A Verdade

Capítulo de um dos meus livros "Diabolismo" postado para leitura no Clube de Autores como Frank P Andrew.

Certa noite como era do seu costume, depois de perambular pelas ruas a fim de aliciar fregueses (trottoir), de embebedar-se e de drogar-se, Célia Arruda aos trancos e barrancos meneando o corpo para lá e para cá se apoiando nas paredes ou nos objetos que encontrava no seu caminho para não cair, chegava de ma-drugada em casa. Sua mãe, cuja saúde estava debilitada, sabedo-ra que era dos problemas (a moléstia física e psíquica da mãe deveria ser por causa, e é bem provável de que assim o fossem, pelos maus tratos, pelos vícios e desvarios e, pela psicótica per-sonalidade da filha), esperou-a acordada para conversarem, mas principalmente para dar-lhe um ultimato. No arranca-rabo acon-tecido, deixou entendido, e com bastante clareza, de que, se a filha não abandonasse a bebida as drogas e a vadiagem, a expul-saria de casa, não iria mais aturar as discussões corriqueiras nem as violentas agressões recebidas de graça quando chegava da lequéssia bêbada e drogada.

Depois da violenta discussão com a mãe ao entrar em casa quase chegando a se agredirem mutuamente, tranquilizadas por uma inesperada interrupção; o toque do rabugento telefone sem fio em cima do armário envidraçado onde guardavam copos de cristal e as garrafas de algumas bebidas, após um cavo silêncio depois de o mesmo parar de tocar (não o atenderam), à ferrenha vontade continuaram com o confronto. Sua mãe, após descarre-gar o verbo e o predicado em cima da filha, perdendo o fôlego, calara-se por minutos sem deixar de contempla-la a olhos peno-sos e chorosos. Esperava pela pronta manifestação da filha, coi-sa que não ocorreu. Criando mais coragem por vê-la tão calada, angustiada, continuou desabafando com palavras duras em tom matriarcal de cara enfadada.

— Vou ser franca com você, filha. . . — Célia, sem forças para ficar em pé, prostrou-se ao chão de pernas e braços cruza-dos junto ao peito, entre a cristaleira e o corredor de entrada do apartamento apoiando seu costado nos frígidos azulejos da pa-rede (os rins lhe doíam), no lado que se encontrava livre de qualquer tralha, apresentando um desânimo inebriante. Estava com dificuldade de raciocinar, de se comunicar ou de equilibrar-se, ainda que, com toda a espalda encostada nos azulejos. O corpo da Célia tremia por inteiro —, hoje eu estive na Delegacia da Mulher e expliquei o nosso caso a delegada de plantão. De-pois de muito palavreado e de muitas orientações por parte de ela mesma, ficou decidido o seguinte: ou você aceita a minha ajuda aqui em casa mesmo da melhor maneira possível, nós duas encontraremos um meio adequado para tal, ou então, a delegada tratará do caso é providenciará a tua internação num sanatório especializado para drogados. E por fim, se de agora em diante você me agredir fisicamente ou mesmo com palavras obscenas, darei queixa de ti, e na mesma hora os da Delegacia da Mulher irão pô-la na cadeia. Hoje fiquei sabendo, de que com a promul-gação e o aprimoramento da Lei Maria da Penha, ficou muito mais fácil fazer as queixas. Isto que estou dizendo a você enten-da bem, filha, não é nenhuma brincadeira nem é nenhuma bale-la. Isto significa um chega para nós duas; é para sempre. Chega de sofrer em vão contigo e por ti. É o teu dever refletir e esco-lher muito bem o que deseja fazer da sua vida daqui por diante.

Arrasada de todas as maneiras possíveis, a mãe deu-lhe as costas e, aos prantos, entre as centenas de soluços, retirou-se para o seu quarto trancando-se lá a chave. Entretanto, tudo o que fora dito à filha permaneceu na ociosidade. Contudo, em verdade “verdadeira”, no estado que Célia se encontrava dopada e alcoolizada, quem em sã consciência acreditaria que ela fosse entender ou assimilar as duras palavras da sua mãe.

Alguns dias depois de esse entrever, de queixo empinado, Célia, pela parte manhã bem cedo circulava despretensiosa pelo saguão de entrada do prédio onde morava.

— Tenha um bom-dia senhorita Célia. . .

