A papel pardo

Era janeiro de 2006, as matriculas escolares começaram e Lili muito ansiosa desde que se entendia por gente, acordou as 5 da manhã e foi até o quarto dos seus pais e com um grande pulo entre eles e um bom dia, pediu que sua mãe se apressasse para que fossem logo a escola.

A menina estava toda animada porque enfim iria para a primeira série o jardim já era para criancinhas, Lili se sentia uma adulta, mas pra mim era só mais uma das histórias de uma desbravadora e pequena, porém destemida.

Dona, mãe de Lili, fez primeiro o café de Zé, seu marido. Ele comia todas as manhãs, dois pães brotes, dois ovos com queijo e um grande copo de café. Eu disse grande? Um enorme copo de café.

Já eram 06:00h e Lili já estava contrariada. A essa altura ainda faltam semanas para o início das aulas, mas a menina queria ir com Dona fazer a sua matricula já calçada com os tênis novos e sua saia estilosa.

Você também já deve saber que o material já estava todo comprado, inclusive na mochila, uma linda mochila da Barbie, a cara de Lili. Ela não queria comer, pegou um pacotinho de biscoito Club Social e gritou a mãe: “mainha ande logo mulher, tô aperreada já...” e nada de Dona.

A mainha dela era muito organizada, como iria trabalhar depois de fazer a matricula da filha, já havia feito o almoço pra menina e pra Sr. Zé que ia trabalhar de segurança o dia todo.

A mãe deixou a louça lavada e ordenou que assim que voltasse da escola Lili enxugasse e guardasse tudo, o que a menina mais odiava era guardar louça, pensa na preguiça da pessoa.

Já eram 08:00h e nada da mainha. Lili se estressou logo cedo e começou a resmungar: “ninguém liga pra mim, mainha tu queres que eu cresça burra? Tu não se importas mesmo que eu estude, só pode.” Depois de tanta apelação, Dona finalmente resolve sair de casa, pra variar quando chega no portão se dá conta que a chave ficou na cozinha e aí tem de rodear o quintal inteiro até chegar na cozinha.

Lili mora nos fundos da casa dos avós paternos e até um peido soltado é ouvido pelos tios e pela grande família. Lili não tinha irmãos, mas essa é outra história pra mais frente.

E Dona finalmente acha as chaves e abre o portão. Ela é uma mulher de 30 anos, bem conservada, e faladeira, ela conhece todo mundo e é extremamente popular, por onde passa arruma amigos e arranca sorrisos fazendo a alegria de todos. Tem um coração enorme que não cabe no peito, tira dela mesma pra dar pros que mais precisam.

E nesse dia não foi diferente. Primeiro a pirangueira do bairro começa a parando contando que o seu gato morreu e que tem algum vizinho matando os animais do bairro, mas o objetivo não era esse, era simplesmente vender uns perfumes que Dona realmente não tinha dinheiro para comprar, mas diz que irá indicar as amigas.

Do nada aparece a cabeleira macabra, para Dona, sim meus amigos ela aparece do nada, como uma assombração, ela é assustadora e começa a falar dos mil cursos que fez na semana e das 20 clientes da alta sociedade da Paraíba que arrumou, o objetivo desse discurso era atingir Dona, não sei se eu já falei, mas a mãe de Lili é cabeleira nas horas vagas, ou seja, quase nunca, e a cabeleireira macabra sabe disso, e não perde nenhuma chance de jogar todas as suas conquistas e o que inventa, tudo na cara de Dona.

No meio disso Lili só cumprimentava as pessoas, como explicar pra uma menina de 6 anos que não dar pra virar a cara pra alguém - ninguém - só porque se está atrasado?

Pra o aumento do desespero de Lili aparece uma irmã da igreja, a irmã Glória que diz que Dona irá cantar o próximo hino do coral de irmãs da igreja.

Mas Dona nem sabe cantar.

Lili já bem brava e sem paciência alguma, vira pra mãe e pedi pra fala-la ao ouvido: “ô mãe por favor já dever ser bem tarde já, tu vais se atrasar pro trabalho, bora logo.”

