UM NATAL NO TERREIRÃO

UM NATAL NO TERREIRÃO

BETO MACHADO

É um domingo véspera do Natal. A temperatura lá nas grimpas deixou a rua principal do Terreirão com um vai e vem de banhistas, fora do comum. Imaginem como será a noite nessa comunidade com altíssima densidade demográfica. Não faço a menor idéia.

Há muito tempo que o carioca perdeu um pouco de suas essências culturais como, por exemplo, passar o Natal em casa. Mas a migração veio pra fazer a diferença. E os nordestinos vieram pra “segurar a peteca”. Enquanto os “nativos” do Rio de Janeiro formam uma sociedade ávida por buscar alegria nas ruas, transformando calçadas em extensão de bares e restaurantes, curtindo suas noites, enterrando suas dores muitas vezes sob a proteção da dindinha lua, aqueles que migram pra cá, não se desgrudam de suas culturas adquiridas nos seus estados e suas cidades.

Idalina observa ansiosa, da janela de seu micro apartamento, no segundo andar do prédio mais cobiçado por quem procura imóveis de baixo custo, para alugar, no Recreio dos Bandeirantes. O Terreirão, encravado no seio do Recreio, é considerado o Berço dos migrantes nordestinos.

A ansiedade de Idalina ultrapassa as raias da chegada da meia noite. Sua mesa já está pronta, posta e com a arrumação do jeito que ela gosta. É claro que Idalina contou com o auxílio luxuoso de Ana Lúcia, filha de dez anos, carioquinha da gema, ciente e praticante dos costumes trazidos e passados por seus pais, lá da “terrinha”. Agora o que a mãe de Aninha aguarda é a chegada de Silvério, seu marido, caminhoneiro que rejeitara uma viagem para Goiânia _ “Pra mode passá o Natal com minha gente”.

Silvério e Idalina moram no Rio de Janeiro há mais de trinta anos. Eles e conheceram aqui, mais precisamente, no morro do Canta Galo, separador geográfico de Copacabana e Ipanema e também abrigo e moradia da mão de obra reparadora e indispensável nas residências luxuosas dos dois icônicos bairros, conhecidos, internacionalmente, por conta do talento de TOM E VINÍCIUS.

Silvério e Idalina eram jovens quando vieram “tentar a sorte” no sudeste. Ambos moraram em casa de parentes. Só que sem o murmúrio choroso, pelo incômodo do cumprimento de horários, um horror para os adolescentes.

Os dez anos vivendo no Terreirão ajudam Silvério manter o sotaque, os trejeitos e a cultura trazidos do seu estado e de sua cidade natal.

O bom comportamento de Aninha possibilitou a ela receber, além da confiança dos pais, vários mimos pleiteados pela massa das crianças e adolescentes de sua idade, independente da classe social.

Silvério, quando não está em viagem, exibe no bar de sua preferência, com orgulho, o tablet que presenteou à filha, mostrando, para os amigos, as fotos com a premiação de Ana Lúcia, por uma importante pesquisa escolar.

Por conta do interesse de Aninha com o estudo suas colegas de turma a elegeram líder da classe. É como diz um provérbio antigo: __ “Quem é líder aqui, será líder ali e acolá”. Suas amiguinhas do bairro que o digam. No final do ano passado elas foram instadas por Ana Lúcia a formarem um grupo de arrecadação de produtos alimentícios específicos para a formação de sestas básicas de Natal. As cestas foram montadas e distribuídas no ginásio da escola de Aninha. As professoras elegeram um grupo de alunos, com dois meninos e duas meninas para pesquisarem na comunidade do Terreirão, as famílias que mereciam receber as cestas. O trabalho dos adolescentes foi impecável. Essa operação seria repetida esse ano, com toda certeza, se pessoas estranhas não tivessem se “incomodado” com aquela ação humanitária, idealizada por crianças de uma escola pública, onde não estuda nenhum filho de figurões da administração municipal, estadual ou do poder legislativo. Por sinal, nenhum representante desses três poderes se manifestou a respeito do “incômodo” demonstrado por aquelas “pessoas estranhas”. Diante desse silêncio as crianças foram orientadas a colocar na conta da pandemia a solução de continuidade sofrida pela ação sócio-humanitária.