Apregoou o porteiro da manhã do prédio todo sorridente, olhando-a de cima a baixo a olhos gulosos e insaciáveis, ávido por alguns momentos de sexo gostoso com a vadia da Célia. Provavelmente o panaca já soubesse no que a mocinha havia se transformado.

— “Que cara mais besta”, pensou ela sem ter a real ideia das intenções do “nobre” gaiato. — Você também o tenha, Jurandir. — Respondeu com indiferença e passou ao largo por ele como se o cretino tivesse desaparecido da sua frente; como se ele nun-ca tivesse existido. O olhar da Célia fixara-se no amigo que se encontrava na enorme porta de bronze e vidro marrom-glacê a sua frente preparando-se para descer as escadas a fim de alcan-çar a passos de tartaruga, a calçada da rua.

— Oi Paulo. . .

Avocou e acenou eufórica dando pulinhos de alegria, porém, discretos, ao vê-lo preparar-se para sair do prédio. Paulo, viran-do-se para saber de onde surgira a voz que tanto conhecia, olhou-a com indiferença ao vê-la toda folgazã cheia de lero-lero.

— Oi Célia, tenha um bom-dia, como se encontra minha garota preferida? Faz tempo que a gente não se vê, hein? Por onde você tem andado, quer uma carona até faculdade? “Mas que guria mais nojenta”, enquanto falava com ela, Paulo em pensamentos se odiava em silêncio, “e eu ainda teimo em falar com essa vadia, nem ela nem eu prestamos, mas nadinha, mes-mo! ”.

— Não, não! Não é preciso, não mesmo, obrigada Paulo, eu não vou para lá, hoje vou cabular as aulas, mas não fala nada disso para minha mãe, ela realmente não despertou muito bem-disposta esta manhã. — Explicou encarando-o de modo brejeiro de voz mole e pastosa.

— Ora, ora, ora, até parece que você não me conhece mais? O teu pedido para mim é uma ordem, querida Célia! Deixa isso queto, a minha boca será um túmulo, pode crer. Oh! Aprovei-tando o ensejo, faz meses que não vejo a sua mãe, os males dela pioraram?

— Mais ou menos Paulo, a não ser por esta madrugada. É a maldita da enxaqueca. Sabe, ela sem nenhum aviso chega e vai numa sanha infausta. Todavia, quando saí do apartamento ago-rinha pouco ela se encontrava um pouco melhor devido aos analgésicos tragados às pressas; um monte deles. É mais do que claro, de que isso, é devido às pequenas crises nervosas que a incomodam amiúde, mas não hoje, pela graça do bom Deus! — Célia mentiu fazendo graçola do fato, mesmo sabendo de que ele não tinha conhecimento da diferença moral entre ela e a sua mãe. — Os médicos dizem que a enxaqueca não tem cura, e a dela é uma daquelas, sabe Paulo. . . insuportáveis, aliada a uma maldita sinusite crônica.

— Puxa vida, que doidice é essa! — exclamou demonstrando uma fingida preocupação. Desses detalhes Paulo nunca teve conhecimento algum.

Mas a verdade toda, infelizmente era outra, e dessa, a não ser a Célia e a sua tão sofrida mãe, ninguém mais, “supostamente” sabia. Após todas as explicações que achara necessário fazer, Célia Arruda, depois de oferecer-lhe um delicado beijo no rosto, sem dizer mais nada saiu andando a passo tardo sem olhar mais para trás. Era a chance que Paulo estava esperando, e com sin-ceridade, não poderia perdê-la: nunca, mas de modo algum.

Paulo fingindo ir à faculdade fez a volta no quarteirão com seu carro e ficou de longe observando de campana a garota plan-tada no solitário ponto de ônibus que havia um pouco mais abaixo do edifício onde moravam, bem no meio do quarteirão à direita, olhando para os lados com visível impaciência. Passados alguns minutos um ônibus apareceu na esquina. Levantando um dos braços, Célia fez o sinal para que o coletivo parasse, ao de-ter-se com a porta escancarada, o que não deveria acontecer, pois alguém poderia cair e se machucar, subira a passos largos indo sentar-se no único banco desocupado que havia bem lá no fundão.

— Que coisa mais “estranha”, porque será que Célia tomou o ônibus municipal para ir até o centro da cidade? Porque será que ela recusou a minha carona, e ainda tem mais, hoje não se en-controu com o João Pinto; vou segui-la! — acabou dizendo em voz alta por episódio tão incompreensível, a seu ver, repetindo o verbo “seguir” por mais de uma vez.

