Fliperama Vermelho

Sempre que o sinal da escola tocava no início da tarde, o menino corria como se sua vida dependesse disso. Nunca havia um momento tão gratificante como o de ser liberado de suas intermináveis aulas. Corria primeiro na direção de seu aconchegante lar, lá se deliciava com o almoço, a comida não tinha nem tempo de tocar o estômago, logo o menino já estava na rua novamente. Próximo da escola, havia um pequeno bar que tinha um fliperama azul. Passava horas a finco desafiando outros meninos em um joguinho de luta estrangeiro. Imaginava-se sendo aqueles personagens, por vezes, até imitava alguns golpes. Em poucos minutos, o bar era tomado por outras crianças, das quais, também estavam sedentas para demonstrarem suas habilidades diante da tela pixelada. Eles faziam de tudo para conseguir alguns centavos e ter direito a uma ficha, faziam todo tipo de trabalho que a sua amada vizinhança precisava, para usar apenas em alguns poucos minutos. Trabalhar pouco para esquecer de muito era o preço que pagavam para ganhar distração de suas mazelas. Apesar de haver tantos desafios, o menino era imbatível, acumulava recordes semanais e era considerado o melhor da região. Era até protegido por outros garotos maiores, todos enchiam a boca para gritar: “Campeão, saíam da frente! Campeão, deixem ele passar!”. Nessa vida tão nova, mas já tão gasta, ao menos em algum lugar ele se sentia importante. Não era quando um adulto perguntava do que precisava, pois sabiam que na verdade, eles não se preocupavam de verdade. Nem quando sua mãe gritava que o almoço estava pronto. Não, ele se sentia realmente ali, diante daquele fliperama azul. Seus dedos já tinham muitas bolhas, provenientes daquele controle. A ardência já nem o incomodava mais. Pior que isso era quando a vida de seu personagem terminava, sentia ali a morte como de um parente ou amigo. Seu coração era apunhalado por uma flexa inexistente. Não jogava mais que três fichas no dia, mas ainda continuava lá assistindo os outros meninos jogarem. Saltitava e sorria com as lutas, comemorava e brincava com as vitórias e derrotas. Mas quando o sol, já cansado de aparecer no dia, se escondia sobre o horizonte para dormir, ele voltava para sua casa.

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Sempre ficava curioso que sua mãe acumulava marcas em sua pele, quando perguntada, ela dizia apenas que bateu em algum lugar sem querer. Ora, mas que mãe desastrosa que ele tinha. E nunca entendia a raiva de seu pai, sempre ouvia os gritos em silêncio, a boca dele espumava de raiva. Ouvia até xingamento que fariam o diabo se ofender. Coitado do pobre menino, não sabia que apenas uma bebida era capaz de alterar o modo de seu pai. Talvez fosse a bebida, ou talvez a bebida fosse apenas uma desculpa. A verdade é que o líquido dependia de seu pai, assim como seu pai dependia desse mesmo líquido. Quando a noite chegou achou difícil dormir, rolava de um lado na cama, logo sentia sua camiseta molhada e virava do outro. No fundo, junto com os grilos, ouvia gritos, no começo achava que sua mãe havia se machucado, mas quando corria na direção dela, via que seu pai estava ao seu lado. Os pequenos braços dela presos na mão forte de seu pai, até parecia que era uma presidiaria em sua própria vida. Logo ela o acalmava e dizia para ir dormir, quando não pulava na frente do garoto para sofrer os golpes. Com o tempo ele se acostumou com esse som, para se distrair, ele imaginava as lutas em sua mente. Como poderia aprender novas técnicas, quais desafios teria no dia seguinte. Isso era melhor que contar ovelhas! Porém, em um dia específico, decidiu que tentaria usar esses golpes em seu progenitor, e se desse certo, sua mãe o pegaria pelos braços e o levantaria ao alto gritando: “Meu campeão, você me salvou”. Pobre menino, se eu pudesse interferir diretamente nesta história, tentaria mudar seu pensamento, mas se assim o fizesse, este já não seria mais um conto. Então o menino dedicou todos seus mórbidos dias a aprender técnicas novas, mas não para usar no jogo contra seus amigos, mas para desferir contra seu pai. Dia após dia, suor após suor, suas mãos já latentes e assadas de tremendo esforço, decidiu que chegara o dia. Esperou a vinda dele, observava todo movimento atrás da porta. A mãe na mesa da cozinha, orando com o jantar diante de si. Hoje seria um dia que ele não iria se esconder de seu pai, nem usar devaneios para esquecer do que ele fazia com ela. Escutou a trinca da porta dar um “clique”, e logo seu coração gelou. Sentiu esse mesmo sangue gelado percorrer suas veias rapidamente. Sentia uma fisgada em suas pernas, a adrenalina percorria cada gota de seu sangue. Sua mãe mal teve tempo de cumprimentá-lo quando ele lançou um golpe em sua face. O menino tampou sua boca rapidamente, seus gritos abafados entravam em consonância com os da mãe, que igualmente a ele, tentava afogar os gritos em sua própria boca. Mas coitada, no segundo tabefe ela não conseguiu segurar o grunhido, e soltou um áspero grito de dor. Com a face latente, levantava seus braços mostrando que estava vulnerável. Foi o segundo seguinte em que seu pai virou as costas, o menino lançou-se sobre ele e o apunhalou com toda força em suas costas. O baque seco estourou pelo ar. O menino olhou para sua mãe e lançou um sorriso, finalmente acabara com o sofrimento dela. No momento seguinte, a expressão de sua mãe o deixou ainda mais aterrorizado, era como se ela tivesse visto a criatura mais aterrorizante do planeta terra. Seu pai revidou o soco do menino com outro, mas que atingira sua face. Sentiu a mesma dor latente de sua mãe, mas algo dentro dele doía ainda mais, algo que ele não podia explicar. Diante da adrenalina, aquele golpe não significava nada. Sua visão ficou turva, e desmontou ao chão. A pouca memória que guardava daquele momento, era o de sua mãe o levando até a cama, e implorando por sua vida. Aquela noite foi silenciosa. Diferente de todas as outras, um vazio perpassava aquele corredor.

