O BRILHO DO TROFÉU

Coloca-o novamente na estante, só agora vê como ela está velha; as prateleiras lascadas, as pernas bambas e a madeira riscada pelo patinar dos anos. Mesmo assim o troféu está lá, imponente e valioso. Valioso não, precioso! Afasta-se dois passos e continua olhando com olhos vidrados. Sim, ele brilha. É a coisa mais linda que já viu.

Decididamente hoje foi o dia mais feliz de toda a sua vida. Sente orgulho de si mesmo, uma alegria grande como se tivesse uma bexiga de festa dentro do peito tão cheia que só mais um assoprãozinho ela estoura fazendo aquele barulho enorme. Tem até um pouco de medo: a mulher e os filhos já foram dormir.

Sentiram orgulho dele, não sentiram mesmo? A mulher estava feliz, sentada na cadeira do salão com o vestido que pegou emprestado da vizinha. Um pouco sem jeito coitada, não está acostumada com lugar tão cheio de gente importante; mas ela sorria para ele e fazia perguntas, ele contando tudo: aquele lá, de terno cinzento e gravata amarelada é o gerente; o outro, aquele ali que virou a cabeça agora, viu? É o diretor. A mulher olhava e balançava a cabeça confirmando, admirada. Ele conhece todos esses homens engravatados com sorriso fácil e voz repousante, não é mesmo? Tudo bem que nunca nenhum deles falou com ele na fábrica, mas ele entende. Esse pessoal é muito ocupado, estão sempre trabalhando muito. Além disso numa fábrica grande são tantos funcionários, não é possível lembrar de todo mundo mesmo, não é?

Quando seu nome foi chamado e se levantou sob o som dos aplausos, sentiu o coração parar de bater um tempo. Andou até a mesa e recebeu o aperto de mão e os parabéns de toda a diretoria da fábrica. Antes de entregar o troféu, o diretor até fez um discurso elogiando-o pra todo mundo que estava ali no salão! É, esse foi o dia mais feliz de sua vida!

Depois de 14 anos trabalhando na fábrica pode dizer que conseguiu vencer. Começou como ajudante quando chegou do interior com a mulher e os dois filhos mais velhos, os outros nasceram depois. É semi-analfabeto, freqüentou apenas quatro anos de escola, o suficiente para aprender a ler e escrever: Educação Fundamental. Tinha trabalhado a vida toda na roça, nem sabia o que era uma fábrica, agora a conhece inteirinha. Só não os escritórios, claro. Lá não entra pião; a não ser com o coração batendo forte de medo se por acaso for chamado pela chefia. Isso não parece mais do que o natural. Não questiona, nunca lhe passaria pela cabeça que ele é igual a qualquer pessoa que trabalha nos escritórios. Até os varredores de lá são mais importantes que ele porque estão sempre em contato com a diretoria e a diretoria é composta de deuses. Seu juízo de valores, eficientemente formado pela ideologia vinculada pela empresa lhe aponta exatamente o seu lugar.

Realidade é tudo aquilo que apreendemos através de nossos sentidos, para ele a realidade desse momento era brilhante como seu troféu. A realidade é construída pela consciência humana que produz idéias; idéias têm carga simbólica, subjetiva. A realidade é relativa porque construída através da subjetividade. A realidade dele, nesse momento é a de um vencedor. Suas idéias são processadas da forma mais simples. Incapaz de sair do senso comum, sua consciência lhe diz que ele venceu, venceu porque quando chegou do interior, pobre e sozinho, com mulher e filhos pra criar, teve a sorte de encontrar emprego na fábrica, não numa fábrica qualquer mas nessa, que valoriza seus funcionários como se fizessem parte de uma família, isso é o que sempre diz a revista interna que circula todo mês. Colorida e cheia de fotos de confraternizações, funcionários que se destacaram, filhos recém nascidos de funcionários e, é claro, entrevistas com membros da diretoria que explicam a todos como e porque estão satisfeitos com seu pessoal, como na empresa tem pessoas que são exemplos: trabalham apenas pelo bem da empresa e não medem esforços para que eles se tornem os maiores do mercado — o pronome “eles” é para ser entendido como se cada um dos funcionários fizesse parte desse plural —, mostra que os líderes da empresa, como um pai justo, sabem premiar os esforços dos membros da grande família que são.

A produção aumenta e a fábrica dá promoção aos funcionários que se destacam em dedicação e eficiência, como ele que entrou como pião e agora é inspetor de qualidade. A fábrica instituiu até um sistema de premiação para as idéias que os funcionários dessem e que fossem implantadas para fazer aumentar a produção e reduzir os custos. O prêmio varia de acordo com a importância da idéia. Ele, desde que começou o sistema a funcionar, deu quatro boas idéias e todas foram aproveitadas, uma delas recebeu o prêmio máximo: metade a mais do salário naquele mês. Nunca lhe passaria pela cabeça duvidar de que está sendo generosamente recompensado por suas idéias, não sabe e não acreditaria se alguém lhe contasse que, enquanto ganhou o suficiente para comprar uma televisão colorida, deu à empresa um lucro que chega a milhões. Nossa, como a família ficou contente! Nos primeiros dias nem se dormia mais no quarto. Dormia todo mundo no sofá da sala, vendo televisão. Só saíam quando fechavam todos os canais. Até hoje tem dia que os meninos ficam vendo filme até tarde. Ele não porque tem que acordar cedo pra ir trabalhar. Como volta tarde do trabalho por causa das horas-extras que faz, não tem muito tempo de ver televisão durante a semana, mas todo domingo vê inteirinho o programa do Silvio Santos. Mais ideologia vinculada em forma de diversão e até mesmo de informação.

Em 14 anos nunca faltou um dia ao trabalho e nunca chegou atrasado. Agora se sente recompensado. Não vai ser o Silvio Santos das tardes de domingo quem vai lhe contar que não falam com ele na fábrica porque para os “deuses” ele não existe: não é uma pessoa mas um número no gráfico de lucratividade, nas planilhas de custos. As demissões que acontecem sempre não são comentadas e ele aprendeu a não questionar. Cada um que cuide da sua vida.

Então, depois de verificar mais uma, duas, três vezes o brilho do troféu na estante, depois de verificar que não esqueceu de comprar a latinha de kaol para que a mulher possa polir o troféu toda semana com uma flanelinha, depois de decidir que no fim do mês, sem falta, vai comprar uma estante nova, vai para a cama. Demora ainda um pouco a adormecer fazendo cálculos de quanto vai poder pagar pela estante nova. Nunca gostou muito de dívidas mas dessa vez vai fazer uma prestação, nem que seja pra pagar em três anos vai comprar a estante mais bonita que encontrar nas Casas Bahia, seu troféu merece um lugar de destaque. Afinal, não é todo mundo que recebe das mãos do próprio diretor da empresa o troféu de Funcionário Padrão.

Divina de Jesus Scarpim
Enviado por Divina de Jesus Scarpim em 01/02/2021
Código do texto: T7173820
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