HISTÓRIA DO HOMEM

“No princípio era o verbo”. Era a ação. O homem vivia do imediato e agia apenas para satisfazer suas necessidades básicas. Mas um dia o homem encontrou outro homem, subjugou o outro homem e o forçou a agir por ele e a satisfazer não só suas necessidades básicas como seus prazeres mais supérfluos. Então o homem teve tempo de parar e pensar. E o homem começou a olhar para todas as coisas que estavam à sua volta e a perguntar o que eram, de onde vieram por que eram assim. As respostas que pensava encontrar, transmitia para outros homens que continuavam a indagação e a busca a partir de onde este homem parou. O homem subjugado também fazia descobertas porque, mesmo contrariando a crença do homem que o subjugara, também era homem. E o homem subjugado transmitia para seu filho as suas descobertas que eram mais concretas uma vez que por ser verbo, não tinha tempo de pensar. Descobria na ação e na ação transmitia a seus descendentes tudo o que aprendia.

O homem que subjugou o outro homem, inventou a filosofia, que é a ciência que coloca em palavras tudo aquilo que a gente sente, sabe e não consegue explicar. Um personagem de Guimarães Rosa disse: “O que um dia vou saber, não sabendo eu já sabia”.— filosofia pode ser então, em última análise, até mesmo o saber do homem-verbo que não teve tempo de pensar.

Mesmo sem que o homem que subjugou soubesse, e o homem que foi subjugado tivesse condição de saber, existe uma coisa muito complexa e completa, uma coisa cujo conceito é lindo, é poético e é divino: o sistema. E graças ao sistema que tudo une e tudo liga, que a todos coloca influenciando e sendo influenciados, que a cada ação impõe uma reação, o homem que subjugou e o homem que foi subjugado criaram, juntos, a comunidade, a civilização.

Cada um se colocou no seu lugar e, em uma disputa nem sempre muda e nem sempre poética, o homem que subjugou luta para conservar a bota sobre a cabeça do homem que foi subjugado, e este luta para se libertar da bota que o aprisiona.

Na tentativa de sobreviver a seu tempo e continuar a defender seus ideais opostos, o homem que subjugou e o homem que foi subjugado - paradoxalmente juntos - inventaram a educação.

O tempo passou e tudo foi se transformando, os dois homens evoluíram e tudo o que iam criando evoluía também. Algumas coisas mudavam, ou davam aparência de mudança. Às vezes o filho do homem que subjugou tomava o lugar do homem que foi subjugado e, por um ou outro desvio da história, o filho do homem que foi subjugado, colocava seus pés sobre a cabeça do homem que subjugou. A roda da vida girou, mas nunca o homem pôde deixar de subjugar ou de ser subjugado.

Apesar disso, o homem inventou a ética. Ele descobriu que a filosofia, ciência por ele inventada, tinha como função debater princípios. Descobriu que os princípios, por mais que ele desejasse o contrário, são valores que independem de comportamentos ou convenções relativas. Um homem chamado Kant disse: “Mesmo quando eu minto deliberadamente, mesmo que pela melhor causa, eu naturalmente sei que estou mentindo.”

Mas, se os princípios são absolutos, e se o homem que subjugou deseja manter seu poder sobre o homem que foi subjugado, e já que o homem que subjugou tem tempo para pensar, ele então pensou. E pensou em maneiras de relativisar os princípios. O homem que subjugou pensou em maneiras de mascarar os princípios, pensou em fórmulas de camuflar os princípios para que o homem que foi subjugado não percebesse a diferença entre o relativo e o absoluto. E o homem relativisou tanto que inventou palavras mais poderosas do que máquinas, mais capazes do que robôs, mais sutis do que toda a alta tecnologia que conseguiu criar. O homem que subjugou inventou palavras como: morte justificada, inferioridade racial, supremacia de raça, classe superior, minorias supérfluas, destino manifesto...

E a educação? No princípio o homem que subjugou criou a escola. Nela ministrou uma educação somente para seus filhos e não deu ao homem que foi subjugado o direito de ver seu próprio filho na escola. Mas nas reviravoltas da história, o filho do homem que foi subjugado acabou conseguindo entrar na escola, escolheu uma cadeira e sentou-se para assistir às aulas.

