Dona Juventina e seus velórios

Gilberto Carvalho Pereira - Fortaleza, CE, 5 de março 2024

Cada pessoa tem uma ou mais manias para chamar de sua. É o caso de uma senhora idosa, funcionária aposentada, que continuou autorizada a permanecer trabalhando, sem dispêndio para a Prefeitura de uma pequena cidade do interior cearense. Ganhou uma sala, que cognominou “Secretaria de Auxílio aos Familiares durante os Velórios da Cidade”.

Para o pessoal da saúde, a mania é uma das fases do transtorno bipolar, também conhecido como doença maníaco-depressiva, que pode causar diferentes sintomas, levando até a “delírios e alucinações”. Já a hipomania causa sintomas menos graves da mesma doença, com pouca interferência na vida da pessoa, destacando-se a tagarelice, maior disposição, impaciência, maior sociabilidade, iniciativa e energia para realizar atividades diárias.

Em Dona Juventina, os sintomas iniciaram entre a adolescência e início da fase adulta. Três ocorrências de falecimentos em sua família, mortes prematuras dos pais e de uma irmã - todas por coincidência, seja lá o que for - ocorreram em acidentes automobilísticos. As três em menos de um ano, com diferença de quatro meses uma da outra, deixando-a órfã. Em consequência, o seu comportamento mudou completamente. Esses episódios traumáticos fizeram com que ela precisasse participar dos velórios de seus familiares. A decepção maior, foi a de que ninguém apareceu a esses atos de solidariedade cristã. Daí em diante passou a visitar outras famílias em estado de luto, nos velórios dos respectivos defuntos.

Concomitantemente contratou dois jovens para procurar onde estaria sendo realizado qualquer velório na cidade ou próximo dela. Pelo serviço dos dois pagava, às suas expensas, R$ 5,00 reais por cabeça. Com uma estrutura assim montada seu trabalho progrediu assustadoramente. Visitava, em média, três velórios por semana. Nunca faltara a um sequer. Cumpria, assim, rigorosamente a promessa feita à mãe quando morrera, e que não contou com o comparecimento, em seu velório, de qualquer ser vivo morador daquela cidade.

O Prefeito estava satisfeito com a atuação de Dona Juventina trabalhando no campo social de sua gestão, sem lhe causar problemas e muito menos despesas. O alcaide espalhava pela cidade que ela era uma assessora de mão cheia, e que lhe deviam respeito e gratidão. Todos pensavam que ela era realmente funcionária da Prefeitura, e já começavam a solicitar sua presença nos velórios dos mortos dos munícipes. Com isso o Prefeito ia ganhando correligionários, ou seja, mais votos.

Certo dia a cidade amanheceu sob chuva torrencial e rápida, casas sendo arrastadas, muito lixo espalhado pelas ruas. No rescaldo, muitos residentes morreram, e não havia ninguém para lhes preparar o velório. A rua de Dona Juventina estava interditada, a ponte que dava acesso à sua casa havia sido levada pelas águas. Assim ela foi ignorada, por completo. Ninguém sabia ou não queria fazer o trabalho da caridosa senhora.

Quando a chuva parou, voluntários saíram em busca dos cadáveres. O Prefeito disponibilizou o ginásio de esportes para receber as vítimas do infausto acontecimento e preparar o velório, que seria apoteótico, afirmava ele. Será o maior acontecimento da pequena e modesta cidade, a qual se orgulhava em administrar. O Prefeito estava em êxtase, seria um velório triunfal. Dizia orgulhosamente: “nunca antes na história desta cidade um Prefeito enterrou tantos eleitores fiéis. O povo, em delírio, batia palmas, mesmo os que acabaram de perder parentes e amigos.

Mas, naquela festa, faltava uma pessoa. Dona Juventina, aquela que modestamente preparara muitos velórios para o seu povo e nunca faltara a um sequer. Todos se perguntavam: onde está a madrinha dos velórios? Aquela que organizara tantos velórios de saudosa memória? Justamente hoje, dizia o Prefeito, dia em que mais preciso de Dona Juventina, ela não aparece. Isso, é uma desfeita. Amanhã mesmo providenciarei a substituição dela por outra pessoa mais competente.

Aqueles que foram à procura da venerável senhora em sua casa voltaram estarrecidos. Vestida de mortalha, Dona Juventina foi encontrada deitada em uma urna mortuária, ladeada por velas acesas, sorriso nos lábios, demonstrando felicidade. Já estava gelada, disse um dos que a encontraram, indicativo de que morrera durante a tempestade noturna, sozinha. Aos seus pés, fotos dos pais e de sua irmã, cujos velórios não foram visitados por nenhum morador de sua cidade. Agora, pelo menos, seus familiares estavam ali, a lhes prestar as últimas homenagens.

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 05/03/2024
Código do texto: T8013402
Classificação de conteúdo: seguro