Sorvetão

O parque Farroupilha, em Porto Alegre, chamado carinhosamente pelos moradores da cidade de Parque da Redenção, estava apinhado de gente, não era por menos, a temperatura estava beirando os 40°C e as sombras frescas debaixo das árvores eram uma opção para quem não estava no litoral. Cláudio havia deixado a esposa e o casal de filhos por alguns instantes para ir comprar algumas garrafinhas de água no outro lado da Avenida Oswaldo Aranha, já que havia esquecido no freezer da sua casa a água congelada que iria trazer, o que não passou despercebido pela sua esposa Beatriz.

- Mas tu é um palerma mesmo! Arrumei toda a comida e a única coisa que eu te pedi pra fazer, que era pegar a água, tu não fez. Vai lá comprar porque eu estou quase derretendo aqui!

A família estava próxima ao anfiteatro Araújo Viana, onde estava acontecendo um evento. Cláudio pegou a carteira no carro, que estava estacionado no estacionamento no lado do campo de futebol Ramiro Souto e seguiu em direção a Lancheria do Parque, tradicional estabelecimento das proximidades. Antes mesmo de atravessar o corredor de ônibus, viu um coletivo quebrado e o motorista com o telefone na mão, na certa ligando para a garagem da empresa para pedir outro ônibus.

Cláudio havia trabalhado seis anos como cobrador daquela mesma empresa, não estando mais empregado devido a retirada dos cobradores, há cerca de uns dois anos para trás daquela cena. Agora os motoristas tinham que cobrar e dirigir, assim como ligar para empresa caso acontecesse qualquer imprevisto, como o que estava acontecendo naquele exato momento.

Cláudio atravessou a rua e percebeu que o motorista era um dos camaradas que havia feito no tempo em que esteve na empresa.

- Mas olha quem eu encontro por aqui, meu grande amigo, Luís!

Nove a cada dez rodoviários eram chamados pelos apelidos. Alguns não davam bola para o epíteto que os colegas encontravam para se chamarem entre si, mas Cláudio sabia que Luís não gostava muito do seu apelido, então acabou chamando-o pelo nome mesmo.

- Fala, meu irmão. Eaí, que anda fazendo por aqui?!

- Vim comprar água para as crias e a mulher. Acho que daqui dá pra ver eles, olha lá.

Luís olhou em direção ao parque e viu a silhueta de Beatriz sentada em um banco e as crianças voando com as bicicletas em pleno sol.

- Que maravilha! – Disse Luís

- Mas me conta, e o pessoal da empresa, alguma novidade? – Perguntou Cláudio.

- Nada do que tu não possa imaginar. Ônibus cada vez mais lotados, horários de viagem cada vez mais curtos e a veiarada cada vez mais na rua.

Depois dos apelidos, essa era uma das principais características dos rodoviários, não gostarem de carregar idosos. Podemos dizer que a proporção era um pouco menos, oito a cada dez.

- É, pelo jeito não mudou nada. – Falou Cláudio, depois de se sentir um pouco aliviado por não ter que aguentar mais esses percalços da profissão.

- Ah, ficou sabendo da morte do Sorvetão? – perguntou Luís.

- Não. Capaz que o velho morreu?

- Morreu! Acho que pouco tempo depois que tu saiu da empresa.

- Poxa vida! Aquele velho era gente boa. Sempre quis saber o porquê do apelido: Sorvetão.

- Ah, pára que tu não sabe da história?! – Luís perguntou já com um sorriso no rosto, pelo visto não estava mais de luto. – Vou te contar. O rapaz da portaria da empresa disse que o socorro recém saiu da garagem.

Luís começou a história do falecido seu Élbio, mais conhecido como Sorvetão. Dizem que há uns 30 anos atrás, quando Élbio recém havia pego o serviço de motorista, havia uma passageira, uma professora, conhecida por todos colegas da linha por sua simpatia. Na época, era uma linda jovem loira, de cintura fina e longos cabelos lisos. Ela tinha um irmão que também era motorista, que trabalhava em outra empresa, e que era mais um motivo para ela ter uma certa cordialidade e respeito pelos rodoviários. Naquele tempo, seu Élbio também era um jovem rapaz, de pele morena, alto e bastante conversador. Havia entrado na empresa há poucos dias, estava no contrato ainda, quando viu na parada de ônibus, esperando a locomoção para ir dar aula na escola onde lecionava, Helena, a bela e simpática professora.

- Muito bom dia, motorista. – Disse, cordialmente, a professora.

- Bom dia, senhorita. Que calor, né. Hoje está bom para ficar em casa, na piscina ou tomar um sorvete. – O jovem Élbio estava encantado com a professora.

- Sim, o senhor tem razão. Mas isso não é pra todo mundo, alguém tem que trabalhar, assim como você e eu.

Aquelas simples palavras “você e eu” tinham parecido, na mente do jovem motorista, uma deixa para um possível caso.

- Eu adoro ir naquela sorveteria que tem do lado do shopping, você já foi?