O veículo de transporte público dirigia-se ao centro da cida-de no marasmo de sempre, parando de ponto em ponto irritando todos os usuários dentro do coletivo. Nas proximidades de uma estação do metrô na Avenida Prestes Maia viu-a apear. Coçando com irritabilidade a sua barba rala levemente avermelhada, Pau-lo, em pensamentos, se amaldiçoou mais de uma vez.

— “E agora o que eu faço? Ela foi descer logo aqui no meio da enorme avenida movimentada pra caramba onde não existem lugares vagos neste horário para estacionar o carro. Assim vou perdê-la de vista, mas que maldição; que maldita de uma droga fodida! ”.

Por sorte, um guardador de carros da rua, um maltrapilho, um daqueles apelidados de flanelinha fez sinal para ele com a mão mostrando um dos dedos. O sinal indicava a existência de uma vaga um pouco mais adiante do ponto onde a Célia descera do coletivo. Em seguida, matutando a coisa toda, refez o agourento pensamento, nesses instantes de maneira ajuizada.

— “Puxa vida que boa estrela a minha, alguém saiu ali na frente e me deixou uma vaga, que legal”, imaginou e, mais do que depressa manobrou e estacionara o carro.

Paulo que suava a bicas, de cara, deu cinquenta reais ao mo-ço. O danado pulava feito doido de alegria pela inesperada grana recebida.

— Toma conta do carro direitinho, hein, quando eu voltar tem mais umas tantas na tua mão — ao afirma-lo resoluto, des-ceu do carro apressado. Trancada a porta a sete chaves iniciou a sua pretendida perseguição a pé.

A garota começava a subir uma longa escadaria devagar qua-se parando segurando-se com afã no longo e engordurado corri-mão de ferro totalmente sem pintura com a ferrugem comendo-o à solta, colocado ali para facilitar a subida e a descida dos cami-nhantes, a fim de se segurarem nele para não escorregarem e, ou caírem escadas a baixo. Paulo da Costa, erguendo a cabeça um pouquinho mais para o alto, viu-a tentando alcançar os últimos degraus do enorme escadório à sua frente.

— “Ainda bem que ela se move devagar, deve estar cansada, também, com tantos degraus; ótimo, ótimo, assim posso segui-la com mais facilidade. Oh! Isso está ficando para lá de bom”.

Enquanto Paulo conversava com ele mesmo em meditação sem abrir a boca, viu-a perto da Estação Da Luz do Metrô, lá no topo, no fim das intermináveis escadas. A enorme rapidez, dei-xou de lado os maus pensamentos da sua maldisposta cabecinha, procurando acelerar os passos para não a perder de vista, contu-do, torcendo num louco desespero para que, quando Célia che-gasse ao topo, não ingressasse na estação do metrô. Ao chegar aos últimos degraus mais do que ofegante, volteando a cabeça para todos os lados, não mais a viu.

— Que maldita droga!

Disse de voz parecida ao grunhido de dor dos nossos bichi-nhos de estimação quando machucados. Esfalfado pela afoba-ção e a mortificante subida devido a raiva entranhada nele por não mais chegar a vê-la, sentiu-se um miserável verme. Entre-tanto, fixando melhor a vista, percebeu que a danadinha se en-contrava no outro lado da avenida bem na sua direção sobrecar-regada de apressados veículos.

— Ufa, que legal. . . — desabafou aliviado e continuou bai-xinho com o papo-cabeça de ele com sigo mesmo —, beleza pura, ainda bem que ela não tomou outra condução se não, tchau esperança.

Malquerente devido aos incertos pensamentos movia os lá-bios com discrição, como se com alguém ao seu lado estivesse conversando. Sem considerar as consequências da sua insana perseguição, lançou o corpo de belo físico para o meio da aveni-da em desvairada carreira sem esperar o semáforo dar-lhe à luz verde. Ziguezagueando atrevida e perigosamente por entre o despropósito de veículos que, àquela hora valente se apresenta-va a atravessou sem importar-se com os clamores e as blasfê-mias dos motoristas mais do que irados pela ousadia do folgado transeunte.

— Ai palhaço! — berrou um dos motoristas, angustiado.

— Se quer morrer, idiota, toma veneno! — desembestou a voz um outro a altos brados.