Idalina divide sua atenção entre assistir a chatice dos programas dominicais da TV e ir até à janela, dar uma olhada nas mesinhas da calçada do bar, em frente a seu prédio. Silvério costuma tomar uma cerveja antes de subir.

Numa dessas idas à janela, Idalina foi vista por Izabela, amiga e colega de escola de Aninha.

___ Oi, tia, deixa a Aninha descer pra brincar comigo lá na praça?

___ Se ela quiser ir, sim... Vou falar com ela.

Ana Lúcia desce e vai para a praça com Izabela. Aquilo que a mãe zelosa ouvira e entendera como brincar, nada mais era do que paquerar. Mas a caixinha do crédito de confiança da sua filha estava cheia. Sem deixar de se preocupar com a segurança e o futuro da menina moça, Idalina monitora, à distância, o que sabe que virá, mais cedo ou mais tarde.

A tarde avança, deixando pra trás uma porção de coisas por fazer. A casa de Idalina é uma dessas exceções pretendidas e invejadas por vizinhas menos aquinhoadas pela sorte.

O telefone celular de Idalina sinaliza uma mensagem via zap. É Silvério avisando que já guardou o caminhão está a caminho de casa. A alegria toma conta do semblante de Idalina. Desliga a TV e desce também. Faz uma semana que não dá um “cheiro” no marido. Sete dias sem xodó.

No momento da chegada de Silvério, Idalina, ao observar os passos cansados do marido vindo na sua direção, remeteu seu pensamento não ao Natal mas, sim, à Paixão de Cristo. Não foram poucas as vezes que ela teve esse tipo de delírio. Sempre que se lembra das dificuldades do passado, na companhia de Silvério, sua mente coloca no corpo do marido uma imagem divinal. Mas logo percebe o equívoco e se auto-corrige.

Silvério chega ao seu pedaço como um Papai Noel disfarçado. Sem gorro, sem barba e sem roupa vermelha, ele carrega uma grande sacola apoiada nas costas. Quando vê a esposa, a sua espera na portaria do seu prédio, abre o sorriso que o caracteriza. O forte e demorado abraço que trocam, para culminar num longo beijo, sinaliza que a noite virá com a felicidade que aquela família vem construindo, ao longo do tempo, desde que se formou.

___ Amor, põe essa sacola no chão.

___ No chão não, amor. Aqui tão os presentes dos meus amores. Vamos ali no bar da Maria. To morrendo de sede.

___ Vamos... Por sorte tem uma mesa vazia. Olha lá.

___ Onde ta a Aninha?

___ a Bela me pediu que eu deixasse Ana ir brincar com ela lá na praça... A menina precisa se distrair um pouquinho. Vou ligar pra ela vir, que você já chegou... Ela vai vir num galope.

___ Fique de olho, amor. Tem muita maldade nesse mundo. __Silvério expõe sua preocupação com segurança da filha.

Aninha e Bela chegam, ao lado da mesa, onde Silvério e Idalina brindavam com seus copos de cerveja, com a rapidez imaginada por quem conhece sua cria.

___ Meu pai!!!!! Meu pai!!!!!

___ Calma, filha. Cuidado pra não derrubar a mesa... Como você ta, menina?

___ Agora to bem... Eu tava com muita saudade.

___ Papai também. Só que a minha saudade é dobrada... Era saudade tua e a da tua mãe.

___ Olha a cara de alegria da mamãe, pai... Ela também sente muito a sua falta, assim como eu..

___ Pois bem, já que estamos juntos de novo, vamos aproveitar esse tempo pra comemorar... E você, Bela, o quê me diz?

___ To feliz por ver a felicidade das pessoas que eu gosto.

O sexto sentido de Idalina captou uma sombra ou uma mensagem cifrada naquela afirmação de Izabela. Contudo, fingiu passar despercebido. Silvério faz um afago nos longos cabelos da amiga de sua filha e agradece o carinho dela.

