Deus pra você e o diabo para os outros

Lá estávamos nós, conversando e tomando refrigerante em um restaurante no centro da cidade. Comigo comparecia minha mãe, pai, avó e minha irmã. Quando detrás de nós, surge uma criança, ela pergunta:

— O senhor aceita comprar um pirulito? — Vestia uma camisa amarela de gola, a frente da camisa acima do peito direito estava melada com alguma coisa marrom. A cena inusitada, de uma criança que deveria ter menos de 7 anos, impactou-me de uma maneira avassaladora.

— De quanto está? — Perguntei.

— Um real.

Era uma ótima oferta, tinha que admitir, até no mercado estava mais caro.

— Dê-me dois.

Estirou as mãozinhas e tirou dois pirulitos de dentro do saquinho.

Naquele momento as interrogações que mais passavam pela minha cabeça, eram "onde está a mãe dessa criança?", "não tem pai?". Depois de ter entregado os dois pirulitos, fiz-lhe a seguinte pergunta, era uma pergunta boba: "Sua mãe sabe que andas por aí desse jeito?", falei sorrindo. Achando que iria achar aquilo engraçado, no entanto a expressão do seu rosto continuou intacta, do mesmo modo que estava a poucos minutos atrás.

Falando sério e olhando para o meu rosto, não parecia ser uma criança que estava a me encarar, mas sim um adulto triste e sem esperança de vida:

— Sabe, sim. Ela quem mandou... Eu vir. Ela está na praça. — Disse olhando para a praça.

Fiquei de cara por terra, sem saber o que falar. Queria falar-lhe alguma coisa. No entanto, parecia que um pano invisível tinha tampado minha boca e não queria sair. Simplesmente não saiam. Vendo-me daquele jeito; espantando e incrédulo. Ele virou o pequeno rostinho e fez como se já fosse embora. Pedi para que voltasse, mas não me escutou.

Dali se dirigiu a outra mesa, próxima a que estávamos. O rapaz que estava a mesa, olhou das cabeças aos pés quando esse falou-lhe:

— O senhor quer comprar um pirulito?

— Não. — Disse virando o rosto e voltando a conversa que estava tendo com uma senhorita do seu lado.

— Só um acho que não tem problema pro senhor...

— Eu já não disse? Ou você está surdo, menino?

Não pude ficar ali parado, o restaurante estava lotado, porém ninguém se movia. Olhavam e viravam o rosto. Faziam cara feia para o escroto que falava desse modo com a criança, mas ninguém se levantou pra fazer algo. Ficavam inertes ali, paralisados, feito pedras sobre areia do mar.

— Deus pra você e diabo para os outros. — Falei olhando para o miserável. Minha mãe sempre dizia isso, quando alguém quer algo bom só para si, sem ao menos pensar um pouco no outro.

Peguei o menino pelo braço e carreguei até a mesa em que a gente estava. A princípio minha família fizeram cara feia. Mas logo calaram-se.

"Quero que chame sua mãe", falei. "Minha mãe morreu", disse.

— O quê? — Todos olhamos espantados.

— Ela tinha uma doença... E acabou... Acontecendo isso.

— Então com quem vive?

— Somos cinco. Eu sou o mais novo. O pai Orelho cuida da gente. Ele disse que logo logo já estarei pronto pra uma coisa maior... Mas por enquanto..

— ...Coisa maior?

— Sim, o que Lucas e Tauã fazem. Eles ganham vendendo farinha. É assim que pai Orelho chama, "farinha".

— Droga. — Falei sem pensar.

Naquele momento lembrei da instituição "infância renovada", uma que se instalou a pouco tempo na nossa cidade. No mesmo momento pensei em levá-lo.

— Escute; irei te levar a uma instituição de crianças carentes que chegou a pouco tempo na nossa cidade.

Acenou com a cabeça indicando "sim". Pedi outro prato para o meu colega. Assim que o prato chegou, ele devorou a comida em um segundo. Estava com bastante fome.

— Gostou? — perguntei.

— Sim.

Saímos de lá, era por volta das quatorze horas. Achei melhor ligar para a instituição para virem buscá-lo. Peguei o celular, liguei. Chamou, chamou, chamou... Alguém atendeu.

Falei com a telefonista, disseram que iriam chegar em meia hora. Esperamos até a chegada do carro. Chegou, um carro branco com verde, com a UF do Ceará estampado nela. Um rapaz vestido também de branco desceu.

— Lá você irá puder estudar, se alimentar, ter uma boa educação e futuramente um emprego. — disse para ele e lhe dei um sorriso.

Retribuiu-me com outro.

Nos abraçamos, minha família se despediu dele e olhamos ao subir no carro.

Meu coração estava aliviado, mas não de todo. Alguma coisa afligia a minha alma. Vai ver, era só o mundo.

Henrique Freire
Enviado por Henrique Freire em 03/01/2024
Reeditado em 04/01/2024
Código do texto: T7968361
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