Frozinha do Véi

Não era um dia qualquer. Era uma segunda feira. E segundas feiras são especialmente difíceis para muitas pessoas. E não era uma segunda feira qualquer; lá fora persistia um chuvisco que, de tão fino, de vez em quando caía em forma de x, desenhado com capricho pelo vento. Os vendedores da concessionária de veículos Top Motors experimentavam aquela leseira de começo de semana, e já estavam abertos a quase duas horas - intervalo no qual apenas um filho de Deus entrou. Entrou, ciscou, perguntou e... Se mandou. De maneira que boa parte desses vendedores se debruçava sobre notebooks e celulares, levantando ocasionalmente os pés ou saindo de suas mesas para que a auxiliar de limpeza pudesse realizar o seu trabalho. Numa dessas manobras, inclusive, a mulher esbarrou num copinho de café, que estava muito à beirada, tipo pedindo pra cair. O vendedor, um tal de Geraldo, deu um pulo, esbravejando.

- Mas será possível? Quase me queimou, sua burra! Não presta a atenção no que faz? Por pouco eu não ficaria com a camisa manchada o dia inteiro! E seria culpa sua, desastrada!

Foi nesse preciso momento que ele entrou. Cabelos grisalhos, rosto enrugado, camisa azul, levemente desbotada pelo uso, calça de tergal cinza, contrastando com um tênis preto bem básico, desses de lona e que não têm cadarços. É só enfiar o pé e tá tudo certo. Os passos lentos e surpreendentemente precisos, apesar dos seus aparentes setenta e tantos anos. Lá da imensa porta de entrada soltou o riso frouxo e carismático que deveria baixar a guarda de qualquer um.

- Eita! Que o cheirinho de café tá bom, hein! - gritou.

No entanto, alguns poucos vendedores se dignaram observá-lo por cima dos óculos; mas a maioria permaneceu de cabeça baixa, concluindo que um homem como aquele só poderia estar ali por mero acaso. Wilson, o atendente da vez (tinham uma ordem de atendimento combinada em razão das comissões) contrariado, deixou o celular de lado murmurando com azedume : "É hoje..." E em voz alta emendou, produzindo eco no imenso salão tomado por veículos de luxo:

- Posso ajudá-lo?

O senhor continuava com o sorriso no rosto.

- Claro! Esse café demora a sair?

A faxineira, que já limpara o chão molhado pelo incidente, olhava ansiosa, esperando a "deixa" para servir café ao velhinho. Com a mesma impáfia e expressão contrariada, Wilson sinalizou que "sim". Desse um copinho de café ao homem, e ele os deixaria em paz, pensou.

O velhinho pegou o pequeno copo plástico com a ponta dos dedos, o mínimo levantado.

- Ai! Tá quente! Parece que foi feito no fogo... - comentou sorrindo. Mas apenas Ludimila, a faxineira, sorriu aceitando a brincadeira.

Wilson voltou à carga:

- O senhor deseja alguma coisa?

- Ah, não se preocupe, estou meio que correndo dessa garoa. Tá um friozinho mais ou menos lá fora, viu... Meu carro ficou no estacionamento do seu vizinho, o depósito de construção. Vim apanhar umas buchinhas de parede... A patroa... Sempre inventando moda... Aí vi os carrinhos aqui... Parei para dar uma pescoçada... Com esse cheirinho de café indo lá na porta... - acrescentou, buscando o olhar de Ludmila, que agradeceu:

- Fui eu que fiz! - ela disse orgulhosa.

Os carrinhos a que o homem se referia eram modelos de luxo das marcas Audi , Mercedes Benz, Lamborghini e Jaguar, entre outros; sendo a concessionária uma importadora multimarcas que buscava um público seleto.

O mestre continuou...

- Bonitinhos mesmo! Tem elétricos também?

Com a expressão petrificada Wilson apenas apontou com a cabeça um Tesla Modelo S na cor preta. O visitante continuou:

- Que pena. Apenas um carro elétrico! Parece que ainda não estão levando a sério esse aperto com o clima... As geleiras continuam derretendo, viram na TV? (a essa altura já havia tomado assento junto aos vendedores). Melissa, uma loirinha cheia de "não me toques" chegou a afastar um pouco a sua cadeira, temendo que o velho "virasse a boca da égua" pro lado dela. Os demais apenas toleravam a sua presença. Afinal a loja estava vazia e ele não chegava a atrapalhar severamente. Deixassem-no falando sozinho e, mais cedo ou mais tarde, iria embora.