Ana Lúcia sugere ao pai que permita que as duas levem para o apartamento aquela sacola. Ele pensou um pouco, olhou para a esposa, não viu nenhum sinal de reprovação no semblante dela, voltou-se para a filha e vaticinou:

___ Claro que pode. Mas com muito cuidado. O conteúdo é frágil. Ponham sobre a mesa da sala e, só então retirem da sacola. É um presente pra você e outro pra sua mãe. Não há como ter dúvida de o quê é de quem.

As amigas atravessam, com muita dificuldade, a rua que corta a comunidade de ponta a ponta, termina na praia tranqüila do Recreio dos Bandeirantes, o xodó do Rio de Janeiro.

A noite nunca perde a corrida que trava com o dia. Não vai ser no dia de Natal que ela vai fraquejar. A rua principal do Terreirão comprova essa tese. Aquele vai e vem de banhistas que marcou a manhã e a tarde deixou de ser o protagonista. Perdeu a vez para o luzeiro de flúor, de led e incandescente. A predominância agora era o morador mostrar sua cara. Mostrar que em cada porta de entrada de apartamento, de quitinete ou de barraco da comunidade tem uma guirlanda carregada de esperança que o dia de amanhã será bem melhor que o de hoje.

Silvério e Idalina não são religiosos fervorosos, entretanto se consideram cristãos, por se esforçarem para cumprir os dez mandamentos da lei de Deus. Eles acham que a partir desse básico, se consegue alcançar o topo, o paraíso, o céu. A índole de Silvério foi forjada e amalgamada num caldeirão de bondade. Ele é daqueles que sofrem com o sofrer dos outros e se dispõe a qualquer ajuda, na medida do possível.

___ Amor, teve alguma notícia do irmão da Bela, essa semana?

___ Não. Tive com a Sílvia e ela me disse que continua tudo na estaca zero. Ainda está desaparecido... Sinto que ela perdeu as esperanças. Notei isso no seu modo de falar sobre o caso.

___ Pergunta se ela deixa a Bela passar o Natal lá em casa. Liga pra ela.

___ Se ela atender...

___ Ainda é sete e meia. O bazar do Leo fica aberto até as dez. Dá tempo pra comprar um presentinho pra ela e pra filha dela. Vê se ela também pode vir. Mesmo aqueles que têm motivos pra se entristecer, podem e devem comemorar o nascimento de JESUS, NOSSO REDENTOR.

___ Vou ligar.

___ Diga que nós estamos esperando por ela.

Sílvia não costuma estar em casa por essas horas, principalmente num dia como o de véspera de Natal. Mas esse ano veio para quebrar costumes, tabus e paradigmas. Idalina ligou para o telefone fixo e Sílvia atendeu.

___ Alô.

___ Sílvia?

___ Sim... Idalina?

___ Sim, amiga. To te ligando pra te convidar pra passar o Natal lá em casa. A Bela ta lá com a Ana... Eu to aqui no Bar da Maria... Vem pra cá. Daqui a gente sobe. Vem tomar uma cerveja comigo e com o Silvério. Ele pediu pra eu te ligar.

___ Eu ia dormir cedo, mas sendo assim, aceito o convite. To precisando mesmo. Já, já chego aí.

___ Valeu, amiga.

As agruras enfrentadas por Sílvia, desde a sua infância, criaram nela uma casca, cuja espessura, coloca seu corpo sob a proteção de uma armadura, própria para batalhas medievais, travadas por sua mente com muita coragem. Coragem que usou quando expulsou o marido de casa. Flagrado em adultério, o ex de Idalina não contou até três antes de aceitar a expulsão imposta pela esposa, para não ter que “desenrolar” com a turma do poder paralelo.

Sílvia criou seu primogênito sob o regime de guarda compartilhada até aos quatorze anos do filho desaparecido. Marco Aurélio, a partir dessa idade, se encantou pela liberdade que as ruas colocam na mente dos adolescentes e jovens. Foi morar com o pai para se livrar das cobranças por um comportamento social digno.

