A nova condição de Jacira

Os moradores da vila Cruz Santa sempre foram enfáticos: se dona Jacira utilizasse o empenho que emprega em descobrir as intimidades alheias para empreender num negócio próprio ela, muito provavelmente, seria dona de uma grande empresa. Bizarro!

A mulher parece um tipo de criatura onisciente. Ela sabe quanto ganha os seus vizinhos, a despesa, em reais, que os vagabundos dão aos seus familiares, quem traiu ou deixou de trair, e as vezes, quiçá, até o motel escolhido para a formalização do ato pecaminoso. Pesado!

Segundo ela, passarinhos cantarolaram em seus ouvidos, certa vez, que dona Maria, da travessa três, andou levando umas bofetadas de Alberto, quando este chega bêbado em casa depois de estourar o último tostão na taberna do Herculano. E segundo os mesmo passarinhos, Fernanda, da travessa oito, toma o padrasto como amante quando a mãe, dona Esmeralda, sai para trabalhar. Se isso realmente for verdade só digo uma coisa: trágico!

Há uma frase do seu Sérgio, o borracheiro da vila, que se imortalizou na comunidade: “Deus está no primeiro andar, Jesus no térreo e dona Jacira na porta da frente” Nada escapa a mulher. Cruzes!

Ciente de tudo isso, o leitor pode especular que dona Jacira tenha tornado-se objeto de represálias por parte dos moradores da vila Cruz Santa. Ledo engano meus amados. A maroca do bairro é tão solícita e educada com todos que ninguém consegue lhe dizer umas boas verdades. E sabemos bem que ela mereceria ouvir.

Inúmeras foram as vezes que ela bateu à porta de Francisquinha logo pela manhã; o bolo de milho nas mãos, exalando, quem sabe, a quilômetros.

É o famoso morde e depois assopra. A criatura cavouca a vida alheia mas também sabe agradar suas vítimas. Mulher sagaz!

Onde ela passa acena com a mão a todos e cospe um “Paz do senhor irmã(o)” e há também uma boa cota de “Glorias a Deus” em seu repertório. E tudo isso com a bíblia sagrada, de couro legitimo, resguardada debaixo do braço e um sorriso brilhante estampado no rosto. Oh glória!

Mas com dona Raimunda, amiga e cúmplice, a nossa maroca Jacira é totalmente transparente. Não foram poucas as vezes que com um café quentinho e uma boa travessa de biscoito, as duas não mergulharam na vida alheia com direito a muitas gargalhadas e especulações extremamente maldosas.

As fofoquinhas entre as duas sempre findavam com Jacira falando entre risos: “Ai como eu queria ser uma mosquinha para não perder nadica desse babado!” ou, talvez, quando a ideia de ser uma mosca lhe causasse repulsa ela dizia:

“Raimunda do céu, eu queria ser uma borboleta. Ia bater minhas asas para dentro daquela casa e só sairia de lá carregada de boa informação”.

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Bom, é nesse ponto que a nossa pequena história ganha contornos fantásticos. Pois se “Quem procura acha” a dona Jacira findou por achar.

A mulher se deitou para dormir sábado à noite e, até aquele momento, tudo estava completamente normal.

Ela teve um sono leve com sonho, e um bem curioso por sinal. Ela sonhou que voava e voava por cima dos telhados das casas de sua vizinhança. Tudo era muito agradável. Ela dava rasantes em torno dos postes de iluminação e das arvores e nesses momentos sentia uma frio gostoso na barriga. Voou por uma grande extensão de casas observando a vida alheia de uma posição privilegiada. O sonho foi uma visita ao paraíso para ela.

Ao acordar Jacira sentiu que estava levinha, muito levinha, era estranho. Seu corpo parecia não ter peso algum. Ao abrir os olhos, na sua visão, a cama parecia imensa. Teria ela encolhido? Curioso!

Fez que ia levantar-se, mas acabou rastejando para a frente....

Tentou olhar para baixo, mas não conseguiu flexionar o pescoço. Parecia que ela não tinha pescoço.