A professora, que tinha simpatia pelos trabalhadores da profissão de Élbio, mas que sabia da fama da raça, já que seu irmão tinha umas quatro ou cinco namoradas pela cidade afora, não deu muita atenção para os galanteios de Élbio e passou a catraca, sentando-se nos bancos do fundo do ônibus.

Helena era passageira assídua, pegava a condução todos os dias no mesmo horário. Percebeu que Élbio ficava cada dia mais falador, mas devido a sua simpatia, respondia as investidas com poucas palavras que para bom entendedor bastaria para não passar mais por esse pequeno constrangimento e passava a catraca lá para o fundo do coletivo.

Certo dia o ônibus que fazia o horário da frente estragou e quando Élbio chegou na parada na qual Helena estava, o ônibus já estava praticamente lotado, fazendo com que Helena não pudesse passar a catraca e assim ter que ficar na parte da frente do ônibus, ouvindo os despautérios do jovem e fogoso Élbio.

- Um dia desses eu vou ter que te levar para tomar um sorvete. – Não era a primeira nem a segunda vez que Élbio havia dito isso. Helena já havia percebido que o motorista era um tremendo galanteador. Além de ele ficar olhando-a pelo retrovisor toda vez que ela se sentava no bancos após ter passado a roleta, Élbio investia contra toda moça bonita que embarcava. Helena tentava escutar as conversas, mas devido ao barulho do motor que ficava na traseira do ônibus, ela só conseguia fazer uma leitura labial. Tinha a impressão que a palavra que mais saía da boca de Élbio era “sorvete”.

Numa semana em que tudo deu errado para a professora, começando por um bate-boca na escola com os pais de alguns alunos e terminando com a perda da sua carteira, na qual estava o cartão de pagar o ticket do ônibus, Helena embarcou no ônibus e pediu uma carona para Élbio, já que estava sem o cartão. Foi o grande momento, na cabeça do insistente e impertinente motorista, de convidar a professora para tomar um sorvete.

- Aceito, sim. Faz tempo que eu não saio para tomar um Sunday.

Élbio ficou extasiado. Até que enfim a linda professora não resistiu as suas investidas e finalmente ele iria degustar aquela pele branca como um sorvete de côco. Era sexta-feira e haviam marcada de irem no outro dia na sorveteria próxima ao shopping que Élbio já lhe havia dito logo na primeira vez em que se viram.

Havia chegado o grande momento. Helena havia dito para Élbio esperá-la no estabelecimento as 16h. O motorista estava já sentado na cadeira, no lado de fora da sorveteria, quando para seu espanto, Helena apareceu com duas crianças pequenas e de mãos dadas com um homem de quase dois metros altura, negro, que parecia um jogador de basquete.

- Olá, Élbio, até que enfim vamos tomar o tão esperado sorvete. Esse aqui é meu marido, Rudimar, e esses são meus dois filhos, João Pedro e Cosnstantina. Meninos, podem tomar sorvete à vontade porque hoje o amigo da mamãe vai pagar.

Rudimar, que era policial militar, sentou-se de frente para Élbio.

- Amor, eu já volto, vou ali fazer o pedido. – Disse o policial, tranquilamente, como se estivesse atuando na cena de um filme, tamanho era a sua calma. Élbio parecia que havia visto uma assombração, estava branco como um palmito, não conseguia abrir a boca para dizer uma palavra sequer. Passados cerca de um minuto, Rudimar apareceu na sorveteria com mais quatro crianças maltrapilhas que havia encontrado na rua, que estavam pedindo esmola no sinal e que aparentavam serem da mesma família.

-Comam até não poderem mais crianças, aquele titio alí vai pagar.

Quando Élbio pensou em falar alguma coisa, quem sabe argumentar que aquilo tudo era um mal entendido, Rudimar falou que estava um dia muito quente e logo após levantou a camisa para limpar o suor da testa, mostrando a arma que estava na sua cintura. Nesse dia, Rudimar fez Élbio se empanturrar de sorvete, até quase vomitar. Quando se despediram e Élbio foi pagar a conta, o atendente mostrou o valor da brincadeira, $400 em sorvete.

Na segunda-feira, Élbio pediu para o seu chefe trocá-lo de linha, disse que havia negado uma carona para uns garotos mal encarados e que eles disseram que iriam voltar para acertar as contas. Helena havia contado a situação para os colegas de Élbio, já que tinha uma amizade com a maioria dos motoristas e cobradores da linha.

Depois de ter ouvido a história, Cláudio despediu-se do amigo Luís, afinal, o socorro vindo da garagem já havia chegado e, além do mais, sua esposa Beatriz já deveria estar furiosa esperando-o vir com a água. Cláudio pensou na hipótese de levar sorvete em vez de água para a mulher e os filhos, mas viu que não seria uma boa ideia, já que muito provavelmente iria derreter até chegar onde estava a família.

Igor Grillo
Enviado por Igor Grillo em 15/12/2022
Reeditado em 15/12/2022
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