HEITOR

- CLÉA MAGNANI

Heitor despertou sem saber onde estava, nem que dia era. Várias partes de seu corpo doíam, mas sua cabeça parecia que iria se partir de tanta dor. A cama dura e estreita em que despertou, lhe era desconhecida, e a penumbra que envolvia o lugar só lhe permitia vislumbrar uma tênue claridade num dos lados da escuridão total. Mesmo forçando a vista, nada conseguia distinguir; tentou se levantar e bateu com a cabeça na parte de cima do beliche onde deveria ter passado a noite. Mas onde estava? Que lugar era aquele? Por quê estava ali? Não se recordava de nada.... Pouco depois alguém tossiu .... Não estava só naquele lugar estranho! Perguntou em voz baixa: - “Quem está aí? ” Mas nenhuma resposta.... Alguém ressonou, grunhiu uma praga e tudo silenciou. Heitor, resolveu continuar deitado, pois desconhecia o tamanho daquele lugar, e com quem teria passado aquela noite misteriosa. Voltou a se deitar, mas a dor de cabeça não permitia nenhuma concentração. Fechou os olhos, já que nada se via mesmo. Um ruído de chaves abrindo um cadeado o despertou, e ele novamente se lembrou de que não se lembrava de nada, alguém gritou: - “Hora do banho!!” – A luz fria iluminou o corredor, e foi então que Heitor pode ver as barras verticais, e o outro beliche ao lado do qual ele passou a noite. Estava numa cela! E haviam mais três homens com ele ali, presos. Um burburinho vinha de outras celas, mas foi imediatamente silenciado pelo ruído dos cassetetes dos guardas batendo nas barras, e da ordem -”SILÊNCIO”!!! Pouco depois um guarda destrancou a porta da cela onde ele se encontrava com outros três homens. Dois mais jovens e um mais velho que ele. Tentou saber onde estavam, mas não obteve resposta de nenhum deles. O guarda os algemou e os conduziu pelo corredor ladeado de celas, até o banheiro, onde iam sendo desalgemados e recebiam uma toalha e o uniforme de presidiário limpos. Dez chuveiros frios jorravam incessantemente, enquanto uma turma entrava se lavava, e saía, seguida de outra turma. Eram 3 minutos de banho para cada um, e os sabonetes cada um deveria ter o seu. Como ele não tinha, um dos colegas de cela lhe passou o seu sabonete, demonstrando alguma atenção. Ao sair do chuveiro, o outro se enxugava e Heitor devolveu o sabonete agradecendo. Sua roupa foi colocada no saco plástico que trazia o uniforme, e foi recolhido por um guarda. Seguiram para o refeitório onde seria servido o café da manhã. Heitor procurou o colega que lhe havia emprestado o sabonete, e sentou-se na mesma mesa. Precisava falar com alguém, saber onde estava, e o porquê de estar preso sem se lembrar de nada.

- ALBERTO VASCONCELOS

Primeira mesa. Gritou o guarda com chapéu de cozinheiro. Imediatamente os presos se levantaram e em fila indiana pegaram no carrinho as bandejas para receber os alimentos. Mingau de aveia, pão, ovos mexidos e uma caneca de café preto, amargo, quase sem açúcar. Um funcionário de idade indefinida, postado no final do balcão entregava a cada prisioneiro o guardanapo de papel envolvendo a colher de madeira com a qual deveriam comer e individualmente, inserir na catraca que abria a grade de acesso ao pátio para onde todos deveriam ir depois da refeição. – Nenhuma palavra! Ordenou o guarda postado numa espécie de púlpito na lateral do refeitório. – Vocês estão aqui para comer e é o que vão fazer se não quiserem ir para solitária. Aqui não se tolera o mau comportamento que vocês tiveram quando estavam em liberdade. Passado algum tempo, que pareceu rápido demais, o mesmo guarda avisou – cinco minutos para o fim da refeição. Levantem-se e saiam em fila. Os monitores do dia recolham as bandejas e coloquem as sobras nas lixeiras. No pátio, Heitor se aproximou do detento estendendo-lhe a mão disse – meu nome é Heitor, muito obrigado pelo sabonete. Com olhar perscrutador, o homem alto de cabelos louros, examinou Heitor dos pés à cabeça e sem corresponder ao cumprimento, acrescentou –aqui o meu nome é B136 e você é o J310. (E apontou para os números gravados com tinta preta nas camisas que estavam usando) nós somos apenas números e não se preocupe em agradecer, você está me devendo o favor e terá que pagar quando eu disser que estou precisando. Disse isso e se dirigiu à escada de acesso à arquibancada iluminada pelo sol da manhã. Agora a angustia que Heitor estava sentindo por se encontrar naquele ambiente hostil, sem nenhuma lembrança do porquê, sem nenhum esclarecimento, sem ter com quem falar, era uma dor quase física. Sabia que estava sendo observado pelos demais detentos e pelos guardas, com armas de grosso calibre, postados nas ameias da muralha que cercava todo o complexo prisional. Ele agora era apenas um número. Por onde andariam seus amigos? Será que tinham conhecimento do que estava acontecendo com ele? Será que tomariam alguma providência quando notassem a sua ausência? Quem alimentaria Baguete, a sua cadelinha York Shire Terrier e seus quatro filhotes ainda de olhos fechados? Heitor foi despertado dos pensamentos pelo alto-falante que determinava, - fim do banho de sol, sigam para as oficinas, em ordem e nada de conversas.