— Vai tomar no cu! Otário! — disse o motorista mais atrevi-do e muitos e muitos mais o ofenderam aos berros.

Os condutores que por ele passavam tirando casquinha do seu desconjurado corpo-mente-arrasado, mais do que alucinados pelo afoitamento do lunático pedestre, sem exceção iam profe-rindo montes de palavras obscenas às escarradas e as claras. Completada a tresloucada travessia em perseguição à Célia, o fez mais de perto e com mais calma. Teve sorte duas vezes, a primeira por não ser atropelado, morto ou aleijado, e a segunda porque a garota esperava pelo sinal verde num semáforo mais adiante para cruzar a rua e passar para o outro lado da calçada.

Célia dirigia-se a Rua Santa Ifigênia.

Luz verde, finalmente ela acendeu autorizando a travessia dos pedestres. Célia, invertendo a direção à direita dela, aden-trou na rua pretendida. Acostumada que estava a fazer isso, sem esforço algum tomou o lado esquerdo da calçada em direção a Estação da Luz, a de trens.

A Rua Santa Ifigênia é famosa pela enorme quantidade de lojas de equipamentos, peças e, de milhões acessórios para apa-relhos eletroeletrônicos e de informática. A melhor do Brasil, mas também, nas cercanias, e até, em algumas partes de ela mesma, uma zona de meretrício e de ponto de vendas de drogas apelidada de Cracolândia. Paulo da Costa, enquanto a seguia, em seu afobo ia se conscientizando de que, coisa bastante invul-gar iria surpreendê-lo, e muito. Seu coração palpitava num des-compasso perigoso. Chegou até a pensar na possibilidade de ser acometido por um fulminante infarto.

Quando a respiração lhe faltou pela angústia desmedida sem a menor necessidade, passou a ouvir o seu coração retumbar forte nos seus ouvidos congestionados, ao tempo em que, suas têmporas pareciam estar sendo feridas por baquetas de tocar bumbo pela exacerbante ansiedade, mas principalmente, pela demora na definição da imprevista e tormentosa situação que ele se havia colocado por vontade própria. De garganta e boca bas-tante seca, matutava coisas normalmente inimagináveis, pois tinha conhecimento, e de muito bem sabido, o que aquele bairro no centro da cidade de São Paulo significava para os homens.

— “Será que ela é o que estou imaginando ser; uma meretriz? Como isso pode acontecer se ela nunca deu motivos para tal. Se sempre se comportou como uma verdadeira dama, pelo menos na minha presença! Como e porque meu Deus? Porque toda essa meleca teve que cair justamente em cima da minha pessoa? ”, malquerente, principalmente com ele mesmo, além de encontrar-se desiludido da vida, os pensamentos torpes não o deixavam em absoluta paz.

Célia Arruda, vaidosa linda e sensual, caminhava com a ga-lhardia de uma princesa desviando-se dos transeuntes que, àque-la hora do dia, a passos rápidos e nervosos abarrotavam as cal-çadas da Rua Santa Ifigênia para se dirigirem ao trabalho ou para fazerem as compras habituais, sendo atrapalhados, e bastante, pela enorme quantidade de barracas de camelôs nas calçadas. Em dado momento, Célia Arruda, desacelerando o passo, pene-trou em um bar quase na esquina da Rua Aurora toda dengosa esvoaçando a bela saia rodada de cetim púrpura de babados de um vermelho mais vivo e rutilante.

— Atendo-a num segundo, senhorita. . . — pôs-se à disposi-ção da Célia um dos auxiliares do bar por detrás do balcão. O moço usava um quepe de um verde vistoso com o nome do es-tabelecimento gravado na cor ouro contrastando magnificamen-te com seus cabelos loiros e compridos, de olhos avolumados exageradamente azuis, voltando em seguida a dar atenção a uma garota três bancos ao lado d’onde Célia no momento se encon-trava. Sem algum motivo aparente, Célia sentiu invídia da tal moça bastante bonita. Terminado o atendimento da garota, o balconista tornou a dar atenção à Célia. — Prontinho, agora já chegou à sua vez. O que vai querer senhorita Célia?

— O quê. . . como é que é, seu moço, como você sabe o meu nome? Por acaso você me conhece? — indagou admirada, era a primeira vez que ela vira aquele rapaz no bar, e fazia meses que ela o frequentava.