Tentou se levantar mais uma vez, mas acabou rastejando um pouco mais adiante chegando quase ao beiral da cama.

Sem entender o que estava havendo, a mulher reuniu forças para uma grito, por instinto, mas a única coisa que saiu foi um silvo animal “TUM TUM TUM TUM”.

Na mesma hora ela pensou: “Santa Mãe de Deus, virei um bicho? Mas logo concluiu: “Não pode ser.... Eu me escuto dentro da minha cabeça”

Jacira se lembrou do espelho na cabeceira de sua cama. Ela precisava averiguar o que ela era pois, bem, humana ela sabia que não era. Aos menos não naquele momento.

Ela precipitou-se diante do espelho. Não preciso nem dizer que o seu coraçãozinho ribombou violentamente dentro do peito. Ela contemplou uma osguinha marrom, olhos negros amendoados, com alguns pontinhos pretos aqui e acolá. Santa Mãe de Deus!

O resquício do batom vermelho da noite anterior, quando se deitou, circundava sua boquinha, agora, de lagarta. Era uma imagem engraçada: E dona Jacira, mesmo naquele contexto, não pode deixar de gargalhar gostoso em frente ao espelho: “TUM TUM TUM TUM”

Era um misto de admiração, surpresa e espanto.

A cena para um espectador intruso, naquele momento, seria por demais tenebrosa. Ele(a) teria visto uma lagartixa de cerca de dez centímetros, pegajosa, com uma boquinha vermelha arreganhada em toda sua extensão parecendo gargalhar em frente ao espelho. Insano!

Qualquer outro indivíduo no lugar de Jacira muito provavelmente teria enlouquecido e com absoluta certeza teria tentado contatar alguém que pudesse ajudar. Mas como podem, talvez, especular, esse não foi o caso de Jacira.

Seus olhões negros faiscaram de animação ao se dar conta de quais oportunidades sua nova condição proporcionaria.

Após as óbvias constatações ela simplesmente rastejou para fora do quarto e se precipitou na sala de sua casa. Olhou, friamente para a mobília, com astuta indiferença. Ela sabia que aquele espaço não lhe era mais necessário e não faria falta alguma.

Ela tinha, em seu pequeno cérebro réptil, plano bem definido de como gastar o tempo em seu novo formato. Emitiu um guincho alegre e rastejou para a rua. A partir daquele momento, todas as ruas e todas as casas seriam seu novo lar.

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Alguns causos relatados por moradores da vila Cruz Santa:

Enquanto Esmeralda dava uma boa surra em sua filha Fernanda, uma osguinha cantava no teto de gesso acima delas. Entre tapas e bofetões Fernanda ainda olhou para cima e teve a impressão de que a osga pregada no forro se divertia com seu infortúnio. Achou aquilo estranho, mas poderia ser algo da cabeça dela, pensou a moça.

Uma osga semelhante estava como estátua, atenta, em cima da geladeira enquanto Valéria, ao telefone, contava para a amiga que o filho dela não era do marido. Revelações estarrecedoras.

Dona Maria finalmente cansou de apanha de Alberto e certa noite correu atrás dele com um terçado na mão. Ela se lembra de um “TUM TUM TUM TUM” insistente nas redondezas enquanto corria do pátio à cozinha atrás de Alberto.

Dona Jacira nunca mais foi vista, o caso ainda está sendo investigado. A mulher não tinha filhos, esposo ou qualquer outro parente que alguém tivesse conhecimento. O assunto de seu desaparecimento ficou em pauta por algum tempo, mas afinal de contas, a vida continua certo? E as pessoas, bem devagarinho, foram deixando o assunto do sumiço de Jacira para trás.

Todavia, onde há confidencias e outras fofoquinhas sendo despejadas boca a fora sempre é possível ouvir um “TUM TUM TUM TUM” alegre. Mas isso é completamente normal certo? Afinal toda casa tem dessas osguinhas fofas que sempre aparecem caminhando pelas paredes ou atrás de algum móvel não é verdade?

Leonardo Castro
Enviado por Leonardo Castro em 30/05/2022
Código do texto: T7527260
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