COSTUMES & MANIAS

Quando penso nas manias que as pessoas adquirem ao longo da vida e em como é difícil abrir mão delas, acabo lembrando de 64. Não do golpe ou da mania desagradável que os militares acabaram adquirindo ao longo da República em se meter naquilo em que não são chamados, mas porque nesse ano Caetano e Marta se casaram.

E o casamento foi num impulso repentino! Conheceram-se durante uma promoção de queijos e presuntos em um badalado supermercado, e antes mesmo de passarem os frios pelo caixa, já haviam decidido se casar.

Uma semana depois estavam morando em um JK alugado. Os apelos de amigos e familiares para que se conhecessem melhor - ou que, pelo menos, esperassem o Castelo devolver o que havia confiscado - foram em vão. Afinal, como é próprio dos jovens, tinham a mania de serem imprudentes. E o Castelo não devolveria nada mesmo.

E de fato começaram a viver um conto de fadas. Pelo menos até a última fatia de presunto acabar.

*Caetano, vasculhando cuidadosamente a geladeira: - Martinha meu amor... não estou encontrando o presunto.

*Marta, secando os cabelos em frente a penteadeira: - Minha vida... comi os últimos pedaços hoje pela manhã.

*Caetano, fechando a geladeira com calma: - Mas ontem a noite deveria ter umas dez ou doze fatias.

*Marta, passando um creme hidratante nas pernas: - Pois é...

*Caetano alterando um pouco a voz: - Não vai me dizer que você comeu doze fatias de presunto numa tacada só ?!?!?!

*Marta, acabando de colocar o sutiã: - Meu rei... sempre tive essa mania de comer bem no café da manhã. Os médicos dizem que é saudável.

*Caetano, comendo pão com manteiga: - Pelo menos você poderia deixar alguma coisa pra mim...

*Marta, acabando de colocar o sapato: - Mas titinho, você ainda estava dormindo. Todos sabem que não é possível comer enquanto se dorme.

*Caetano, com a boca cheia de pão: - Aonde você vai a esta hora ?!?!?! E o almoço ?!?!?!

*Marta, já de saída: - Todo o sábado almoço com algumas amigas do curso de Yoga. Já virou mania. Tchau!

No que se refere aos costumes há apenas dois tipos de pessoas: as naturalmente tolerantes e as que, como se diz por aí, renunciam seus direitos mas não abrem mão de seus hábitos. De qualquer forma, todos possuímos uma lista de costumes já catalogada pelo subconsciente e pela qual acabamos nos pautando.

*Marta, acordando no meio da noite: - Titinho, acorda. Acho que o ar- condicionado desligou.

*Caetano, sonolento: - Eu desliguei.

*Marta, sentando na cama: - Porquê? Vamos acabar derretendo neste quarto!

*Caetano, ainda sonolento: - Não estou acostumado a dormir com ar-condicionado. Me faz um mal danado.

*Marta, incrédula e suando: - Você deve estar louco se pensa que eu vou conseguir dormir nesse calor.

*Caetano, fazendo carinho em seu braço, mas ainda sonolento: - Vai sim, é só questão de costume.

*Marta, entrando na zona de indignação: - Pelo amor de Deus, liga esse ar!

*Caetano, abrindo os olhos pela primeira vez: - O ar vai ficar desligado!

*Marta, saindo da zona de indignação e entrando na de desespero: - Ca-e-ta-no, eu tenho que acordar as seis e meia pra trabalhar! Ou você liga ou eu mesmo ligo!

*Caetano, voltando a fechar os olhos: - Se você ligar eu vou lá e desligo. Como eu não tenho que trabalhar pela manhã, podemos ficar nessa brincadeira o tempo que você quiser.

*Marta, anestesiada pela impotência da situação: - Que tal um ventilador???

*Caetano, virando para o outro lado: - Acho melhor não. Não estou acostumado com o barulho.

Tanto Marta como Caetano esqueceram da primeira grande regra do casamento: a flexibilidade. Trouxeram hábitos da vida de solteiro e não cogitavam fazer concessões.

Começaram a brigar durante as refeições, quando Caetano não admitia a mania dela em raspar acintosamente o fundo da panela de teflon à procura de algo que definitivamente não estava mais lá. Nem ela aceitava o costume dele em limpar a boca na ponta da toalha de mesa que ela acabara de lavar. Discutiam no carro por ela não perder o hábito de fechar a porta com força e ele por ligar o som a todo o volume. Os desentendimentos ocorriam também na hora do sexo, onde ela exigia a luz acesa e ele, por sua vez, imitava aos berros as falas de Marlon Brando em “Viva Zapata!”.

O casamento durou dois longos e intermináveis meses. Resolveram de comum acordo que cada um deveria seguir a sua vida e seus costumes. Os governos militares, que impunham seus costumes, acabaram durando bem mais que isso.

O tempo passou, e com a anistia voltaram também as promoções de queijo e presunto. Foi novamente em uma delas que Caetano e Marta tornaram a se encontrar. Mais maduros e casados (cada um pela terceira vez), trocaram um alô e depois se perderam pelos vastos corredores do agora hipermercado.

Depois disso provavelmente nunca mais se viram. Não era costume de nenhum dos dois ficar relembrando o passado.

Gui Desantana
Enviado por Gui Desantana em 19/01/2022
Código do texto: T7432692
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