— Conheço-a sim, senhorita Célia, em. . . em verdade, isto é, não me entenda mal, eu a conheço apenas de vista. . . — ten-tando explicar a gafe cometida, o moço falava com constrangi-mento pela mancada dada com tanta infantilidade.

— Conhece-me, de vista? Como assim? Não estou entenden-do?

— Oh, que. . . quero dizer, oh. . . por favor, desculpe a mi-nha falta de sensatez senhorita Célia, e que. . . e que. . . — o gaiato, a cada instante passado, desesperava-se mais e mais. — “Mas que droga, quem foi que mandou você falar demais! ”, o jovem balconista pensava e discorria aborrecido com ele mesmo, enquanto punha sua mente para funcionar a fim de poder ex-pressar-se com mais clareza, recriminando-se ele mesmo bastan-te envergonhado pelo disparate que dissera a garota. — Está bem, está bem, eu vou contar. . . — resmungou para ele mesmo aflito, coçando o queixo violentamente com os dedos de uma das mãos. — É que. . . veja Célia. . . é de tanto vê-vê-la com os ho-ho-homens ali no-no Hotel Mi-Mi-Mira-Flo-Flores. . . — por fim conseguiu: — ali no Hotel Mira Flores!

— Por favor, seu moço, cale-se! — rugiu Célia com certa irritabilidade ao saber de onde o rapaz a conhecia, porém, ao olhá-lo com mais atenção, serenados os ânimos, emudeceu. O rapaz caíra-lhe em graça.

O atendente de balcão era parecido, e bastante, com o Paulo da Costa Neto, o seu amigo de infância. Em pura realidade, aquele balconista tinha muitos traços físicos do próprio Paulo, inclusive seu extravagante queixo quadrado de barba rala um tanto avermelhada.

— Aqui não é o lugar indicado para estas intimidades — comentou olhando para os lados, principalmente para a moça que o imaturo balconista atendeu instantes antes. Célia perma-necia com a injusta compreensão de ciúmes. — Procure-me mais tarde se quiser ter uma bela distração, quero dizer; se qui-ser foder um pouco comigo. — Disse Célia baixinho quase ao pé do ouvido do jovem à sua frente —, o que você acha disso? Ah, sim, desculpe por perguntar, a que horas você larga o serviço?

— Às treze horas — respondeu admirado por ter escapado de levar uma bronca feia devido à infantilidade em ter-lhe dito aquelas coisas de maneira tão besta. Mas não, ela não o fez. Cé-lia era uma profissional de capa e espada de primeira grandeza de cores inimagináveis.

— Pois está muito bem, belo jovem; vou ficar ligada nisso. Estarei por lá a sua espera mais ou menos nesse horário, não me falhe, hein! Ah, ouça, não se esqueça de levar dinheiro para pa-gar os “serviços” prestados! Escuta aí, moço, como devo chamá-lo?

— Rubens. . .

Respondeu o mancebo um tanto desajeitado.

— Rubens, hummmm. . . bonito nome — rosnou Célia à voz sussurrada, queria que apenas o bocó a escutasse.

A seguir, mudando de assunto, solicitou o que realmente fora fazer ao entrar naquele estabelecimento; um café com leite ser-vido em copo grande. Sempre consumia isso na parte da manhã junto com um pãozinho de cará com manteiga sem sal. Nunca se serviu do desjejum pela parte da manhã em casa.

Sem se importar com os clientes ou com os avisos de proibi-do fumar dentro daquele ambiente abarrotado de pessoas, mes-mo sendo ainda bastante cedo, acendeu um cigarro e o fumou lentamente saboreando a nicotina, o alcatrão e todos os demais venenos (milhares deles) existentes no tabaco, soltando vistosas baforadas de fumaça pelas narinas em pé, na frente do balcão. Levantando a cabeça fez biquinhos com os lábios espalhando mais rolos de fumaça fedorenta no ar poluído daquela pequena porção de centro de cidade. À vista de todos os consumidores masculinos, a bela mulher ali em pé, mostrava-se com altanaria de triunfadora, sensual, marota e provocadora para qualquer um que quisesse apreciar a sua bela “plástica”. Consumida a refei-ção de assobio, ainda a olhares de pouco-caso a tal moça que continuava conversando com o atendente Rubens, terminou o seu cigarro com tranquilidade. Pagando a despesa, despediu-se do belo-moço, piscando-lhe um olho maliciosamente, mandan-do-se do bar do jeitinho que entrara, rodando a larga saia de cetim púrpura, deixando aparecer de relance às bem torneadas coxas, parte do rechonchudo bumbum e a volumosa cona por encontrar-se sem a calcinha.

