Um Sorriso de Prazer

No relógio batia 3h43 quando foi acometido de súbito por uma insônia. Era uma noite de terça para quarta e não trabalharia o dia seguinte, então relaxou. “Férias, o árduo gozo do trabalhador que foi vilipendiado 335 dias do ano", ponderou. A temperatura estava amena, fez questão de olhar no celular... 22°C. A chuva leve batia na janela, era um som continuo e agradável, seria um calmante natural se a mente não insistisse em voar. Depois de meia hora o cama já causava fragelo ao corpo inquieto, então decidiu se levantar. Mas antes, observou sua companheira dormindo toda esparramada na cama quase desnuda, a temperatura da noite lhes permitia um pouco de nudez, sorriu um sorriso de satisfação ao lembrar do abraço de urso que receberá dela no decorrer daquele dia, aliás, em sua mente passou o singelo pensamento de que somente ela era capaz de tal abraço. Beijou-a com leveza para não acorda-la e levantou-se.

Sem acender a luz saiu do quarto fechou a porta e se moveu na escuridão da casa até o banheiro. E lá, naquele cômodo pequeno brincou de deus, "que aja luz!", pensou ao tocar no interruptor. Enquanto mijava, com os pensamentos soltos ainda, pensou no prazer fisiológico de urinar. "Só existe um prazer que supera o xixi da madrugada, é aquele da conversa com os camaradas regada a cerveja". Deu descarga e amaldiçoou o barulho que essas válvulas fazem por medo de acordar alguém, abaixou a tampa do vaso apagou a luz e ainda no escuro da casa foi ao canto onde guardara seu cachimbo. Pegara o kumbaya, o esqueiro e um fumo de corda e dirigir-se à varanda. Sentou-se, cortou um pedaço de fumo e dechavou com os dedos pôs na mão misturou com o kumbaya colocou no cachimbo, acendeu... Pôs-se a pitar e a observar a chuva.

Era um momento simples. Começou cantarolar My Little Brown Book de Duke Ellington, mas o que veio a cabeça foi a versão no sax baixo de Coltrane. Era mágico. Tudo era de uma magia encantadora. Lembrou-se de suas crias que dormia no quarto dos fundos e sorriu feliz pois seu campo político esse ano vencera o fascismo. Pensou que agora haveria esperança. "Foi um ano difícil!". Pensou na cirurgia por qual passara, nas novas amizades que brotaram, nos velhos amigos que voltaram, no amor impossível que se permitira viver, no ódio semeado pela falta de informação, na banalidade da violência com a qual terá que lidar no dia a dia, na teimosia carinhosa de sua mãe, no renovar da vida no útero de sua irmã... Pensou como se fosse a retorspectiva que imaginou que não faria... E por volta das 5h25 quando o dia se despontava e a chuva fazia um fundo para Coltrane, pessoas passavam na rua para irem ao batente, pensou... "Foi um ano difícil!!!" E sorriu um sorriso de prazer.

Ley Gomes
Enviado por Ley Gomes em 28/12/2022
Reeditado em 28/12/2022
Código do texto: T7681486
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