Ideologia da Loucura

Em uma festa do Marcos, o karaokê é o grande astro. Eu sabia que no churrasco do Maicão não haveria espaço para pensamentos autodestrutivos, por isso trouxe o Nathan, meu melhor amigo.

Ele é um cara fantástico, sempre dá a volta por cima e consegue iluminar qualquer ambiente sombrio com sua presença, sinto falta dele desde que o mudaram de filial. Ultimamente, ele têm andado com um comportamento assustador, dizendo coisas sobre a óbvia frivolidade da vida e como as coisas não fazem sentido desde que descobriu a traição da namorada há alguns meses.

Não posso fazer muito, eu sei disso, mas me recuso a ter que arrombar a porta da casa dele depois de uma ligação bêbada no meio da madrugada... de novo. Acho que nunca senti tanto medo como naquela noite, o encontrei misturando um monte de remédios, prontos para descerem goela abaixo.

Ele mostra estar tão feliz para todos, só eu estou sabendo o quão desgostoso ele está com a vida. Eu me importo tanto com esse cara, preciso fazer ele ver que ainda há muita coisa pelo que vale a pena viver.

Já faz um tempo que eu venho tentando apresentar ele para uns amigos meus, principalmente a Gabi. Essa menina é novidade pra mim, entrou na empresa há pouco tempo, mas me assusta como ela consegue ter tanto em comum com um cara que nem sabe da existência! Como trabalhamos no mesmo setor, eu conheço bem essa menina. Não que eu esteja dando uma de cupido, mas todos que a viram, e conhecem o Nathan de outros carnavais, concordam comigo.

Enfim, a carne está pronta e a salada de maionese chegou. Nathan está longe do pessoal, colado no karaokê. Não parece muito animado, nem depois de cantar suas preferidas do Pericles.

- Cara, a comida tá na mesa. - Eu falei, na esperança de alegra-lo.

- Olha, Tom, não é por nada não. Tô cansado, acho que já vou pra casa, sabe?

- Não! - deixei escapar esse grito, já que não tive a chance de apresentar a Gabi- Por que não fica só pelo almoço? Assim você não precisa cozinhar em casa.

Ele responde com um suspiro audível, em seguida, passa a buscar pela música mais deprimente que um suicida fã de Cazuza poderia cantar, não parece bom sinal.

- Desculpe, cara. Olha, se preferir, eu te levo pra casa. Vou fazer uma marmita pra você não precisar cozinhar, tá bem?

Sim, eu desisti. Não parece legal forçá-lo a nada nesse estado.

- Não, Tom, eu fico. Sei que você só quer me animar, eu vou retribuir seu esforço. - disse, ainda buscando pela música no jogo - Achei! Essa aqui sempre me anima. Essa música não tem uma letra muito animadora, mas o Cazuza tinha uma paixão contagiante.

- Paixão?...

- Cê sabe, alguns chamam de loucura. - brincou, com uma expressão séria no rosto.

Antes que Nathan apertasse o play, chega o restante da turma, aí vem a Gabi carregando a sobremesa. O alívio que eu senti quando vi que a cavalaria chegou não estava escrito. Fomos nos juntar a eles, deixando a depressão nos observando da tela da TV.

Todos se reúnem na mesa, jogam conversa fora. Nathan está tão desconfortável que bebe boas goladas de cerveja só pra conseguir entrar na conversa. Gabi não bebe, então fica nítido como se sente um peixinho fora d'água naquele ambiente cheio de gente que mal conhece. Ainda assim, ela se esforça para fazer parte disso. Meu Deus, eles compartilham uma estranha introversão.

É hora do karaokê. Todos vão para área coberta do quintal, onde está a TV e o equipamento de som da Juliana. A empolgação desses alegres alcoolizados é sempre um barato, mas foi a sóbria que surpreendeu a todos!

- Oh, é Ideologia? Eu posso começar? Essa música sempre me anima, apesar da letra!- disse ela, com um riso constrangido.

Ninguém teve coragem de dizer que essa não era uma música interessante pra um dia de festa, e não sou eu quem vai tirar a alegria da novata.

Ela aperta o play, aguarda o fim da introdução com ansiedade. Meu Deus, como os olhos dessa mulher brilhavam com os pulos do círculo guiando o ritmo sobre as palavras na tela! Todos observam o show de boca aberta. Não que houvesse um talento musical ali, mas a sóbria canta aos passinhos e rodopios, numa animação que fez todos cantarem sobre morte e corrupção na mesma empolgação, contagiada qual sarampo. Ela gesticula uma guitarra, dança com as meninas e se torna um astro bem na nossa frente!

No fim da canção, a moça parece voltar ao seu corpo, deixando o espírito do rockstar retornar ao túmulo depois de encarna-lo com tanto entusiasmo.

No curtíssimo silêncio antes dos aplausos e vivas dos amigos, Gabi faz reverência para sua plateia naquele quintal festeiro, estendendo o braço e fingindo que soltaria o microfone ao chão, como faria um rapper vitorioso. Em um sobressalto espontâneo, a dona do karaokê se levanta para acudir seu brinquedo, tomando-o da mão de Gabi.

- Menina, você realmente vira outra pessoa quando canta Cazuza! Achei que jogaria meu microfone no chão!

- Como assim? Acha que sou louca? - disse ela aos risos.

- Depois dessa demonstração? - Juliana também ria - É preciso ser louca pra se entregar assim sem ter bebido uma gota!Você arrasou, Bih!

- Você sabe: "o que alguns chamam de loucura, outros ...

- ... chamam de paixão." - completou o triste suicida ao meu lado.

Gabi olha para Nathan, enfim notando sua presença. As pérolas do sorriso da moça iluminam os olhos de meu amigo. Os olhares dos espectadores são silenciosos, mas os recebo como aplausos.

Nate Wilter
Enviado por Nate Wilter em 06/03/2023
Código do texto: T7734290
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