E a escola ensinou as respostas que o homem que subjugou encontrou enquanto pensava e ensinou alguma coisa do que o homem que foi subjugado aprendeu sendo verbo. Depois o homem que subjugou viu que os conhecimentos estavam muito diversificados, então resolveu fragmentar a educação e as pesquisas e inventou as ciências e a especialização. O homem que subjugou viu também que não podia dar ao filho do homem que foi subjugado as mesmas chances que dava a seu próprio filho, então separou as escolas. Havia a escola para o filho do homem que subjugou e a escola para o filho do homem que foi subjugado e como o homem que subjugou, por sorte, tinha inventado também a política, inventou maneiras de garantir que somente seus filhos manipulassem a política e o poder, inventou as leis para dizer ao homem que foi subjugado que seus olhos baixos eram e deviam ser assim porque a lei está acima de todos os homens. E, ainda, para que o homem que foi subjugado não tentasse levantar os olhos e a cabeça, o homem que subjugou inventou algo mais poderoso do que as armas e mais devastador do que as bombas: inventou a ideologia.

O sistema, a história, a ética, os princípios... e o homem não pode fugir para sempre do que é imutável. Alguns homens pensam e, por incrível que pareça, alguns homens pensam mesmo sem que tenham outro homem sob o peso de seus pés; mesmo tendo, ele mesmo, vários pés fortes e persistentes, firmemente calcados sobre sua cabeça. E esses homens abrem portas. Muitas vezes lubrificando com seu sangue as dobradiças emperradas, esses homens abrem portas. A educação tornou-se uma porta por onde o homem que foi subjugado pode passar e, principalmente, por onde este homem pode conduzir outros homens.

A ciência fragmentou-se tanto na tentativa de explicar o máximo sobre o mínimo que o especialista tornou-se “uma ilha de saber, cercada por um oceano de ignorâncias”. Então a história trouxe a necessidade da desfragmentação, da tentativa de reverter esse quadro que, embora tenha sido útil em um determinado momento, tornou-se obsoleto com o correr dos anos. Daí a necessidade que os homens que abrem portas começaram a ver da interdisciplinaridade na educação.

Os homens que abrem portas têm muita dificuldade para existir. Os homens que subjugam não gostam deles por motivos óbvios, e os homens que são subjugados dificilmente os compreendem. Mas eles conseguem coisas, algumas boas, algumas nem tanto; e entre vitórias e derrotas, os homens que abrem portas vão conseguindo até mesmo — inacreditável! — convencer alguns homens que subjugaram a ceder um pouco mais de espaço para os homens que são subjugados.

Mas tudo tem seu contraponto: O homem que subjuga muitas vezes consegue, pensando, transformar o espaço que deu ao homem que foi subjugado em mais espaço de jugo, e o homem que abre portas vê diante de si mais uma porta cerrada.

Então o homem que abre portas sente necessidade de se multiplicar; porém, ao contrário do homem que subjuga e do homem que é subjugado, o homem que abre portas só consegue se multiplicar se ensinar outros homens a abrirem portas. Não é uma tarefa fácil, mas é uma possibilidade que só é viável através da educação. Então o homem que abre portas atua na educação e vê nela a possibilidade de fazer com que o educando possa ter uma consciência crítica de sua realidade. Só que a realidade, em sua infinita complexidade, escapa ao controle do saber especializado e torna imprescindível que se ofereça ao educando outras formas de compreensão. Daí o homem que abre portas vê a necessidade do tratamento interdisciplinar, tanto na pesquisa quanto no ensino.

Como sempre, o homem que subjugou pensa, e pensa em uma maneira de usar em seu benefício a descoberta do homem que abre portas. Consegue.

Consegue criar em suas empresas, possibilitado por ideologias criadas a partir das descobertas do homem que abre portas, o empregado multifuncional. Onde antes tinha três homens que foram subjugados exercendo três funções diferentes, o homem que subjugou coloca apenas um empregado multifuncional e demite os outros três.

Então só resta ao homem que abre portas continuar machucando seus ombros na madeira resistente e derramando seu sangue nas dobradiças emperradas, tendo diante de cada porta aberta uma outra por abrir e a crença que não o deixa parar de que, através da educação, mais e mais homens aprenderão a abrir portas.

Divina de Jesus Scarpim
Enviado por Divina de Jesus Scarpim em 01/02/2021
Código do texto: T7173828
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