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No dia seguinte, a face do menino parecia uma melancia, de tão inchada. Teve vergonha de sua atitude, teve vergonha de falar com sua mãe. Se ele tivesse alguma coisa de valor, com certeza levaria consigo naquele momento e nunca mais voltaria, mas tudo que tinha eram as fichas. Abriu sua janela enferrujada, empurrou com muito esforço aquela grande placa de metal. Pulou para o seu quintal, que era relativamente baixo, e sem esforço atravessou seu muro. Em passos largos andou sem direção, as moedas em seu bolso batucavam um som metálico. Sabia dessa vez aonde iria. Onde todos os seus sonhos eram esquecidos, ou melhor, potencializados. O fliperama azul. Lá não viu ninguém, apenas o seu Zé, o dono do lugar. Ele estranhou o menino naquela hora por lá, mas deu de ombros e decidiu ignorar. O menino passou horas ali, sua barriga roncava com o horário do almoço, mas a vergonha de voltar para sua casa era pior. Sua mãe com toda certeza apanhou mais por sua causa. Nem aquela tarde de sábado era capaz de o animar. Quando sua última ficha se tornou um grande 0 na tela, ele criou coragem, ou melhor, desorientado decidiu retornar ao seu lar. Ouvia em seu subconsciente sua mãe o chamando, dizendo que a comida estava quente e que não deveria demorar, caso contrário iria comer frio. Ao passo em que se despediu de seu Zé, um carro cruzou em alta velocidade a esquina, novamente sentia aquela adrenalina percorrer seu corpo. O carro veio em sua direção, mas o que era um alívio para ele, se tornou um pesadelo, pois o homem que estava no banco de passageiro trocava tiros com a viatura que vinha atrás. Fatalmente ele foi acertado. Não cabe aqui dizer de arma veio essa renúncia da vida, o que interessa é que aquele fliperama azul, logo se tornara vermelho com o sangue do menino. Ele se apoiou tentando se manter em pé, mas logo sua vista novamente ficou turva, mas ao invés de ganhar uma coloração branca, como na noite passada, ele sentiu que não havia cor alguma. Seu corpo prostou-se diante do chão, imóvel, calado, e com duas marcas, uma estampada em sua face e outra em seu peito. E foi rápido assim que uma vida toda, ou melhor, uma vida que deixou de ser vida, perdeu seu futuro. Cabe agora citar que caso o leitor seja sensível a esses assuntos, a história pode acabar por aqui. Agradeço que tenha lido e apreciado, mas para os leitores corajosos, como o menino, é preciso acrescentar que a falecida mãe do garoto, teve seu último suspiro na noite passada. O menino, com uma escapatória fugaz, não percebeu que sua mãe estava desacordada. O pai havia fugido, para onde foi, ainda é um mistério, pois a polícia nunca o achou. Ambos faleceram sem dizer adeus. Rápido como sua fuga! Sobre o assassinato do garoto, os culpados estão mortos, assim diz o relatório oficial. E foi assim, que um simples fliperama azul, ganhou uma coloração vermelha de um menino “campeão”. Seu nome? Muitos, mas que foram escritos com letras vermelhas.

R S Canhadas
Enviado por R S Canhadas em 14/11/2022
Reeditado em 14/11/2022
Código do texto: T7649264
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