- ARISTEU FATAL

Depois de uns dois ou três dias, a vida de Heitor continuava naquela rotina já conhecida. Banho pela manhã, café, banho de sol, oficina, almoço, outro tempo local do sol, oficina, janta, e cela no final do dia. Num dos intervalos no pátio, o B136 aproximou-se dele, perguntando qual o motivo de sua prisão. Respondeu dizendo que ignorava. De pronto, o companheiro lhe disse que ele tinha o direito de ser atendido por um advogado, o que Heitor logo procurou saber, através da guarda. Foi-lhe designado um defensor público, que horas mais tarde veio lhe visitar. Após algumas perguntas, Heitor começou a lembrar-se de que havia estado numa boate da cidade, aquelas de baixo nível, verdadeiro inferninho, e que saiu com uma mulher e dali em diante deixou de saber o que acontecera. Ah, lhe disse o advogado, você caiu no chamado “boa noite cinderela”. Dali, o defensor, já por dentro de detalhes do caso, dirigiu-se ao fórum local, localizou o processo, e ficou sabendo que Heitor promoveu um grande escândalo no hotel meia boca onde esteve com a prostituta. Preso, foi feita uma busca em sua ficha de antecedentes, e ficou se sabendo que ele era foragido da Justiça, condenado por assassinato de uma jovem, a quem raptara, estuprara, e em seguida matara, isso lá no sertão de Goiás, há cinco anos. Foi encaminhado para aquele estado, na cidade e comarca onde havia acontecido o crime, e levado para o presídio ali existente. O advogado, sempre que visitava o seu cliente, perguntava sobre o caso. Ele logo, muito revoltado, dizia que era inocente, e, até que nunca estivera naquela cidade. Estranhando muito, o defensor foi às minúcias do caso, e conseguiu esmiuçar o processo nos mínimos detalhes. Sagaz, na seguinte visita ao “assassino”, com a permissão da guarda, pediu que ele ficasse completamente nu. Fez um exame por demais detalhado. Saiu de lá, sem demonstrar ao Heitor, exultante! Entrou com um pedido de exame de corpo de delito, informando que seu cliente não era o assassino, solicitando que o mesmo fosse examinado na presença do Juiz da Comarca, como ele houvera sido examinado na prisão. No dia seguinte, após o Juiz fazer a constatação, os jornais de Goiás, como outros grandes diários do Brasil, estampavam na página primeira: PRESO ACUSADO DE COMETER CRIMES DE ESTUPRO E MORTE DE JOVEM, É LIBERTADO POR NÃO TER, PERTO DA VIRILHA, UMA PINTA EXISTENTE NO VERDADEIRO CRIMINOSO! Um sósia de Heitor, disso sabendo, usou a identidade do mesmo para cometer o crime.

Caro leitor:

Você também pode ser coautor deste texto ao escolher nos dois finais abaixo aquele que acha mais conveniente ou, se preferir, produzir outro texto e enviar para ser publicado como final alternativo.

FINAL ALTERNATIVO 1 (- ALBERTO VASCONCELOS)

