CONTOS DE OUTONO/INVERNO. HISTÓRIA PRA AQUECER O CORAÇÃO.

-"A casa verde da rua das Paineiras. Lá está a velha chata, lavando a calçada." O rapaz empurrava um velho carrinho de supermercado, todo torto e enferrujado, com materiais recicláveis. -"Tá gastando água, velha!" A mulher não deu ouvidos. Além do mais, não podia escutar devido ao trânsito e ao barulho da máquina de pressão. A casa suntuosa de dois andares. Dois carros na garagem. Um jardim bem cuidado. Natanael encontrou Juracy. Os dois coletores de recicláveis se cumprimentaram. -"Passou na casa verde, a mansão dos ricos?" Perguntou Juracy. -"Tá louco, Jura Louco?!? Alí ninguém atende a campainha, não deixam caixas de papelão na lixeira. Gentalha rica de nariz empinado. A velha só faz gastar água, desperdiçando água e colaborando com a destruição do planeta. Vai pro inferno." Jura deu uma geral no outro. -"Mano, tuas roupas estão pela hora da morte. A friaca vai ser forte esse ano, einh." Natanael não se preocupou. -"Nada. Essa gente da previsão de tempo nunca acerta. Há anos não faz frio intenso, maluco. Tô de boa." Jura tocou o ombro do amigo. -"Cara, é sério. Vai pro albergue da prefeitura. Lá tem regras e é chato obedecer regras mas lá tem cama, cobertor, aquecedor, sopa e banho quente pra nós. De graça." Jura se despediu. -"Tchau, maluco. Se cuida pois tem companheiro nosso morrendo de frio, em Porto Alegre. Embora não acredite, você é importante pra nós e pra Deus. Que Ele te proteja." Natanael riu -"Sei. Tá virando crente, Jura? Tá falando igual padre agora. Vai na paz, irmão." Natanael vivia há doze anos na rua. As brigas e o alcoolismo o distanciou da família. Ignorante e arredio, foi mandado embora do emprego na padaria após se queimar no forno. Moveu processo contra o patrão e perdeu pois estava alcoolizado no momento do acidente. A aposentadoria foi negada pela justiça. A rua o acolheu. A rua o envelheceu. O homem de cinquenta parecia ter oitenta anos. Magro, doente, barbudo, fedido. Os outros catadores eram acompanhados por cães, Natanael não. Odiava cães, gatos e gente. Odiava tudo e a todos culpava por sua condição. A noite chegou. Última semana de inverno. As notícias de geadas e até neve no sul do país. Natanael entrou numa padaria. -"Moça, dá um pão? Não tenha medo." A moça no balcão, já tremendo, reparou nas roupas do homem, pegou um saquinho de papel e colocou um pão francês. A outra atendente ficou do lado do botão vermelho de emergência, pronta a disparar o alarme. O rapaz do caixa ligou para o segurança, que tinha ido ao banheiro. -" Obrigado, moça." Ele saía da padaria quando reparou na tevê ligada. -"Recorde nas quedas das temperaturas no sul e sudeste. Em Campo Grande, previsão de sete graus. Limeira, em São Paulo, pode chegar a zero graus." Natanael acenou para o rapaz do caixa. -"Obrigado pelo pão." Saiu. O carrinho barulhento. O rapaz da padaria o chamou. -"Moço. Tem muitas caixas de papelão lá no fundo. Pode levar." Natanael sorriu. -"Quero sim. Valeu." O rapaz o acompanhou. O portão lateral se abriu. Natanael estava abaixado, pegando as caixas, quando sentiu algo nas suas costas. Ele se virou. -"O que é isso?" O rapaz sorria. -"Presente pra você. É sua. Tenho outra em casa, essa serviu direito em você. Pode aliviar o frio." Natanael se emocionou. -"Não. É sério?! Não mereço pois sou um Zé Ninguém." O segurança da padaria se aproximou. Ele viu o gesto do rapaz. -"Essa jaqueta é cara. Muito obrigado." Concluiu Natanael. O segurança tirou as luvas de couro e ofereceu-as para Natanael. -"Pra você, amigo. Vai ajudar um pouco nesse frio que tá vindo. Fica com Deus." Natanael se comoveu. -" Puxa. Obrigado mesmo. Jaqueta jeans do Hard Rock Café, sempre sonhei com uma jaqueta dessas, sabia? Luvas de couro! Tô parecendo o Tom Cruise, em Ases