Se a coberta for fina, Deus dá a seu filho um frio brando. É o que acontece com Sílvia. O sofrimento que lhe produz Marco Aurélio diminui com as satisfações que a Bela lhe oferece. A balança de precisão com que Deus pesa os prós e os contras, antes de distribuir aos seres humanos, é aferida a todo instante. Não há possibilidade de erro. Toda reclamação, todo e qualquer murmúrio devem ser encarados como injustos. Mas Deus já se acostumou com a carga de injustiças que os humanos colocam sobre a cruz que Ele carrega.

Sílvia chega ao bar da Maria. Parece que toda população do Terreirão saiu pra rua. O calor contribui para que isso aconteça. Nem todos têm refrigeração adequada em suas casas para amenizar essa temperatura elevadíssima, nessa época do ano. Agregada a essa deficiência, existe a cultura de buscar prazeres nas ruas. Uma cultura carioca.

A indústria cervejeira não experimentou demanda reprimida, nem com o isolamento social decretado por alguns governantes. A maioria absoluta dos moradores de comunidades anda para as ordens vindas da prefeitura e do governo do estado. Ao contrário, seguem as sugestões anti ciências vindas de quem deveria seguir a lógica de impor para proteger a saúde de quem está sob sua responsabilidade.

Aninha liga para sua mãe e pergunta se pode abrir o pane tone de chocolate.

___ Claro que pode. O pane tone é teu. Nem eu nem teu pai gostamos disso.

___ A mãe da Bela ligou e disse que vai pra aí.

___ Ela já ta aqui.

___ a gente vai descer..

___ Vem sim... Aqui ta correndo uma brisa fresquinha.

A brisa a que Idalina se refere é o vento sudoeste que refresca o Recreio mas, também, vez por outra, provoca ressaca, derruba árvores e pavimenta o calçadão com areia da praia. Só que esta noite é diferente. É véspera do aniversário de JESUS. Dentro de algumas horas o Céu e a Terra estarão comemorando o nascimento do bebê mais festejado do mundo.

Enquanto Ana Lúcia falava com a mãe, ao telefone, se empenhando para abrir e fatiar o pane tone de chocolate, a Bela escrevia. Aninha, se roendo de curiosidade, olhava de soslaio para o papel, tentando ler o texto desenvolvido pela amiga. Era uma poesia. Izabela havia decorado aquela obra para declamar no Festival de Poesia realizado na Cidade das Artes, na Barra da Tijuca. Sua interpretação foi louvável. Com troféu nas mãos e elogios nos ouvidos, Izabela sentiu-se uma artista com o seu tato e a audição sendo afagados pelos presentes, além da satisfação de ver o autor da obra também ser premiado. Ficara tudo nos conformes.

Izabela mata a curiosidade de Aninha. Coloca o papel escrito na mão da amiga.

___ Que lindo, Bela!

___ Lindo e verdadeiro.

___ Nossa! Vamos ler lá no bar? Tua mãe já ta lá.

___ Vamos.

___ Você come pane tone de chocolate?

___ Claro. É uma delícia.

___ Então vamos levar esse só pra nós.

O bar da Maria é o lugar do Terreirão onde as gargalhadas competem de igual pra igual com o barulho dos fogos de artifícios. A despeito do atual estado emocional de Sílvia, Silvério consegue extrair dela boas gargalhadas. O volume e a estridência sonora do riso de Sílvia fazem com que Bela e Aninha ouçam, ao descerem a escadaria do prédio.

___ Escuta só o escândalo da minha mãe.

___ Esquenta não. É a alegria do Natal.

___ Ta certo.

Izabela e Ana Lúcia chegam ao redor da mesa onde Silvério, Idalina e Sílvia bebem cerveja e aguardam, ansiosos, a porção de peixes ao molho de camarões que Maria prepara, no capricho. Deixam sobre a mesa as fatias de pane tone que trouxeram e tomam para si a atenção de todos, declamando o poema PRESENTES DO PAPAI DO CÉU, de um autor quase anônimo.

DEIXA O CORPO TODO EM FESTA.

ENTRA EM TRANSE NA FLORESTA

DOS COMERCIAIS.

VINHOS, FRUTAS E PRESENTES.

