Tiktok

Ando muito sozinha aqui no apartamento.

Ela dizia, com um aperto no peito.

Minha companhia tem sido o Tiktok.

Às vezes vou pra igreja, geralmente dia de domingo; e me sinto melhor.

Meus filhos nunca vêm me visitar. Tenho dois: um casal. Acho que ele tem 30 anos já. A menina é mais nova. Sou avó. Minha neta tem coisa de 7 anos. Minha menina teve bebê quando ainda era adolescente.

Ando meio deprimida, sabe? Daqui a pouco dá a hora de tomar meu remédio pra ansiedade.

Ela dizia, com uma languidez nas mãos.

E um aperto no peito. O Tiktok a fazia rir. A bíblia, ao lado, aberta em salmos 23, fazia o papel de uma carranca ou de espantalho pra espantar o mal.

Mau ela dava uma risada, no curto intervalo de um vídeo pro outro, uma janela molhada de mágoas se abria em sua alma. E a água turva varria seu sorriso da cara, como uma enchente devasta o que vê pela frente - carro, casa, sonhos, fantasmas, fantasias e coisas que não se pode salvar.

Meu dia, ela diz, com um aperto no peito, foi bom. Fui pra igreja. O culto foi uma benção. Irmã Rosinha perguntou quando irei levar meus filhos.

Qualquer dia, qualquer dia eles vêm. Dizia ela, com um aperto no peito, e um sorriso feito pra demonstrar sua fé. Vermelho cumprimentou-a: o culto foi uma benção, irmã. Amém, ela devolve.

E um aperto preto no fundo do peito.

Vazio era uma palavra que ela só conhecia por bujão de gás quando este acabava. "Tá vazio".

Ou, então, o armário. Mas este Deus nunca permitiria estar - embora faltasse, por vezes, inúmeras, o feijão, tinha-se cuscuz. A geladeira, por sua vez, às vezes faltava carne, mas o ovo Deus não permitia faltar.

E ria, ria de gargalhar com os vídeos muito engraçadinhos do Tiktok.

Quando será que meu filho virá me visitar? Ele e a namorada dele…

Mandei uma mensagem pra ele no zap. Ele demora pra responder. Parece estar sempre ocupado com alguma coisa. Diz que não tem tempo - algo sobre a faculdade. Menino estudioso, graças a Deus. Só anda metido com coisas do inimigo, umas coisas de rock, comunismo, cabelo grande, macumba, só coisa que não agrada a Deus. Mas é um menino bom.

A minha menina não fala mais comigo. Saiu de casa dizendo a Deus e o mundo que sou louca. Tivemos algumas brigas, e eu acabei batendo nela. O filho tem que respeitar a mãe, não é? Levou minha neta e foi morar com o namorado, um chaveiro feio que dói, que não quer me ver pintada de ouro, porque ela fez a cabeça dele, inventando tudo que é de ruim sobre mim. Eu sou a mãe dela. Só quero o bem pra ela. E ria ria ria alucinada com os vídeos muito engraçadinhos do Tiktok. Era um atrás do outro. Não tinha tempo pra descansar a boca. E o aperto do peito passava, por ora. Meu filho não criei; quem criou foi a avó, mãe do pai dele. Meu primeiro casamento. Eu era muito nova e não tinha cabeça pra criar filho. O pai dele se separou de mim depois de alguns anos. Era um homem muito sério, só queria saber de trabalhar e casa. Eu gostava de farra, de festa. Pudera, eu era nova! Ele me amava muito, mas eu não tinha cabeça pra amor ainda. O pai da menina, por outro lado, era da gandanha, gostava de maconha e tudo que num presta. Não sei por que fui me apaixonar por um traste daquele. Só chegava de madrugada com bafo de cachaça e cheiro de rapariga. Tivemos uma menina que puxou o gênio diabólico dele. Aguentei, comi o pão que o diabo amassou com ele. Só nos separamos quando a menina já tinha 15 anos.

Amanhã tem culto de oração.

Foi uma benção, irmã, cumprimentava Vermelho.

Amém, respondia.

Como vão os filhos, irmã? Perguntava Rosinha, e emendava: quando eles vêm?...

Tão bem, Graças a Deus! Recitava qual um mantra: qualquer dia Deus toca no coração deles e eles vêm servir ao Senhor.

Amém, glória a Deus, a igreja dizia de pé.

E um aperto amarelo no peito.

Ela dizia aparências felizes, que tinha uma família, porque quem tinha uma família era feliz, Deus era comigo, entende?

Mas, ao apertar o passo pra chegar em casa, em seu apartamento, encontrava-se só, só com as risadas felizes e muito engraçadinhas das pessoas sempre felizes na tela pequena de seu celular. Lar, doce, lar. Enfim poderia sorrir em paz, sem pastor pra lhe observar. Sem irmã Rosinha e Laranjinha pra lhe julgar, sua cadela nojenta, sua miserável, sua, ah, sua infiel! Deus está lhe castigando! E as vozes lhe eram substituídas pelas risadas quase robóticas. Dentes que são chapa, prótese. Lábios que já foram vermelhos e voluptuosos. Ardentes.

Lembrou-se de quando era pequena. Sua risada era branda. O riso era contagiante. Era diferente do riso que dá agora. Um riso frenético, sombrio.

Mas isso ela não compreende; apenas sente algo arranhando, como uma ferida, uma chaga, uma dor latente no peito. Uma barata passeando em sua cabeça. Mas ela está extasiada pelas risadas dos vídeos coloridinhos e mui engraçados. E anestesiada pelo comprimido que o doutor receitou pra ansiedade e insônia. Meus filhos. Risada risada risada risada. Meus filhos me amam! Eu sou a mãe deles. Qualquer dia virão me visitar e faremos uma festa. Nossa, que engraçado esse vídeo coloridinho. Tarja preta em cima da cama, e o copo de água em cima da mesa. Dormiu como uma criança no colo de Deus.

No outro dia… mesmo aperto misterioso, invisível, como a mão de Deus, no peito. E a risada colorida nos dentes amarelos que restaram.

Jei vson
Enviado por Jei vson em 14/06/2023
Reeditado em 14/06/2023
Código do texto: T7813133
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