AS PÁGINAS DE OUTONO.

A tevê ligada. A moça do tempo previu a temperatura amena para o dia seguinte. -"Kátia, já estamos no outono." Rudolf se levantou do sofá e abriu a porta de vidro da sacada do apartamento. O vento gelado inundou a sala, fazendo com que a cortina voasse e derrubasse o porta retrato. Ele aspirou o ar fresco. -"Amo o inverno. Vento de chuva." A esposa na cozinha. O avental rosa. Ela se virou. -"Rudolf?!" O porta retrato quebrado. Ela o recolheu, tomando cuidado com os cacos de vidro. Sorriu ao ver a foto dela com Rudolf e o filho. Marcel estava com cinco anos na foto. -"Que saudades." Ela quase deixou cair uma lágrima. Marcel tinha agora vinte e dois. Estava num intercâmbio cultural no Canadá, onde tinha conhecido Lindsay, uma norte americana de Indiana, com a qual namorava há um mês. Rudolf se trancou no quarto do filho. -"Vou escrever um pouco, antes de dormir, querida. O outono é a melhor estação para os escritores." Ele riu. Katia colou o ouvido na porta. Pensou em abrir mas hesitou. -"Não vou atrapalhar Ruddy, como sempre fiz. Os escritores amam esse tempo ameno. Ruddy sempre gostou. É mágico, as folhas caem e o chão fica forrado de flores. Talvez porquê o clima lembre a Europa. É perfeito também para a leitura no sofá, para um chocolate quente com canela. Ah, Ruddy!" A chuva fina começou. Desligou a tevê. Ela recolheu o varal de chão, tomado por toalhas. Ela ouviu a batida das teclas do computador. Marcel tinha ensinado o pai a usar o computador e aposentar a velha máquina de escrever Olivetti. Ele demorou pra se adaptar ao computador e as mídias sociais. -"Não encontro fitas nem tinta pro besouro verde, Marcel." Era como Rudolf chamava a máquina de escrever verde oliva. Tinha sido presente de seu amigo Dorival, vizinho de quarto de Rudolf, no seminário diocesano de filosofia, em 1978. -"Cara, não posso aceitar. Uma máquina de escrever é cara." Disse Rudolf, na época com dezoito anos. Dorival desmanchou o penteado do amigo. -"Fica com ela, Rudolf. Eu estou saindo do seminário pra cuidar da minha mãe. Minhas notas são péssimas e não serei padre mas você, sim. Você escreve muito bem, tira notas altas e vive pedindo a Olivetti emprestada. É sua." Rudolf abraçou o rapaz, que voltaria a Barbacena pra cuidar da mãe. -"Valeu, Dorival. Vou cuidar bem dela." Dorival sorriu. -"Me mande um livro, quando escrever um e ficar famoso." Rudolf riu. -"Prometo tentar escrever um livro e te mandar. Ficar famoso não garanto. Só Deus sabe." Eles nunca mais se viram. Rudolf deixaria o seminário dois anos depois. O professor de história e filosofia aposentado, Rudolf nunca escreveu o livro que tinha prometido a Dorival. Colaborava com pequenos textos sobre filosofia para o jornal da escola, apenas isso. Tentou escrever alguns contos, que não gostava e amassava as folhas de sulfite. Katia ligou para Rudolf. A jovem precisava de aulas particulares para o vestibular. O telefone do professor Rudolf estava nos classificados do jornal da cidade. O preço das aulas era uma pechincha. -"Pague três cruzeiros a mais e incluo português, matemática e atualidades nas aulas." Ele a encarou e ajeitou os óculos. Kátia estendeu a mão ao jovem professor. Rudolf ficou vermelho como pimentão. -"Combinado, professor." Rudolf admirava a persistência e garra da garçonete Kátia. Ela trabalhava de dia e estudava a noite. As aulas particulares aos sábados tinham como objetivo o vestibular na universidade federal. Durante as aulas, a amizade deles cresceu. Rudolf prestava atenção em cada detalhe de Kátia. A roupa, os penteados, o perfume e as caretas com as dificuldades das matérias. -"Vamos ter que aprofundar em redação, Kátia. Seu texto está sofrível, eu diria. Estamos no fim do ano letivo e o vestibular se aproxima. Que acha de estudar aos domingos? Tenho a quarta livre, após as nove da noite." Ela concordou mas estava devendo dez aulas a ele. -"Não tenho como pagar aulas adicionais, professor. Estou devendo aulas até." Ele colocou a mão direita sobre a mão dela. -"Você poderá pagar depois. O importante é passar no vestibular." Katia o abraçou forte. -"Muito obrigada." Rudolf a abraçou. -"Eu não quero sair desse abraço." Ele sussurrou a ela. Kátia gostava dele mas sempre a diferença de idade vinha a tona em seus pensamentos. -"Não é tanto assim, só seis anos. Ele não é lindo como o Fábio Jr mas não é tão feioso, amiga." Ela lembrou-se das palavras de sua prima Renata, aluna do professor Rudolf no colégio Salesiano. Kátia saiu do abraço. -"Eu agradeço, professor. Vou pagar depois e não o decepcionarei. Vou passar no vestibular." Ele vibrou. -"Assim é que se fala, Kátia. Vamos fazer um estudo avançado. Posso pegar algumas provas, de outros vestibulares, na biblioteca." Kátia sorriu, pegou a mochila e abriu a porta. -"Onze e meia. Já vou." Ele pegou as chaves do carro. -" Nesse escuro? Não mesmo, eu a levarei. Seu irmão chega às onze e não veio lhe buscar." Ela concordou. -"Ulisses ficou fazendo extra, na fábrica de papel." Ele trancou a casa. Rudolf abriu a porta do Fusca vermelho. -"Por