Carteira do Corinthians

Chegamos à rodoviária de Ribeirão Preto às 09h. Estava tão calor que transpirávamos igual ao gordinho da educação física. Eu e Marlon fomos comprar passagens para Porto Seguro, a empresa Eixo Nordeste tinha uma rota direta para a terra do axé.

— Eu acho que o guichê fica naquela direção — Falou Marlon apontando para uma fileira de guichês. 

— Vamos comprar água, senão vou beber da primeira poça que encontrarmos. — Eu disse balançando a gola da camisa.

A rodoviária estava apinhada de gente. Parecia que a população inteira de Ribeirão estava ali. Um gigante com fone de ouvidos esbarrou em mim. O folgado agiu como se nada tivesse acontecido. O Marlon já estava tirando onda. — Esse é grande, vai lá, valentão! 

O cara tinha mais de dois metros. Era um jequitibá com pernas no meio do povo. Caminhava tranquilamente ouvindo sei lá que música. Se fosse Heavy Metal, ele sairia dando pancada em todo mundo ao redor. 

— Ohhh! Áaaaguaguagua…! Ohhh! Áaaaguaguagua…

Um vendedor se aproximava gritando igual arara. O Marlon era do tipo oportunista. Bastava uma chance para zoar com as pessoas, às vezes, isso acabava em confusão. Não é todo mundo que aceita brincadeira de adolescente folgado. Não deu tempo...

— Ohhh! Áaaaguaguagua…! — Marlon gritou.

O vendedor ficou procurando quem o imitava. Até encontrar nosso olhar de panaca. O homem de meia idade era tarimbado e sabia ler as pessoas, ainda mais, dois adolescentes ingênuos. Ele não gostou nada da brincadeira.

— Filhos da puta, vou arrebentar vocês! — Gritou gesticulando e vindo em nossa direção.

Ele carregava um carrinho com isopor e desviava das pessoas com habilidade. Não tivemos outra alternativa.

— Corre Marlon, corre… — Saímos rapidamente dali esquivando dos transeuntes. 

— Esse é bravo, briga com ele, valentão! — Eu disse meio esbaforido e pingando suor. Marlon caiu na risada outra vez. Não tinha tempo ruim para ele. Era inconsequente. O homem furioso sumiu, conseguimos despistá-lo.

— Poxa vida, Marlon. Eu ia comprar água daquele cara. Estou com sede e quero chegar vivo ao guichê. Ajuda aí! 

— Não chora, o cara sumiu. Só quis nos dar um susto. Se encontrarmos ele outra vez, vou pedir desculpas. — Marlon disse limpando o suor da testa. 

— Olha ali chorão, uma padaria. Vamos lá comprar água. 

— Vamos, mas não mexa com mais ninguém! — Dei um tapa em sua nuca. 

— Para com isso tonto! — Resmungou.

Bebemos duas garrafas de água cada um, antes que a sede nos matasse. Do balcão da padaria observávamos a diversidade humana. Um grupo de argentinos, todos com a camisa do Maradona, conversavam despreocupadamente sobre algo "caliente". Dois orientais magricelas andavam rapidamente, pareciam nervosos. Falavam num dialeto oriental. Quem traduz? E, o melhor de tudo: muitas mulheres desfilavam sob nosso olhar. Estávamos na fase hormonal mais intensa do homem.

Marlon encerrou meu devaneio com uma cotovelada nas costelas. — Ei, chorão! Olha o guichê da Eixo Nordeste ali, bem na nossa frente — ele apontou.

Retribui com outro tapa na nuca. — Estou vendo, não sou cego!

O legal dos amigos sinceros é isso: você empurra, chuta, dá soco, xinga e está tudo bem. São brincadeiras com certo abuso que passam despercebidas.