Ah... e antes que você venha me questionar o porquê Lili chama a mãe de “tu” e não de senhora, eu já vou lhe explicar, é que Dona se acha uma pessoa muito nova para ser considerada “senhora”, hipocrisias a parte.

Dona dispensa a irmã com um: “a paz do senhor” e segue o caminho para escola.

Quando a menina ver aquele muro enorme, verde e com o nome escrito no muro de forma abreviada de tão grande que é, Lili se emociona e pensa: "... Agora é oficial finalmente vou pra escola de gente grande."

Um cumprimento ao segurança, que daqui uns dias será um dos seus amigos, quando o avô de Lili, a esquecer na escola em vários dias seguidos.

Lili entra com sua mãe na escola, ela nunca viu tantas salas juntas, na escola antiga tinha só um grande vão onde todas as crianças misturadas e de series diferentes, se amontoavam numa grande farra.

A menina Lili ficou paralisada e Dona gritou: “Menina deixa de ser boba se avexe minha fia que não tenho o dia todo.” Agora Dona está preocupada com o horário! - Eu sei, uma piada né?

A secretaria da escola onde realizavam as matriculas, ficava no fim do corredor principal, as salas ficavam na lateral e havia esse grande corretor cortando-as.

Chegando na secretária quem recebeu as duas foi Maria a diretora da instituição. Maria as cumprimenta e pergunta: “Vieram realizar a matricula dessa moça? Qual o seu nome princesa?” E Lili prontamente responde falando seu nome completo e Maria se assusta e pergunta: “Você é filha de Zé, filho de Penha?” E Lili balança a cabeça em sinal afirmativo.

Maria então encerra: “fui professora do seu pai, pensa num menino danado, mas a sua tia Cris era a mais inteligente da escola, sinto falta dela, é uma pena que não a vejo fazem alguns anos”.

A tia Cris trabalhava muito, buscava passar num vestibular tinha o sonho de fazer faculdade, mas na época não tinha Enem, nem nada disso entrar numa instituição de nível superior era sonho muito grande, nessa época Lili não sabia, mas num futuro bem próximo, tia Cris seria sua grande inspiração.

Lili não queria papo furado queria saber onde seria sua sala e quem seria sua professora, por isso já não contendo a sua ansiedade vira para Maria e pergunta: “A senhora sabe onde vai ser a minha sala e quem será a minha professora?” E Maria responde: “Claro Lili, preciso só pegar a sua documentação colocar no sistema e fazer algumas perguntas para a sua mãe, mas enquanto isso a Diana pode te acompanhar até a sala que você irá estudar, acredito que a professora também estará lá, ela veio hoje mais cedo organizar alguns livros.” – O funcionamento era rápido.

Lili nem tinha percebido que tinha uma outra pessoa lá com elas, essa Diana era mulher bem magra e bem baixa, e durante todo trajeto não dirigiu uma palavra a Lili. À medida que andavam e as duas iam se afastando de onde Dona e Maria estavam, a menina começou a estranhar, as salas ficavam entre o corredor e porque a tal Diana estava a levando para trás da quadra de esportes?

Lili reflete um pouco e pensa: “Deve ser uma sala nova, ebaaa!” e essa ideia a anima ainda mais. Chegando na porta da então “sala”, Lili olha ao redor vê que tem uma cozinha ao lado, a quadra de esportes a frente e um grande pé de mangueira que tem galhos tão grandes que batem no teto da sala.

A tal Diana bate na porta e dela sai uma senhora de uns cinquenta e poucos anos, pra mim estava mais para setenta e poucos, cabelos brancos e voz fraca, era Tia Elis, que fala: “Seja bem vinda minha querida, seu cabelo é muito lindo.” O cabelo de Lili era cheio de tranças e ela amava isso, mas ela não acreditava que a tia do deposito da escola era a professora, a essa altura do campeonato ela já estava farta daquilo e vira pra Diana e fala: “Você está brincando né? Aqui não tem nem cadeiras.” E Diana responde: “É que a demanda aumentou e não tem sala suficiente para todos, vamos abrir uma turma aqui.”

Incrédula a coitada Lili pede pra Diana lhe levar a sua mãe que está sentada numa cadeira como numa entrevista para o desembarque em país que não se têm passaporte, estimo que eram umas 100 perguntas.