Ao chegar à esquina da Rua Santa Ifigênia com a Rua dos Timbiras, contornando-a a esquerda a passos lerdos, brindou-se com mais uns vinte e cinco ou trinta metros antes de parar mais uma vez com seu giro característico na frente das escadas que dava acesso a um hotel de quinta categoria, se bem que, quase todos eles o são por aquelas bandas da cidade. Sem esperar por mais nada, Célia subiu do mesmo jeitinho que fizera nas outras escadarias, as da Estação da Luz quando apeara do ônibus, de-vagarzinho com o queixo empinado. Paulo que a seguia de perto como um detetive experiente, via tudo a olhos aparvalhados. Naquela hora, sentiu na própria pele, que, a sua desconfiança em breve seria desbaratada, e daí, logo chegaria a saber que a sua amada, a sua “santa” Célia, era mesmo um anjo depravado. Um lindíssimo anjo-meretriz-avassalante fantasiado de mulher.

— Como é possível uma coisa destas? Este tipo de titica só acontece comigo, mas que droga! — Paulo conversava e, ao mesmo tempo reclamava com ele mesmo em voz alta caindo em seguida numa palermice total. — Ela sempre foi tão recatada e educada. Nunca a vi namorando, boa aluna, boa amiga. Por to-dos os “benditos” Diabos que possa haver em todos os infernos existentes, se é que pode existir mais do que um Inferno. . . — Paulo continuava sem dar-se conta criticando-se de voz bastante alta. — Como é que ela pode fazer uma coisa dessas comigo, como e como? Merda, por quê?

— Mais um doido varrido para atazanar a gente nas ruas da droga desta cidade! — de certo, deveria ser esse o pensamento das pessoas que por ele passavam vendo-o resmungar e movi-mentar os braços como se com alguém estivesse discutindo.

O apaixonado rapaz enquanto profetizava suas maldizentes palavras altercadas ao bel-prazer boca a fora proveniente da sua estultícia cabecinha como sons de vozes fantasmagóricas, dana-do como de há muito, remoía-se de um infinito furor ao relem-brar todas as coisas tolas e absurdas acontecidas desde o encon-tro com ela na saída do edifício onde os dois moravam. O cora-ção parecia querer sair-lhe pela boca tanta era a sua aflição. O seu amor pela rapariga, de imediato, transformou-se em ódio. Um ódio cego. Um ódio capaz de fazer qualquer burrada; um ódio mortal. Paulo da Costa Neto, atormentado por todos os seus maus pensamentos, deu um tempo para procurar acalmar-se encostando com relaxo o ombro na parede onde estava pintado com tinta da pior qualidade o nome do lugar onde se alugavam quartos a fim de transar: Hotel Mira Flores nos lados e em cima da porta de entrada da tal baiuca. Cruzando uma perna a outra na altura dos joelhos, em pé mesmo, passou uns bons bocados de minutos naquela desajeitada posição.

Um pouco mais tarde, um tanto apaziguado de espírito, subiu as estreitas e sujas escadoses daquela pocilga. Em sua andança por elas, os sons dos motores dos veículos na rua e o burburinho dos pedestres retumbavam em seus ouvidos como tambores aborígines. Os tambores feitos de troncos de árvores de uma selva qualquer, golpeados pelas mãos vigorosas dos autóctones. Ao subir, de novo sem fôlego, mas não devido a uma íngreme subida, estarrecera-se com as pinturas de sexo explícito existente nas paredes sujas pela fuligem da fumaça dos veículos que circu-lavam sem cessar pela rua na porta de entrada. Gaguejando bas-tante de maneira estúpida, Paulo perguntou a mulher que aten-dia o prostibulo. Ela se encontrava por detrás de um pequeno balcãozinho elaborado em varas de bambu pintado com verniz incolor num dos cantos do saguão de espera.

— A Célia já. . . já. . . chegou? Ela veio tra-trabalhar hoje?

— Sim prezado senhor. . . — contestou à senhora do balcão, mirando-o de rabo d’olhos. — Ela já chegou, mas no momento encontra-se ocupada entretendo um dos nossos acalorados clien-tes.

