhou mais que depressa pela região e a comunidade correu, curiosa, para a igreja. Dois incrédulos, disseram que as comadres estavam "vendo coisas" e resolveram ir ao quarto da falecida para desfazerem o mal-entendido. Como a noite se aproximava, sentiram, apesar de demonstrarem indiferença, uma sensação desagradável ao entrarem no quarto. Aproximando-se da cama, sentiram algo respirar por baixo do lençol; e quando perceberam que o lençol se movia como se quisesse saltar da cama, fugiram em desenfreada carreira até chegarem ao interior da igreja.

Comprovada a existência da alma penada, chamaram o padre e o caso lhe foi explicado. O padre bebeu uma grande taça de vinho, ficou um instante a refletir e, então, pediu ao sacristão para lhe trazer a grande cruz de madeira, a bíblia e o vaso de água benta. Colocou a estola e julgando-se armado para afugentar aquela alma demoníaca, seguiu com suas beatas para a casa da defunta.

Entoando os sete salmos e orações, subiram as escadas; indo o sacristão, por ordem do padre, à frente do cortejo, com a cruz erguida. Quando chegaram à porta do quarto, apesar da água benta que o padre vinha espalhando por todos os cantos, o cortejo se deixou ficar para trás, enquanto o valente sacerdote ordenava ao sacristão que avançasse. Aproximando-se da cama viram o chipanzé amortalhado, como se fosse uma alma penada. Murmuraram algumas orações, agitaram a cruz durante algum tempo, e nada da alma ir embora. Com vergonha de recuar, o sacerdote começou a espalhar água benta em maior quantidade, gritando: “Vai-te embora satanás, vai-te embora...” e tacou uma porção bem servida de água benta sobre o macaco, enquanto o sacristão agitava freneticamente a cruz por cima da alma. O chipanzé temendo ser cumprimentado com uma pancada da enorme cruz, começou a fazer careta e a guinchar de um modo tão macabro, que o vaso sagrado caiu das mãos do padre e o sacristão deixou tombar a cruz, fugindo, ambos, na maior carreira. Tal era a pressa que o padre caiu por cima do sacristão, e, rolando escada abaixo, estatelaram-se no piso da casa.

Ao ouvirem os gritos do padre: Jesus! Jesus!... As beatas, que o aguardavam no jardim, correram ao seu encontro, perguntando ansiosamente o que tinha acontecido. Os dois olhavam para elas, estarrecidos, sem poderem prenunciar uma palavra sequer. Por fim o padre teve força suficiente para dizer:

— Minhas filhas, é verdade, vi a falecida na forma de um feroz demônio...

Mal ele tinha acabado de pronunciar estas palavras, desce, pela escada banhada de água benta, o chipanzé arrastando um lençol branco. E o resto vocês podem imaginar. ®Sergio.

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Nota: Este conto foi inspirado na obra de Matteo Bandello (1485-1561), escritor italiano. Muitos escritores famosos, que surgiram depois, em seus escritos foram buscar fonte de inspiração para seus textos, não escapando o próprio Shakespeare, que retirou assunto para Romeu e Julieta, Musset e Conde Barbarini.

Se você encontrar erros (inclusive de português) e/ou omissões, relate-me.

Agradeço a leitura e, antecipadamente, qualquer comentário. Volte Sempre!

Ricardo Sérgio
Enviado por Ricardo Sérgio em 17/01/2008
Reeditado em 05/08/2013
Código do texto: T821787
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