Indomáveis, Top Gun. Não é da época de vocês." Natanael andou até o mercado. Umas poucas moedas e o suficiente para comprar um corote de pinga. Um vento frio de repente. A temperatura caiu demais. As ruas vazias a noite. A cobertura externa do bar do Gordo, onde ele escondia uma coberta esburacada e uma sacolinha com ítens pessoais. -"Hoje não vai dar pra dormir na praça." O papelão estendido. Um tijolo de obra como travesseiro. Natanael tomou toda a cachaça. O frio. Uma chuva intensa. As caixas no carrinho serviram pra fazer uma fogueira. Mesmo com a jaqueta, Natanael tremia de frio. Os pés descalços. Meia noite. Uma da madrugada. Natanael sentiu os ossos congelando. O queixo tremia, as pernas duras. -"É o fim, velho Nata." A imagem de Jura a sua frente. -"Te falei, maluco. Vai pro albergue. Vai morrer de frio, te avisei." Natanael deu um grito. -"Jura. Me leva." Jura riu. -"Quem vai te levar é o capeta. Ingrato, filho da mãe. Sempre ingrato, chato. Morra sozinho." A imagem de Jura sumiu. Natanael virou os olhos. O coração batendo devagar. A morte dele era questão de horas. Seria mais um morador de rua morto pelo frio intenso. Uma luz forte. Natanael mal abria os olhos. -"É um anjo. Estou no céu. Eu morri." Pensou. Natanael despertou dez minutos depois. Estava num sofá, enrolado com edredons e vestia um pijama novinho. Uma touca de lã na cabeça. Três meias nos pés. -"Tome o chá. Está bem quente e fará sua temperatura melhorar." Natanael via tudo embaçado. Dois aquecedores estavam perto dele. Era uma voz feminina. Obedeceu, mesmo sentindo que tinham colocado algum remédio naquele chá. O gosto era bom e lembrou-se dos chás que dia mãe lhe dava quando criança. Um gosto bom de cidreira com hortelã. Uma voz feminina agradável. -"Tome a sopa, amigo. Tem mandioca, cenoura e frango." A moça colocou a colher de sopa na boca dele. Natanael tremia. Ela limpou a boca do homem com um guardanapo. -"Está quente? Quer que esfrie um pouco?" Natanael meneou a cabeça, negativamente. Estava ótimo. Queria dizer mas não tinha forças. Os braços enrolados. A sopa caiu como um bálsamo, devolvendo -lhe as forças. -"Quer mais?! Vou pegar mais sopa." Natanael pode ver a cadeira de rodas saindo da sala. -"Vai ficar bom. Graças a Deus o encontramos a tempo. Já tínhamos resgatados alguns e levados para o albergue." Disse uma mulher, de costas para ele. -"Mais um pouco e estaria morto. O doutor José virá de manhã. Após a sopa, vai dormir e se recuperar. Vamos orar para que se recupere." Disse uma voz masculina. Natanael devorou o outro prato de sopa. Com aquelas pessoas rezando em sua volta, ele adormeceu. Agora alimentado e aquecido, acordou às onze da manhã. -"Bom dia. Como está se sentindo?" Perguntou a moça na cadeira de rodas. -"Bem. Tô bem." Foi o que conseguiu dizer. O médico se aproximou. -"Bom dia. Sou o doutorJosé. Vou avaliar a sua saúde. Tudo bem?" Natanael mexeu o pescoço, concordando. Após um tempo, o médico deu o veredito. -"O senhor está muito fraco. Vou pedir uma ambulância e será internado, até que se recupere bem. Será submetido a vários exames. Não se preocupe, vamos cuidar bem do senhor. A Juliete fez um café da manhã especial para o senhor, poderá tomar seu café tranquilamente, até a ambulância chegar." O médico abraçou Natanael. O médico o ajudou a ir para a mesa. -"Juliete fez bolo, preparou pão de queijo para o senhor. Tem presunto, geléias de goiaba e morango, tapioca. Aproveita pois no hospital não tem isso." Brincou o médico. Natanael quis café com leite. Comeu tapioca e metade de um mamão. Juliete estava feliz. -"Minha mãe o viu, na área do bar. Em meio a chuva, o escuro. Ela o viu. Ela fez o meu tio parar a perua, de recolhimento de moradores de rua, e o salvou. Somos gratos a Deus por isso.. mamãe não está aqui pois teve que