— Meu dinheiro está com você. Vai lá pagar! Vai… — Marlon ergueu as sobrancelhas e foi resmungando ao caixa. Logo foi sacando a enorme carteira do Corinthians. O cara era fanático: tinha boné, touca, meias, bermudas, um monte de camisas e adesivos pelo quarto todo. Eu também torcia pelo Corinthians, mas não o idolatrava de tal maneira. Sempre fui ponderado nesse aspecto. 

— Ei, olha! — Marlon apontou para uma linda morena. O vestido justo com bolinhas azuis desenhava o corpo perfeito daquela mulher. O traseiro dela era redondo e lindo, maravilhoso… Dois panacas em hipnose!

— Cara, ela está na fila do nosso guichê. Vamos rápido… — Marlon parecia desesperado. Ele era cara de pau, cantava a mulherada sem rodeios. Arrumou vários encontros desta maneira. Nisso, eu tirava o chapéu para o sem noção. 

Bem na nossa frente, na fila do guichê, estava a deusa Afrodite. Não tirávamos os olhos daquele enorme traseiro. Estávamos em transe, o gigante poderia me esbarrar outra vez, o vendedor nos xingar. No entanto, estávamos em outro mundo, na fértil imaginação estimulada pela testosterona. A rodoviária parecia vazia, somente nós e as curvas sob o vestido de bolinhas..

Afrodite saiu do guichê rebolando, e como aquela mulher rebolava. O homem do guichê colou o rosto no vidro para acompanhar a moça até ela sumir na muvuca. Eu e Marlon continuávamos em hipnose.

— Próximo! — Gritou o funcionário. Ele nos mirava com desdém. Afinal, saiu uma beldade e chegaram dois adolescentes com cara de panaca. Eu também agiria assim! O sujeito tinha um rosto comprido e uma mancha na lateral do pescoço que parecia uma barata. Eu não gostei daquele homem. Simples assim. Além do mais, o guichê tinha um cheiro de mofo. Baratas gostam de mofo. Estávamos no esgoto do homem-barata.

— Vocês não falam? — O homem falou enquanto tamborilava os dedos na mesa. Ele leu o meu olhar. O homem-barata não gostou de mim. Entramos em sintonia de galos de briga. Ele fazia caras e bocas e nós não falávamos nada. Foi esquisito…

— Queremos duas passagens para Porto Seguro. Veja o dia 08 de fevereiro! — Marlon tomou iniciativa enquanto eu trocava olhares com o homem-barata. Eu sabia que a coisa poderia sair do controle, porém, aquele homem era mais experiente. O cínico sorriso de canto mostrava que ele estava se divertindo. Era como se ele tivesse descoberto meu ponto fraco. Sensação estranha pra caralho!

Marlon me conhecia bem. Deu-me um chute na canela. — Calma aí, já vamos embora!

— Tem quatro assentos vagos. Vão querer? — O homem-barata soprou o ar e virou para pegar um papel. Para a minha surpresa, ele tinha outra barata no outro lado do pescoço. Sujeito nojento. Ele achou que pegaria Afrodite? Eu queria enchê-lo de porrada. Naquele momento era o que eu mais queria. 

— Vamos querer dois assentos! — Marlon respondeu e me deu outro chute. Eu estava quieto. Não tinha vontade de falar. — Quais são as poltronas livres? 

— Vinte e três e vinte e quatro. — A criatura respondeu me olhando fixamente. — Você fica no vinte e três e seu amigo no vinte e quatro! — O homem-barata mexeu comigo. O sorriso cínico mexeu comigo. Desgraçado…

— Pode ser, vamos ficar com essas poltronas. — Marlon respondeu e já foi pegando a carteira do Corinthians. O homem-barata estava se divertindo com meu nervosismo. Experiência versus descontrole. Ele estava em vantagem. Eu só pensava em quebrar aqueles dentes nojentos. Aquele cheiro de mofo…

Marlon pagou as passagens e o sujeito jogou-as no meu braço. 

— Vaza, moleque filho da puta! — O vendedor resmungou baixinho.

— O que ele falou? — Perguntei a Marlon.