Lili senta no colo da mãe quando é a hora da seguinte pergunta: “Dona qual a cor da Lili? Na certidão dela não está preenchido. Ela parece ser meio amarela e meio amarronzada, tudo misturado, cor de sujeira sabe? Branca não é, e negra muito menos. Não me leve a mal, mas queria saber da senhora se posso colocar que ela é parda.”

Lili nunca ouviu isso na vida. Ela tinha Dilson seu melhor amigo e ele era negro, isso nunca fez com que se sentisse diferente dele e ouvir que Lili era suja e não tinha uma cor certa a deixou bem intrigada, e toda curiosa, como a maioria das crianças, ela ficou com uma pulga atrás da orelha.

A diretora Maria marcou que a cor da menina era parda, durante a entrevista e depois de mais de meia hora a matricula finalmente estava concluída e oficialmente Lili era aluna da 1° série do Ensino Fundamental. Ela nem estava feliz mais, que ambiguidade, até pouco tempo antes ela estava eufórica com a ideia de estudar em uma escola nova, mas o fato de ser intitulada parda não saia de sua cabeça ela queria saber o que significava aquilo tudo, a dúvida e a incerteza acabaram com a felicidade da menina.

Dona deixou Lili na esquina de casa e foi para a parada de ônibus, pois precisava ir trabalhar. Lili chegou em casa trocou de roupa e conferiu se o pai já tinha ido trabalhar, ele ainda estava lá, jogado no sofá como sempre fazia nas horas vagas, e essas horas eram todas do dia que ele podia, o Sr. Zé amava não fazer nada, e Lili entendia, afinal ele trabalhava muito.

A menina pediu pro pai: “me leva no vovô quero muito aprender com ele mais uma super lição de vendas.”

Lembra que eu falei no começo que Lili mora atrás da casa dos avós? Mesmo assim ela precisava que o pai a levasse lá, eram regras loucas de Sr. Penha que tem uma mercearia pequena, todavia uma grande influência no bairro e Lili amava cuidar e aprender a tomar conta dos negócios do seu avô. Sr. Zé a levou na casa do Sr. Penha que quando viu a neta, lhe abraçou bem forte e lhe disse: “menina você está comendo pedra? Ele sempre dizia a mesma coisa, não se cansava, e o seu velho avô fingia não aguentar o peso da menina para que ela sorrisse e lhe desse um grande beijo. Lili amava o avô, mas naquele momento só pensava em uma coisa.

Da escola para casa Lili lembrou que na mercearia do seu avô ele usava um papel que chamava de pardo para enrolar as encomendas e Lili queria muito comparar a sua cor com a do papel.

Por isso virou pro avô e disse: “Vô qual desses papeis é o pardo? “E Sr. Penha respondeu: “Aquele sem cor, de cor de burro quando foge!” – Ele sempre tinha esses ditos maravilhosos. Lili riu da expressão usada pelo seu avô pegou o papel e começou a observá-lo.

Que papel estranho pensava – ele é mais resistente que o branco, mas é mais áspero. A criança toca, observava e analisa minuciosamente com uma cara de incredulidade aquele papel. E ela correu pro quarto da sua Vó Lia que a abraçou e lhe ofereceu um pouco de perfume, Vó Lia só andava cheirosa, vaidosa que só ela, mas naquele dia Lili queria só o espelho. Por isso, ela parou em frente dele, olhou para seu reflexo e olhou para o papel ao mesmo tempo, como em uma comparação e concluiu que não ela não era da cor daquele papel e não entendia o porquê saber a sua cor era tão importante para a diretora na hora da sua matricula na escola.

Naquele dia Lili chorou, pensava: “isso deve ser muito importante, o que será de mim se eu não tiver uma cor? serei como esse papel, sozinho, sem cor, e enrolarei encomendas. mas nem ao menos parecida com ele eu sou, queria pelo menos ser um papel pardo! mas o que sou?”.

A vida de Lili mudou naquele dia, ela descobriu que a cor das pessoas importava e começou a buscar respostas para isso, será que ela descobriu? Isso não saberei responder.