ir ao hospital, onde é voluntária." Natanael ouvia tudo em silêncio. -"Se quiser, um cabeleireiro, amigo meu, que também faz trabalho social voluntário, poderá ir ao hospital pra cortar seu cabelo e fazer sua barba." Natanael sorriu, concordando com um sinal positivo de polegar. -"Qual o nome de sua mãe?" A voz saiu fraquinha. Juliete respondeu a Natanael. -"Mila. Dona Mila e eu moramos sozinhas. Aqui acolhemos as mulheres vítimas de violência doméstica, damos aulas de corte e costura para as senhoras do bairro, aulas de violão às crianças. A casa está sempre cheia, o que é maravilhoso. Saímos nas madrugadas, para servir sopa aos moradores de rua, no frio. Quando fazemos o bem, ele volta em dobro para nós." O médico bateu palmas. -"Certamente, Juliette. A ambulância chegou." O médico, um enfermeiro e o motorista da ambulância ajudaram Natanael a vestir um agasalho que ele ganhou de Juliete. Natanael vestiu um boné sobre a touca de lã. Numa caixa, a moça escolheu tênis do número dele. Natanael calçou meias grossas e novas. -"Não mereço tanto." Ele deixou uma lágrima cair. -"Merece pois Deus o ama. Ama a todos. Você tem valor." O motorista trouxe a maca. Natanael foi colocado na maca. -"Me dê o endereço daqui, pra que eu possa voltar. Quero agradecer a sua mãe." Juliette escreveu o endereço num papel e deu-o a Natanael. -"Volte mesmo pois poderei lhe arrumar um dentista gratuito. Poderá fazer aulas gratuitas de violão, se desejar. Aqui terá sempre um prato de comida e amigos." Ele apertou o papel com firmeza. -"Muito obrigado, filha." A maca foi levada até a ambulância. Natanael, na rua, deitado na maca, só via o céu azul. Ele tentou virar o pescoço e ver onde estava mas não conseguiu. Os vizinhos aplaudindo. -"Dona Mila. Dona Mila." Gritavam. O soro, as medicações no hospital, os exames.Seis dias depois, Natanael era outra pessoa. O cabelo curto, o rosto liso. O doutor José ia vê -lo duas vezes por dia. Jura e sete moradores de rua o visitaram no hospital. Mais gordo e recuperado, doutor José lhe deu alta. Sem ter onde ir, ele se juntou a Jura e outros moradores numa casa abandonada. -"Aí maluco. Quem te viu, quem te vê. Jaqueta, luvas, agasalho, cabelo na régua, barba feita e rosto de bundinha de bebê. Só falta arrumar um trampo e deixar a cachaça." Natanael parou o carrinho de mercado. -"Também não vamos exagerar, Jura Louco. Naquela noite, eu te vi, sonhei talvez. Foi real mas quase fui pro saco se não tivessem me recolhido. Me arrependi de não ter ido para o abrigo. Vou lá na casa da dona Juliette pra conhecer a mãe dela, o meu anjo salvador. É aqui na rua das Paineiras." Jura se ofereceu para acompanhar Natanael. -"Vou querer arrumar a dentaria, tá feia. Você bem que poderia fazer aula de violão comigo, na casa da dona Juliete. Jura, a dona Juliette é um anjo." Eles dobrara m a esquina. -"Essa rua é grande, vai do shopping até a praça das Bandeiras. Número 1.294." Disse Natanael, olhando o papel. -"Olha lá, a mulher que lava a calçada e desperdiça água." Apontou Natanael. Jura parou dois estudantes. -"Moço. Por favor, o número 1.294? Aqui na rua das Paineiras." Um dos estudantes olhou os números nas casas. -"É alí. Na casa da dona Mila, no sobrado verde onde aprendemos violão. Lá está ela, do outro lado da rua. " O outro estudante gritou. -"Dona Mila." A mulher se virou e ajeitou os óculos. A mulher acenou. Natanael atravessou a rua e se ajoelhou. Ele beijou as mãos da mulher, sem nada entender. Natanael estava sem palavras. -"A senhora é a dona Mila, mãe da dona Juliete?" A resposta foi afirmativa. Natanael pediu um abraço. Juliete assistia a cena, na janela de seu quarto. FIM

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 23/05/2022
Reeditado em 23/05/2022
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