Ele não se fez de rogado. Ao modo de um Dom Quixote, começou a tagarelar sobre a vida:

- Perto dos 80 você finalmente aprende a dizer NÃO, não de verdade, e dá menos importância aos melindres dos outros! Há muitos desmandos humanos, muita bajulação. Aquilo que eu acho certo ou errado, em resumo trata-se apenas de conveniência. Não vê o que eu dizia sobre o clima? Os vendedores, sem excessão, se concentravam em seus afazeres, que consistia agora em continuar nada fazendo; apenas contando os segundos para que o inoportuno visitante decidisse ir embora. Ele já ia citando o lixo nos oceanos, a crueldade da caça às baleias e concluía enaltecendo o veganismo. Desse ponto não tardou em amaldiçoar os rodeios. Apenas Ludimila prestava atenção ao seu pequeno discurso, enquanto continuava o seu trabalho. E concordava com a cabeça. E complementava algum raciocínio.

O homem continuava, agora um tanto desenfreado:

- Por que aquele aqui, que não sabe a dor, o sofrimento que faz os touros pularem nos rodeios... Reparem a cinta que colocam neles... Eles pulam é de dor! Apertam o seu saco! Existe touro chucro, sim senhor, mas aqueles lá pulam por maus tratos. Qualquer um que se diga homem, deveria saber o que é a dor nos gragomilhos! E quem assiste esse tipo de coisa é conivente, cúmplice! E tem outra...

Foi nesse momento que Melissa bocejou. Um bocejo longo e modorrento que lhe arrancou boas lágrimas dos olhos. O velhinho estancou seu discurso, encantado pelo rosto angelical que cedia a uma necessidade tão natural. Aquilo era um testemunho de divindade, uma obra prima da criação.

Tomado pela espontaneidade, deixou escapar pela boca toda a sua ternura bipaternal:

- Cê tá tum sonin, florzinha do véi?

Após alguns segundos de silêncio, a gargalhada explodiu entre os vendedores, que não desperdiçavam uma só oportunidade de azucrinar a única colega mulher da equipe. De maneira que sérios mesmo só permaneceram a vendedora - que agora assumira uma expressão de nojo - a Ludmila, um vendedor baixinho, cuja mesa era vizinha à de Melissa e, por incrível que pareça, o nosso amigo visitante. Ficaram quietos por alguns instantes, quando o homem se desculpou: - É que ela é muito lindinha bocejando... - E voltou à carga:

- Reclamam do aquecimento global, mas não contam até três para iniciar uma guerra e lançar bombas uns nos outros!

Alex, esse tal vendedor baixinho, de tipo atarracado, se levantou:

- Bom, o senhor já tomou o seu cafezinho... Já papeou...

- É, mas lá fora a chuva aumentou pra valer...

- Besteira... O senhor não é feito de açúcar, é? Além do mais, segundo disse, o seu carro tá aqui do lado...

O velhinho se levantou contrariado, praticamente empurrado para fora que estava sendo pelo rapaz. Ludimila, indignada, olhava pra ele fazendo "que não" com a cabeça.

- Então tá bom... Obrigado pela conversa... Desculpe se ofendi... A moça é sua namorada? Desculpe, moça!!! (gritou à metade do caminho).

O Alex ficou mais irritado. Era como se o desmascarassem sobre a admiração silenciosa que nutria pela colega vendedora.

Só que lá na porta, o visitante indesejado deu com outro senhor que vinha entrando. Encararam-se.

- Altemar! Que tempo, rapaz!

- Ô Manuel, que ares te trazem? Veio comprar com a gente?

- Não!... Vai dizer que você também trabalha aqui...

- Sou o dono, meu amigo!

E voltaram para dentro da loja. O seu Altemar cumprimentou a equipe de vendedores e levou o amigo ao seu escritório, onde só ficaram isolados pela divisória envidraçada. Ali entoaram longa conversa, relembrarando os velhos tempos: o quartel, as bebedeiras, os bailinhos, as namoradas... O comerciante pediu, gentilmente, que Ludmila trouxesse mais café, depois que o informaram que a copeira ainda não tinha chegado.

- De ouro, essa moça. - comentou.

Em caráter confidencial, seu Manoel ficou sabendo que o amigo havia socorrido a colaboradora há três anos, em estado de extrema fragilidade social, morando nas ruas com dois filhos menores. Agora, para a sua alegria, ela, que tinha retomado os estudos, estava prestes a concluir o segundo grau.

Conversa vai conversa vem, seu Manoel comprou o Tesla S, único veículo elétrico da loja. Daria de presente ao filho caçula que faria aniversário em uma semana. Aliás o amigo estava convidado para a festa. Ao se despedirem, novamente em presença dos vendedores, acrescentou:

- Quer saber, me reserve um outro para o mês que vem. Meu enteado vai se formar em Engenharia. Acho um presente razoável. Eu não ligo pra essa coisa de carro novo, mas essa molecada... você sabe... - e em voz mais alta acrescentou - Não se esqueça: a comissão é da Ludmila. Os vendedores, sem excessão, ficaram de queixo caído, sem suspeitar que em três dias ela seria promovida à área de vendas. Alguns, dos mais inconformados, discretamente foram à porta, onde viram o velhinho indo embora num fusquinha desbotado.

GEORGES
Enviado por GEORGES em 22/03/2024
Reeditado em 07/04/2024
Código do texto: T8025349
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