CHAVES DO PASSADO

Muitos seres humanos metem-se em buscar as chaves da felicidade, alguns de modo mais obstinado do que outros. De forma até mesmo egoísta.

Com Praxedes, a situação revela-se um tanto diferente. Do alto de seus setenta anos, ele considera já haver encontrado a felicidade pessoal em seu casamento. Isso não significa, entretanto, que ele renuncie a buscar outras chaves. Obstinado por método e organização, o tipo volta e meia se debruça sobre o desafio de identificar as que conserva numa caixa guardada em seu escritório.

Praxedes compara sua tentativa de desvendar o mistério dessas chaves com a que fazem seu amigo Tiago e esposa no tocante às anotações de números telefônicos desconhecidos (*). Assim como o casal peleja para recordar a quem pertencem os telefones anotados sem o devido registro de nomes na ocasião, o septuagenário esforça-se em saber de onde seriam as chaves encontradas no passado, sem a respectiva placa de identificação.

A falta das placas deve ser atribuída à sua resistência insatisfatória, o que leva o barbante a romper-se facilmente ou o papel a despegar-se dos aros de metal com os eventuais atritos que sofrem nas gavetas e caixas onde se encontram guardados.

Jamais admite o metódico e organizado Praxedes que as chaves estejam sem identificação por ocasional esquecimento de nelas colocar-se a plaquinha.

Seja como for, importa o fato de que ele e a mulher encontraram chaves não-identificadas que cuidam de conservar para testá-las vez por outra em variadas fechaduras, na expectativa de que correspondam. O êxito desses testes tem sido raro, contudo. Quase nulo, na verdade.

Em sua casa, esperança - sensata, cumpre frisar - é o que não falta. Um dia, acabarão por descobrir a porta de armário, mala ou cadeado que case com a chave em questão. Não se descarta, naturalmente, a hipótese de fechaduras de objetos de que abriram mão. Afinal de contas, venderam ou doaram bom número de móveis ao longo de mais de quarenta anos de casório e algumas mudanças de residência.

Uma chave, particularmente, com seu formato de sereia, Praxedes tem certeza de pertencer à pequena arca com desenhos estilizados de peixes em relevo, doada à igreja próxima de sua segunda residência. O diabo (com o perdão do padre Basílio e de Nosso Senhor) é que agora moram bem longe do local. Fica muito difícil, dessa maneira, ir lá no intuito de entregar a cópia extra da sereiazinha. Como a remessa pelo correio parece-lhe deselegante, bem assim temerária, o zeloso guardião continua a aguardar a oportunidade de fazer a entrega pessoalmente.

Apesar das infrutíferas tentativas até o momento, ele recusa-se a simplesmente jogar fora as ocupantes da caixa, como passou a sugerir a esposa há algum tempo. Não se conservam sobras de parafusos, porcas e outros utensílios? Instrumentos de abrir portas também abrem perspectivas, filosofa o obstinado septuagenário, não se devendo minimizá-los em importância e menos ainda desprezar sua potencial utilidade. Nenhum ser terreno pode prever o futuro com absoluta garantia. Quem vai afirmar que alguma daquelas peças ora ociosas não se revelará essencial mais adiante?

Novamente compara o material que guarda com as anotações telefônicas não-identificadas do Tiago e considera que, sem sombra de dúvida, sua atividade detetivesca reveste-se de maior sentido prático que a do amigo.

Imagine ligar para um daqueles números ao acaso e enfrentar o constrangimento de falar com antigo desafeto? Ou com um vendedor cacete do qual só se queria distância? Seguramente, nenhuma das chaves tão diligentemente guardadas (como lhe soa bem o advérbio) iria fazer-lhe a desfeita de abrir o portal dos infernos ou de gerar qualquer tipo de inconveniência. Mesmo respeitando, como respeita, o valor de toda documentação de caráter histórico, reflete que as chaves do passado constituem passo para o futuro.

Após espalhá-las sobre a mesa, examiná-las com o mesmo rigor analítico de que é capaz e experimentar uma ou outra em alguma fechadura recém-lembrada, volta a depositá-las na caixa, para futura investigação. Ademais do casamento bem-sucedido, conclui que a chave da felicidade reside em perseverar.

Janeiro 2023.

(*) ver Números Misteriosos, do mesmo autor, publicado em maio neste site.