Depois de explanar o assunto de voz estridente, mas tranqui-la, a atendente continuou com os afazeres normais: dar vista as fichas de registro dos usuários do hotel que passava de quinhen-tos por dia.

— Mas já, assim tão rápido? — Paulo traíra-se, entretanto, a pessoa sentada atrás do balcão não entendera bem o assunto de tão envolta que estava nas suas tarefas corriqueiras.

— O senhor pode espera-la ali. . . — indicando com a mão um lugar sem levantar a cabeça para olhá-lo. —, em qualquer uma das poltronas vagas, se quiser, ou então pode voltar daqui uma hora aproximadamente, ela acabou de ir para o quarto faz dez minutinhos — dizendo minutinhos em largos sorrisos, le-vantando, agora sim, a cabeça para fita-lo por primeira vez des-de que Paulo entrara naquela espelunca. O sorriso da atendente fora oferecido sem nenhuma graça.

— Dá para chamá-la agora? — exigiu Paulo com certo des-preparo, entoando, e alto, com extremo nervosismo a voz que normalmente era um pouco rouca, contudo, muito mais rouca naqueles instantes.

— De jeito ou maneira alguma, cavalheiro! Escute cá, o que o senhor faria se fosse interrompido numa hora dessas? — deto-nou alto de voz roufenha a atendente, surpresa pela ousadia do belo rapaz à sua frente.

— Eu pago o quanto a senhora quiser se a chamar neste ins-tante!

— Ó gaiato, se manca tá ouvindo. Não tá vendo que o teu pedido não tá dando pé. Deixa de importunar a moça, cai fora ou espera quietinho aí pela tua vez como todo mundo tá fazen-do aqui. Sacou gente fina! Vê se se liga cara porque tu não tá na tua casa, ó galego! — bradou encolerizado com cara de poucos amigos um sujeito moreno e baixinho, troncudo e mal-encarado, pondo-se de pé da poltrona surrada onde estava sentado bulindo uma das vadias da casa.

— Vai ficar tudo bem senhor — respondeu Paulo, assusta-díssimo. — Não é preciso enfezar-se, eu vou esperar mais um pouquinho, quem sabe a Célia termina o “servicinho” antes da hora preestabelecida. . . — contudo, ele mesmo estava tentando se enganar —, eu necessito realmente falar com ela, é coisa de muita urgência, sabe senhor. . .

A atendente do prostíbulo, imiscuindo-se na conversa dos dois marmanjos, tratou de dar um basta no bate-boca, afinando a seguir:

— Pois muito bem senhor, faça o que for do seu agrado, mas, por favor, fique calmo e sente-se onde preferir, a “casa” é de respeito. . . — indicando mais uma vez as poltronas que por lá havia, sabendo que nesses benditos momentos todas estavam ocupadas.

O tempo ia passando, os fregueses entravam e saíam dos quartos e, até, às vezes, alguns ficavam sentados nas surradas poltronas, em pé ou em algum dos sofás, fazendo sacanices com as garotas de programa esperando por vacância em algum dos quartos daquele antro de degradação. Paulo permaneceu irrequi-eto e abobalhado, não estava acostumado a ver tanta safadeza junta. Gritinhos, sussurros aliados aos suspiros maliciosos da gentalha enchiam ainda mais sua estouvada cabecinha enquanto esperava em pé de corpo meio arqueado com as mãos nas bo-chechas em desesperada apatia, por sua vez. Não aguentando mais a torturante, cruel e desesperadora tardança, de repente assustando todos os presentes, articulara alto:

— Senhora. . . — Paulo dirigiu-se a atendente com boçalida-de —, eu preciso ir andando, não posso esperar mais, volto ou-tra hora ou quem sabe outro dia, até logo!

— Desculpe pelo incômodo, está tudo bem com o senhor? Precisa de algum analgésico, um calmante ou. . . sei lá, qualquer “coisinha” . . . parecida? — quis saber a senhora do balcão com fascinante educação, movimentando a cabeça para os lados a fim de observar a reação dos demais frequentadores daquele chavascal.

Uma lâmpada se apagou, depois outra, e a seguir, todas elas. Dava a impressão de que alguém fez aquele trabalho de propósi-to para atazanar ainda mais a estúpida cabecinha e vidinha sem graça do Paulo da Costa Neto.

— Mas que droga, agora só me faltava isto! — reclamou aturdido olhando firme desde o alto da escada para a rua.