— Nada, vamos embora! — Marlon me puxou pelos braços. O homem-barata estava rindo. 

— O cara me xingou de filho da puta! Isso… — Marlon me puxou com mais força em direção à padaria.

— Vamos tomar um café e acalmar os ânimos. — Disse Marlon. Respirei fundo e concordei com meu amigo. A intuição dizia para não arrumar confusão num terminal rodoviário lotado.  

O nosso comportamento muda de uma hora para outra, basta um estímulo. Quando voltamos à padaria, vimos a deusa Afrodite sentada sozinha. Mesmo nessa posição, a silhueta voluptuosa era perfeita. Aquele vestido justo não cobria nem metade da coxa. O ângulo da cintura e o jeito de sentar, mexia com a imaginação de qualquer homem. Ainda mais a nossa, dois jovens com cara de panaca. Ela percebeu o nosso flerte, e posicionou levemente os ombros para trás, isso era um ótimo sinal. 

— Você está vendo? — Dei um cutucão em Marlon.

— Sim, seu retardado. Tem como não ver? — Ele respondeu babando.

Eu olhei para trás na direção do guichê que cheirava mofo. A minha raiva tinha passado. O que um par de coxas não faz?

— Marlon, vamos lá… — O meu amigo era ágil, e já estava ao lado da mesa. 

— Vocês vão ficar em pé? — Ela perguntou enquanto olhávamos o seu decote. 

No momento em que sentamos, percebi que iria sobrar. Ela olhava para Marlon com malícia. Ostentava sensualidade ao beber refrigerante no canudinho. Mulher escolada, e viu nossa inocência, sobretudo a do Marlon babão. Ele foi seduzido rapidamente, e nesse estado de espírito, o prazer e o perigo estão bem próximos. Não me restou alternativa, fui ao balcão fazer o pedido e deixei os dois a sós por um momento. 

Pedi o famoso pingado com pão na chapa. Estávamos habituados com essa iguaria.

Quando voltei, eles estavam trocando sorrisos e olhares. Afrodite sempre com o canudo na boca. Marlon continuava babando, parecia cachorro com fome. 

— A garçonete já vai trazer o pedido. — Dei um cutucão em Marlon.

— Ah! Legal, obrigado!

— Vocês não são daqui? — Ela perguntou.

— Não, somos de São Carlos. Conhece lá? — O babão disse.

— Não, mas quem sabe… — Ela colocou o canudo na boca e cruzou as pernas. Aquilo era apelação. Uma mulher bonita pode conquistar muitas coisas. Como os dois estavam em sintonia, eu fiquei quieto. Não tinha o que falar. A lembrança do homem-barata estava reaparecendo. Marlon colocou a enorme carteira do Corinthians em cima da mesa. 

Os olhos de Afrodite brilharam. 

— Eu também sou corintiana. Temos algo em comum. — Nesse instante ela amarrou o espírito dele. 

A garçonete chegou com os pedidos. Colocou tudo na mesa e emprestou a caneta para a mulher sedutora de menores. 

— Olha gatinho, aqui está o meu número. Quem sabe vou passear em São Carlos. — Ela levantou e ajeitou o vestido colado ao corpo. Marlon queria implantar o papel no cérebro. Queria ligar aquela hora mesmo. Eu não sei como ele não flutuou… 

Afrodite colocou o refrigerante na mesa e balançou os dedos dizendo: — Bye,bye!

Aquele vestido branco de bolinhas era único na multidão. Ela desapareceu rapidamente. 

— Acorda pangaré! — Dei um tapa na cabeça do azarão.

— Olha aqui trouxa, ela me deu o telefone. — Ele ostentava o bilhete. 

Arranquei o bilhete num golpe de suas mãos. Estava escrito: “Salve o Corinthians”.

— Marlon, cadê a carteira?

Rivaldo Ferreira
Enviado por Rivaldo Ferreira em 16/05/2024
Reeditado em 31/05/2024
Código do texto: T8064612
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