favor. Não é uma Ferrari mas é da mesma cor." Ela riu. Rudolf sempre a fazia rir. Dois meses se passaram. A redação de Kátia tinha melhorado muito. Rudolf tinha mimeografado dezenas de provas e questões de antigos vestibulares para Kátia treinar. O dia tão esperado finalmente chegou. -"Comeu uma refeição leve, com suco de maracujá? Não está ansiosa, está.? Você dormiu bem?" Rudolf a enchia de perguntas. Ulisses riu da cena. -"Parece que o professor é quem vai fazer a prova. Vamos." Kátia entrou no ônibus com o irmão. O professor e os pais da moça acenaram, da plataforma da rodoviária. O ônibus partiu. -"Ele gosta muito de você, Kátia. O Miro pagou uma fortuna num cursinho pro vestibular, sabia? O que você paga na semana, não paga uma aula do curso dele." Ela engoliu em seco. -"Sei disso. Ainda devo muitas aulas pra ele." Ulisses riu. Ela o beliscou. -"Rudolf vai entrar pra família Pereira." Ela estava surpresa. -"Não entendi." Ele respondeu, afinando a voz. -"Renata comprou uma caneta dourada. Mandou gravar o nome do professor Rudolf. Vai dar a caneta a ele, na formatura. Escutei a prima falando pra Denise e pra Michele. " Kátia tentou fingir o ódio. -"Renata garantiu que não vai dar só a caneta. Vai tascar um beijão de desentupir pia no professor." Kátia colocou os fones de ouvido e fechou os olhos. Aquela situação a animou para dar o máximo de si no vestibular. Duas semanas pra formatura. Duas semanas para sair o resultado do vestibular. -"E aí, foi difícil? Concorrido?" Ela respondeu que tinha sido tranquilo. Rudolf acendeu um cigarro. -"Tranquilo? Está certo, então. Você vai passar, se Deus quiser." Ignorando que estava na lanchonete, trabalhando, a moça o abraçou. -"Obrigada, professor. Muito obrigada." Ela o apertou. -"Eu não quero sair desse abraço, nunca mais." Rudolf sentiu as pernas tremendo. Kátia grudou as mãos nos cabelos encaracolados dele e o beijou. Os óculos dele caíram. Os clientes aplaudiram a cena. -"Quer namorar comigo, professor?" Ele estava vermelho como pimentão e só meneou a cabeça, afirmativamente. Kátia o apresentou a família. Ela foi a formatura da prima mas não desgrudava de Rudolf. Kátia passou em terceiro lugar no vestibular, saindo no jornal da cidade. Rudolf estava eufórico e feliz. Eles se casaram no civil apenas. Marcel nasceu sete anos depois e não tiveram mais filhos. A família mudou-se para São Paulo, cinco anos mais tarde. O apartamento grande no Morumbi foi testemunha da infância feliz de Marcel. Rudolf estava admirado. -"Kátia. Você fez isso por mim! Muito obrigado, meu amor." Ele chorou ao ver a fila de pessoas no lançamento de seu livro. Os banners gigantes. O nome dele em letras de neon, na livraria. -"Como lançou um livro de contos, se joguei as páginas no lixo?" A imagem da esposa guardando as páginas amassadas surgiu. Kátia passava as folhas no ferro quente e guardava as páginas sobre o guarda roupas. Marcel chegou ao local, com a namorada. Rudolf ficou feliz com a presença do filho. Uma foto imensa de Rudolf, o autor do livro Páginas de Outono. Kátia contava a história deles no livro, além de dezenas de antigos contos de Rudolf. -"Sou um escritor, graças a você, meu amor. Pela fila, um escritor de sucesso." Rudolf abraçou a esposa. Ela parou de dar autógrafos, emocionada. Rudolf vibrou ao ver Dorival e a família entrarem. Eles se apresentaram a Kátia. -"Dorival. Rudolf o cita em vários contos. Sempre falava de você, melhor amigo dele no seminário." Dorival acariciou a foto de Rudolf e abraçou o livro. -"Ele está aqui. Eu o sinto. Esse livro, ele o escreveu. Graças ao Facebook, encontrei vocês." Rudolf abraçou Dorival. -"Cumpri a promessa, Dorival. Eu cumpri. Rapaz, você tem quatro filhos!" Rudolf olhou para o banner, atrás de Dorival. A foto dele, sorrindo. -"Uau. Virou best seller, Páginas da Vida! Autor Rudolf Soutomaior, in memorian." Ele sentiu náuseas ao ler a frase IN MEMORIAN, em letras douradas abaixo do título do livro e se segurou numa cadeira. -"Como assim?! In memorian?! Gente, eu estou aqui." Um vento entrou na livraria, quase derrubando o banner. Rudolf sentiu uma mão leve no seu ombro. -"Hora de ir, Rudolf. Você está há quase um ano aqui, perdido. Infelizmente, não resistiu a primeira onda de Covid19." Ele não viu mais ninguém. A livraria estava vazia. Ele reviveu as últimas cenas no hospital improvisado no estádio do Pacaembu. -"Isso foi tão real. Isso aconteceu?!" O rapaz atrás dele sorriu. -"Sim, há algumas semanas. Olha, tenho um exemplar do seu livro. Já o li e é excelente, uma obra de arte. É seu. Você o inspirou, mesmo em outra realidade. Kátia só o editou com o dinheiro do apartamento. Ela vai se mudar pro Canadá pois Marcel e Lindsay precisarão de ajuda quando os gêmeos nascerem. Poderá visitar eles, futuramente. No Canadá é quase sempre outono/inverno." Rudolf sorriu e abraçou o livro. -"Todo livro começa no astral, meu caro." FIM

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 10/04/2023
Reeditado em 10/04/2023
Código do texto: T7760407
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