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A VELHA DOS GATOS

 

 

 

Há muitos anos, na rua onde morei na juventude, habitavam muitas pessoas de idade avançada, como era normal num bairro histórico e pobre como aquele, sobranceiro ao Castelo de S. Jorge, numa das sete colinas de Lisboa.

 

Na vizinhança contava-se uma senhora de idade não muito avançada, mas franzina, de saúde algo debilitada… Quase todos os dias de manhã ela saía às compras, toda encolhida, seguida por vários gatos. Era por todos conhecida como a velha dos gatos, sobretudo pelos miúdos moradores dessa rua. A animosidade deles tinha a ver com facto da senhora alimentar mais de uma dúzia de gatos vadios, que ciosos de refeição gratuita, rondavam diariamente a porta dela - morava num rés-do-chão, num prédio vizinho ao meu.

Ora os miúdos, todos de idades aproximadas à minha, tinham sempre brincadeiras perversas com os bichanos, atando-lhes latas vazias às caudas ou escondendo-lhes os vasos de plástico onde a sua protetora carinhosamente lhes colocava água e comida (restos pois na altura ainda não existiam as rações).

Vendo essas maldades gratuitas ela ficava irada com eles e enxotava-os, o que lhes dava divertimento suplementar. Sempre considerei que nessa idade os miúdos, que ao contrário da atualidade andavam o dia inteiro na rua, brincando uns com os outros, jogando à apanhada, ou futebol com uma bola de trapos, a par da liberdade, desenvolviam um determinado espírito perverso. Paradoxalmente eram mais saudáveis que os de agora, mexiam-se, corriam e saltavam.

Mas tudo acaba e eles fartaram-se de a xingar, bem como aos gatos. Ela era identificada simplesmente como “a maluca do 96”.

Um dia ela desapareceu, não mais foi vista.

Uma semana passou e um cheiro característico junto à porta dela alertou os vizinhos para a possibilidade de ter adoecido e falecido em casa. Não se lhe conheciam parentes, sempre andava sozinha, aparentemente não tinha visitas e por fim, muito pressionados, a polícia e os bombeiros decidiram arrombar a porta. Eu não vi, ainda era muito pequeno e a morte assustava-me, dava-me pesadelos, mas a minha tia, pessoa muito desembaraçada e de coração mole, espreitou e viu-a caída no chão dum pequeno quarto, toda torcida, como se tivesse travado uma derradeira luta. E foi, com a Morte.

Era preciso tratar do funeral e o padre da freguesia da zona, S. Vicente de Fora, organizou junto com as suas muitas paroquianas uma coleta, que também teve a participação da agência funerária.

Os pais de vários miúdos, sabedores das judiarias que os filhos faziam à defunta, obrigaram-nos a ir ao funeral, eu também fui, embora muito a custo.

 

O facto de vários dias seguidos uma fila de gatos se colocar durante horas junto à porta dela impressionou os moradores. Era como se fosse uma última homenagem à sua protetora.

Depois, de repente, os gatos sumiram da rua.

 

O tempo passou e entretanto veio a saber-se que a morta tinha enviuvado cedo, tinha um só filho, que apenas lhe extorquia dinheiro para o jogo e vagabundagem, nem sequer tinha ido ao funeral, embora tivesse sabido do acontecimento. Ela tinha vivido sempre de uma magra pensão que a morte do esposo lhe tinha concedido através da Segurança Social.

- “ Era uma pessoa solitária e triste, mas tinha razões para isso. O único amor que recebera em vida fora dos gatos. Não é fácil viver sem amor “ - dissera uns dia depois a minha tia, abraçando-me e cobrindo o rosto de beijos. Eu era como um filho para ela. Sempre me amou muito e era totalmente correspondida. Foi a minha verdadeira mãe.

 

 

<< Ninguém é uma ilha, facto verdadeiro, mas também é verdade que a afetividade deriva do respeito. Um dia todos dependemos de outros e então reconhecemos o quanto frágeis somos…>>

 

 

 

 

 

Ferreira Estêvão
Enviado por Ferreira Estêvão em 12/11/2022
Reeditado em 16/11/2022
Código do texto: T7648060
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