Absolutamente ordinária

Ele comemorava 34 anos, meu irmão é 4 anos mais velho que eu. Parecia feliz de completar mais um ano, mesmo não tendo muitos amigos, a casa ficou lotada. Sempre foi chato, por isso nunca foi fácil lhe dar algum presente, então falei com a minha prima

¬— Você vai no shopping pra mim comprar um bolo daqueles gostosos que ele deu pra minha mãe ano passado?

Como era sexta-feira, ainda estava trabalhando

— Só se for depois do almoço, mas é você que vai pagar né?

— Claro né?

Até um dia antes ele não sabia o que queria fazer de comida especial, até que, no dia ficou decidido que seria churrasco, ele gosta de churrasco, todo mundo gosta de churrasco.

O tempo passava e nada da minha prima aparecer para pegar o meu cartão. Quando batia às 17h da tarde, ouço a voz dela na casa de baixo. Penso comigo “Será que ela esqueceu?”. Meu irmão já sabia que eu compraria o bolo, até brigou comigo pois ele mesmo queria comprar do sabor que queria, do jeito que queria. Minha tia brigou com ele, para reservar o dinheiro que compraria o bolo pra comprar outras coisas.

Desci as escadas e falei com a minha prima

— Caramba, você demorou tanto que agora dá tempo de eu mesma ir comprar o bolo.

E minha mãe logo se meteu

— Então vai com ela!

Eu que já estava de saco cheio do trabalho e queria bater perna, não pensei duas vezes. Chegamos no shopping, a primeira parada obrigatória de todo proletário é no Mcdonald’s pra uma casquinha. Como eu fiquei de pagar o bolo, minha prima pagos os sorvetes. Depois fomos direto na loja que sabíamos ter o bendito bolo de limão, que na verdade era uma torta. Toda lindas e apetitosas. Havia fileira das menores e a das maiores logo abaixo. Logo pensei que a menor seria muito pequena. Perguntei então quanto era a torta maior, qual não foi minha surpresa.

— R$81,00

Na minha cabeça eu soltei um “Puta que pariu, 81 reais numa torta desse tamanho? É de ouro essa merda?”

Mas na vida, foi somente um

— Eu vou querer essa, por favor, a maior.

Tinha ido lá para isso, se não comprasse não teria bolo, porque eu tive a bendita ideia de ficaria responsável pelo bolo. “Por quê que eu fui falar isso?” Agora não adiantava chorar.

O caminho de volta era eu e minha prima discutindo sobre ela me ajudar a pagar a torta. Se compadeceu da minha situação e se comprometeu a me ajudar com pouco menos que a metade do valor total, já era alguma coisa.

Chegamos e os preparativos para o churrasco já estavam adiantados. Minha prima, que sempre fez tudo, mesmo de vestido branco estampado e umas unhas brancas enormes, ficou no comando da churrasqueira. Definitivamente era muito corajosa.

Começamos os trabalhos, a novela começou pra acender a churrasqueira.

—Pega lá o álcool pra mim, por favor?

Em cima do armário, tinha garrafa de álcool, então, pensei que obviamente aquilo era álcool, dei a garrafa pra ela na maior confiança, que recebeu da mesma forma. Já tratou de banhar todo o carvão com o líquido da garrafa. Quando jogou o fósforo aceso, veio a decepção, não aconteceu absolutamente nada.

— Esse álcool é muito ruim! Bradou ela — Seu eu soubesse tinha trazido de casa!

Quando foi cheirar a garrafa, um cheiro estranho de sabão

Meu irmão aparece

— Da onde você pegou essa garrafa?

— Em cima do armário. Disse eu, inocente.

— Aquilo não álcool, criatura! Minha tia colocou sabão na garrafa, você não percebeu?

— Eu não, como ia perceber? Uma garrafa de álcool, parece álcool, na garrafa de álcool, como ia adivinhar que alguém poria sabão ali?

Ele então traz outra garrafa de álcool prometendo ser melhor do que a primeira. Novamente, minha prima banha todo o carvão com o líquido e novamente a decepção quando joga o fósforo aceso, nada acontece.

— Gente, não é possível! Que álcool é esse?

Pega a garrafa

— Cara, isso é pra limpeza, tipo desinfetante.

E ele com a cara mais deslavada do mundo

— Ué, é álcool.

— Não, preciso de álcool 92%, vai ter que comprar.

Ele então corre na rua e compra o álcool adequado

— Agora a gente tem que torcer, porque esse carvão já tomou banho de sabão e desinfetante, só falta não acender.

Pela bondade do santo Deus acendeu, deu tudo certo.