Devido à claridade do pátio, o corredor em que entraram estava na mais profunda escuridão. Apenas lá no final, havia réstia de luz solar sobre a mesa de onde um guarda os observava. - J310, venha até aqui; falou o guarda de óculos escuros. – Sim! - Diga sempre às ordens, senhor; entendeu? Você está falando com uma autoridade, não é com os seus comparsas. – Sim, senhor. – Consta na sua ficha que você sabe trabalhar com forja, é verdade? – É sim senhor. – Você vai para o pavilhão 3. Apresente-se ao oficial. – Sim, senhor. Sobre uma das muitas portas desse salão, havia a placa com a seta indicando a entrada para o corredor de acesso ao pavilhão 3. A medida que se aproximava do final deste corredor, os sons característicos de ferro sendo malhados e ruído de forjas acesas foram se tornando mais nítidos. Heitor recebeu quatro hastes de ferro e o papel com as medidas das ferraduras que deveria produzir antes da hora do almoço. Várias forjas estavam ligadas e o calor era quase insuportável naquele ambiente cujas janelas, lá no alto, eram minúsculas e guarnecidas por grossas barras de ferro cravadas umas nas outras. Apenas a bigorna, a tenaz e o malho de cabo curto. O trabalho não era difícil, mas com o tempo exíguo para a produção das ferraduras exigia que as quatro peças fossem colocadas ao mesmo tempo na forja e a atenção redobrada para o controle da temperatura a fim de não inutilizar o material. O peso do malho, em pouco tempo fatigou os músculos do braço enquanto o calor provocava tontura, escurecimento de vista e ânsia de vômito. Era preciso sair dali para poder respirar um pouco de ar puro e frio para se recompor. Heitor pediu ao guarda para sair. Sem nenhuma palavra o guarda abriu a porta metálica e o empurrou escada a baixo, fazendo com que ele caísse aos pés de um guarda corpulento com cara de poucos amigos. – Tome, disse o guarda entregando-lhe a caneca. Beba água do bebedouro, de pois pegue a vassoura e vá limpar a estribaria. Molenga, vamos ver se serve para varrer o chão que é trabalho de mulher. A água verde de lodo estava com o gosto horrível. Plantas flutuavam pelas bordas do bebedouro. Heitor cuspiu fora o gole que tinha colocado na boca e despejou o restante sobre a cabeça a fim de aliviar a tontura que estava sentindo. Sentou-se na borda do bebedouro com a intenção de molhar a cabeça mais uma vez, mas antes que pudesse fazê-lo, um som agudo e penetrante fez com que Heitor virasse a cabeça para identificar de a sua origem. O despertador, sobre a mesinha de cabeceira berrava como um desvairado marcando seis horas. A claridade da manhã entrava pela fresta da cortina mal fechada. Ele não tinha a mínima ideia de como a noitada homérica tinha terminado, nem lembrava como tinha chegado em casa, agora só a sede era real, o resto não passara de um sonho...

FINAL ALTERNATIVO 2 (- CLÉA MAGNANI)

Pelas regras e comportamento dos presos, que mal se olhavam, Heitor deduziu que estariam num presídio de segurança máxima. Ao entrar na oficina, onde em cada mesa quatro presos se ocupavam de uma fase da montagem de vassouras de piaçava, enquanto pegava os macinhos de fios plásticos que seriam dobrados ao meio e grampeados na base da vassoura, Heitor tentava se recordar de suas últimas lembranças anteriores. Na véspera estava indo se encontrar com seu sócio, para visitarem um imóvel onde instalariam seu novo escritório de advocacia. Desde a formatura de ambos, três anos atrás, dividiam com outro advogado mais velho, repartindo os custos, mas era constrangedor precisarem pedir para os clientes aguardarem fora da sala enquanto algum deles atendia na única mesa disponível. O novo local, com espaço suficiente até para sala de espera, era o ideal. O táxi que o apanhara no bairro onde residia, parou num semáforo e um homem armado que fugia da polícia após haver tentado assaltar uma farmácia próxima, no momento em que um policial comprava um medicamento para azia, ao perceber o policial, saiu correndo pela rua, perseguido pela viatura que fazia ronda na região. O motorista do táxi se assustou e o assaltante atirou nele, o arrastou para fora do carro, e tomou a direção do táxi. Heitor tentou sair do carro, mas levou uma coronhada na nuca e caiu no banco onde estava, desacordado. A viatura vinha com a sirene ligada, e ao pressentir sua prisão, o bandido jogou o seu revólver descarregado, no colo de Heitor, e fugiu a pé. A polícia encontrou o motorista morto ao lado do carro, e Heitor com a arma dentro do veículo. Mesmo desacordado foi detido e como não havia ferimento visível, Heitor foi preso como comparsa do assaltante. A pancada na nuca foi muito forte, o deixando desacordado até a madrugada seguinte na cela. E ele não se lembrava de nada...só que sentia muita dor de cabeça, e que acordou na cela sem saber o porquê. Aquela situação inexplicável perdurou por uma semana. Mas naquela manhã, ele foi chamado. Alguém o aguardava na sala de visitas. Era o Dr. Arnaldo Medina, seu sócio no escritório de advocacia que o procurava desde a tarde do assalto, o buscando em hospitais, e até no IML, e não o encontrando foi à polícia e o localizaram na prisão. Heitor não conseguia acreditar. Quase morreu, foi preso, sem saber o porquê...

Mas o pesadelo chegou ao fim! Provada sua inocência, Heitor foi liberado, e pôde cuidar de sua vida e da ninhada de Baguete, que já estavam de olhinhos abertos...