Fugiu pela madrugada (BVIW)

Fins dos anos 60 e início da década de 70, naquela cidadezinha do interior nordestino, Seu José Silva era o único morador que possuía automóvel. A Rural Willys servia para tudo e a todos. Era nela que seu José viajava, todos os dias, transportando os pais de família para fazerem compras nas feiras das cidades vizinhas, levava os doentes para os hospitais e, nos períodos de estiagem, conduzia os cassacos[1] para os serviços nos açudes e nas estradas vicinais. O transporte também servia aos préstimos dos políticos. Naquela época existiam, no país, dois partidos: o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), cujas cores verde e vermelho, respectivamente, representavam as duas legendas.

Seu José Silva era uma pessoa pacata, tinha preferência pelo MDB, mas respeitava os políticos da outra legenda. Era um homem polido. Já sua filha única, Ana Maria, essa sim, era política e daquelas briguentas e, literalmente, tomava partido e defendia suas escolhas. Mesmo sendo menor de idade, era atrevida e fazia apostas com os comerciantes, usando suas joias e o dinheiro de seu pai. Pois bem, na eleição municipal de 72, o candidato de Ana Maria foi derrotado por 32 votos, o suficiente para tirar do poder o MDB que vinha se mantendo há alguns anos.  

À noite consagrada a vitória do adversário, Ana quase que teve as janelas de seu quarto arrombadas, de tanto que os vencedores batiam e gritavam desafiando-a a sair para ver a celebração. A situação ficou feia para ela e sua família. Ainda pela madrugada eles tiveram que fugir, na bendita Rural, pois não havia lugar na cidade para Ana Maria continuar defendendo seus ideais.

Também, quem manda ser intiqueira[2], e logo naquele período? As apostas foram pagas, porém Ana Maria só voltou àquela cidade anos depois.

 

Iêda Chaves Freitas

08.11.2022

 

 


[1] Cassacos era o nome dado aos trabalhadores que, no período de seca, prestavam serviços em obras públicas e recebiam parte do pagamento em cestas básicas.

 

[2] Intiqueira é uma expressão utilizada no Nordeste que significa desafiar, provocar o outro.