— Desculpe-nos senhor, isto não acontece com frequência! Deve ter sido algum acidente de trânsito. Alguém deve ter bati-do com o carro em algum poste de eletricidade na vizinhança. Escute aqui, senhor, se for do seu agrado, a Célia poderá ir até a sua casa para entretê-lo mais tarde; basta dizer-me a hora e dar-me o endereço.

— Não é preciso, não, muito obrigado, moça, de repente eu até volto daqui a pouco ou outro dia, quem sabe. . . — Respon-deu com rispidez a amável pergunta da senhora por detrás do balcãozinho de atendimento.

— Até logo senhor — disse a atendente sem se importar com o nervosismo, para ela, um rapaz meio biruta ou biruta por intei-ro.

Paulo nunca tinha visto nada parecido na vida. A espelunca onde os homens tiram o “atraso”.

Depois de dar às costas a atendente, dirigiu-se a saída, que, por sorte, lá embaixo era alimentada pela luz da ainda meia-manhã vinda da rua, Paulo da Costa desceu as escadas do estrei-to corredor do imundo hotel sem olhar de novo para as pinturas obscenas das paredes pulando de dois em dois degraus chispado de raiva à pressa absurda quase trombando com uma senhora grávida ao alcançar o portal, no meio da calçada. Desculpando-se mil vezes pelo acontecido, atordoado e sem graça, olhou para todos os lados sem saber o que fazer. Sentia-se um animalzinho perdido no meio do mato em busca da mãe protetora. Sem re-tornar para casa, permaneceu vagando pelo centro da cidade a esmo o resto do dia. Não conseguia encontrar rumo certo nem o que improvisar para fazer o tempo se escoar. Se bem que, de qualquer maneira, nada tinha para perpetrar por lá ou em algum outro lugar que fosse. Por falta do que fazer, ficava olhando as mais variadas vitrines das lojas e os cartazes picantes dos cine-mas de sexo explícito, embaralhando-se às centenas de pessoas que igualmente não sabiam o que fazer ou aonde irem.

No torpor de corpo e alma, continuava remoendo-se de ódio. Em realidade, a brutal descoberta deixara-o nocauteado por completo. Depois de rodar pelo centro da cidade dezenas e de-zenas de vezes e de passar pelos mesmos lugares à toa por vezes também incontáveis, ao findar o dia sem dar-se conta disso, pas-sou mais uma vez pela frente da tal espelunca. Perdera conta de quantas vezes fizera-o naquelas horas de ócio.

As luzes da iluminação pública, aos poucos iam automatica-mente se acendendo com a entrada triunfal da Lua um tanto avermelhada devido à poluição do ar, enquanto as portas do comércio iam lentamente sendo abaixadas para que as pessoas que neles trabalharam, gozassem do noturno descanso merecido. Paulo, sem se aperceber do perigo que corria de noite naquele lugar de tráfico intenso, sem dar-se conta do pouco movimento de pedestres a sua volta, seguiu na direção da Estação da Luz, a de trens. Depois, tomando a direita da Rua Mauá, acompanhou o muro de arrimo que isola a via férrea da estreita rua de mão única, para alguns quarteirões mais abaixo ingressar mais ou menos entre a Avenida Tiradentes e a Avenida Prestes Maia. Era por aquelas bandas que se achava estacionado o seu carro, se bem que, ainda bastante distante do local de onde ele agora se encontrava. Ainda tinha de caminhar um bocado até encon-trar o seu possante Opala verde-Amazonas. Por todo o caminho conversava com ele mesmo em lascivos pensamentos e imagina-tivas fantasias mais do que estúpidas.

— “Tantos anos perdidos. . .”, o abobalhado do Paulo ajui-zava insciente tudo o que estava acontecendo, desconsolado, e isso, desde a saída do seu apartamento pela parte manhã, ou melhor, desde que ele acordara estressado e, isso, desde há mui-to. — “Para o que eu. . .”, pensou e novamente se proporcionou suspiros enfurecidos. E, de novo, mais pensamentos frívolos. — “Para o que eu me guardei por tanto tempo para ela, mas que ingratidão, que droga de vida! ”. — Paulo continuava pensante e acabado da vida como um bosta qualquer, mas depois de a tal descoberta, que diferença poderia isso fazer?

Oh! Inúteis pensamentos deslavados.

Frank P Andrew

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Frank P Andrew
Enviado por Frank P Andrew em 29/08/2023
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