Nos aproveitamos da caixa de som da minha prima, pus minha playlist de pagode antiga, “do tempo que ela não tinha filho” disse eu. Uma das minhas maiores frustações é não saber sambar, porque eu amo pagode. Eu vendo o churrasco correr, falei com a minha prima

— A gente vacilou mesmo né? Podíamos ter comprado alguma coisa pra ele com esse dinheiro.

— Pois é, duas camisas naquela loja de roupa que ele comprou da outra vez.

— Mas ele é chato, não gosta de nada, certeza que não ia gostar.

— Era só ir lá trocar depois.

— Agora Inês é morta, já foi.

Conforme o tempo foi passando, a casa foi enchendo, minha apreensão era se o bolo daria pra todo mundo.

Meu pai, que já tinha vindo mais cedo para almoçar, apareceu novamente com o churrasco já no fim. Com a cara vermelha, eu vou abraçá-lo.

— Poxa, achei que ia trazer o presente do seu filho!

— Minha filha, não tenho uma moeda, meu salário atrasou, tem nem água lá em casa.

O roteiro de sempre. Mas eu pensei “É, mas o cheiro de cerveja tá on”

— Cê tava bebendo né?

Ele desconversa e vai embora. Estava conversando com a minha prima perto da churrasqueira, ele parece, fala alguma coisa e emenda

— Me dá dez reais aí?

Meu pai desde sempre pede dinheiro “brincando”

Ela fica meio sem graça

— É sério isso?

— É, pô, não recarregaram meu cartão de passagem, tenho que trabalhar amanhã.

Ele sai andando e ela me pergunta

— Ele fica pedindo dinheiro assim?

—Uhun, ele nunca tá brincando de verdade quando pede, e vive vindo aqui pedir dinheiro pra passagem.

Então ela pega um bolo de notas, tira dez reais e fala pra minha mãe dar pra ele.

Eu comento com ela

— Que decadência né?

— É um absurdo né? Uma homem nessa idade vir pedir dinheiro pra mãe pra pagar a passagem.

Eu fico triste, penso que meu pai tinha potencial para muito mais, mas por escolhas tortas na vida acabou nessa situação. Eu tento não repetir os mesmo erros.

Todo mundo me perguntava do bolo, quando chegou a hora, peguei a caixa na geladeira e pus na mesa. Chamei todo mundo que estava na sala debatendo questões da bíblia, política e filosofia, mas ouvindo porque meu primo não parava de falar um minuto sequer.

Acendi um fósforo porque não tínhamos vela, batemos parabéns e minha tinha começou a cortar os pedaços. O primeira, deu para o meu irmão, que comeu sem o menor peso na consciência. Conforme todos pegavam seus pedaços, percebia que o bolo foi suficiente, graças a Deus. Ainda sobrou um pedaço para o dia seguinte.

Continuamos a noite, dessa vez a playlist foi para o funk, meu irmão abaixava o volume na parte dos palavrões para minha outra tinha beata na sala não ouvir. Depois fomos para o forró. Combinamos uma praia que obviamente não ia rolar e ensaiamos passos de dança que não sabíamos.

Observei todo aquele contexto por alguns instantes. Não tínhamos luxo, grandes presentes ou acontecimentos, nada de extraordinário ocorreu, mas me senti extremamente grata pelo ordinário mesmo. Nas atuais circunstâncias da vida, se comemorar mais um ano de alguém amado, ter comida na mesa e um teto, já é motivo de imensa gratidão, e foi isso que senti.

A noite findou, minha prima foi embora já de madrugada, subi para casa, tomei banho, já cansada e me sentindo pesada pelo tanto de comida ingerida no dia, deitei e minha mãe

— Fechou a porta?

—Eu não, daqui a pouco seu filho aparece aqui batendo na porta.

Não deu outra, passados alguns instantes, o já não mais aniversariante bate na porta, entra, senta na cadeira vê a reprise da novela das 19h, que eu assistia, porque minha mãe já estava no sétimo sono. Tudo bem que ele mais falava do que assistia, bem filho da mãe dele, não calava a boca.

Quando acaba a novela e começa o jornal da madrugada, ele fala o que realmente foi dizer

— Eu vim aqui perguntar se vocês perderam dinheiro?

— Ué, por que?

Nessa hora até minha mãe acordou

— Eu achei dez reais no chão, do lado da minha cama.

— Ah, era do seu pai, devia tá bêbado e deixou cair. Pior que era pra ele trabalhar amanhã.

— Ah, eu não vou acordar de manhã não.

— Agora quero ver o que ele vai fazer.

Como eu disse, a vida sendo absolutamente ordinária, é de uma riqueza sem precedentes.

Tamiris Pires
Enviado por Tamiris Pires em 23/07/2022
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