PRA CURAR A DOR DA GENTE

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TEUS PROTESTOS DE APREÇO

MORRERÃO COMO ADEREÇOS

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FELIZ SERIA UM NATAL

MAIS ESPONTÂNEO.

SEM ESSA DE SE FABRICAR PAPAI NOEL.

A GENTE GANHARIA MAIS,

DURANTE O ANO,

PRESENTES DO PAPAI DO CÉU.

Os leitores devem estar se perguntando: porquê não há menção das medidas restritivas de segurança sanitária, como isolamento social e uso de máscara pelos personagens principais ou coadjuvantes? E as perguntas procedem. Segundo estatísticas recentes, sessenta por cento dos moradores de comunidades tendem a minimizar a gravidade da pandemia, muitos por seguirem as declarações infelizes do chefe do governo central. O Terreirão está incluído nisso. Infelizmente essa é uma realidade multi geracional, cuja reversão passa ao largo de ações meramente populistas, visando angariar votos no futuro.

As idades de Ana e de Bela conferem às duas o tão almejado senso crítico, ainda que venha ser mutável, na fase adulta. Hoje as duas seguem as ordens e a cultura dos pais, a despeito de aprenderem coisas diferentes na escola. Desde a tenra idade o ser humano tende a ir amalgamando no seu sub consciente os benefícios vindos da conveniência. E sempre que possível, se utiliza desse poder.

A movimentação em torno das mesas espalhadas na calçada em frente ao Bar da Maria aumenta gradativamente, à medida que a hora se aproxima da meia noite. O cenário, agora, é de um mega show ao ar livre. Os aplausos e a gritaria por conta da declamação do poema produzem o marejar nos olhos dos pais das duas inseparáveis amigas. Silvério aproveita ocasião para se levantar e ir ao banheiro secar o rosto banhado por suas vias lacrimais. Ao retornar, lembra-se do compromisso de encontrar o Bazar do Léo aberto. Prefere delegar essa tarefa a Ana e a Bela. Distribui as ações. Ana compra um presente para Bela e Bela compra um presente para a mãe. Pronto. De lá sobem ao apartamento e deixam os presentes ao pé da Árvore de Natal.

Todas as ações praticadas por aquelas famílias que se aprazem ali no Bar da Maria tê muito pouco a ver com o verdadeiro objetivo de se cultuar o nascimento de Jesus Cristo. Até a esperança que Sílvia alimentava de seu filho reaparecer vivo, foi eclipsada pelo teor alcoólico da cerveja ingerida.

Em meio à algazarra de gargalhadas e gritos, naquele ambiente alegre, surge, desviando das pessoas, Maria carregando uma bandeja com peixes ao molho de camarão. Descansa seus braços, arriando sobre a mesa 5, a carga que exala e espalha um odor não costumeiro por todo o ambiente, a despeito de ser aberto. Silvério, irreverente ao extremo, não perdeu tempo de fazer um comentário pilhérico para Maria.

___ Pensei que o peixe só ia vir no ano novo.

___ Da próxima vez tu vais comer peixe cru, seu linguarudo.

___ Tudo bem... O japonês come e gosta... Vou gostar também.

A contagem regressiva na mente daquelas pessoas, retumbantes de alegria, indica que faltam menos de duas horas para a chegada do Menino Rei. A algazarra por entre as mesas continua. A maioria absoluta dos que ali festejam, consome o que não os sacia e, ao contrário, os deixa em estado de êxtase, como fazem certas drogas... Não estão nem aí para o que significa aquele evento. A bebida e a comida afagam, de maneira tal o estado de espírito daquela gente, que passam a embaralhar o cérebro delas. Desviam seus pensamentos para a dimensão do lúdico, em detrimento do racional. Mas não há que lamentar os atos que se tornam cultura. É como cavalo encilhado que passa. Monta-se e vai.

As meninas desempenharam, a contento, suas tarefas. Retornam à mesa dos pais, que se encontram num estado etílico que os coloca num limite extremo, a escolher entre a galhofa e o aborrecimento.

Onze da noite. É hora de subir. __ Vaticina Silvério. As meninas mudaram os semblantes. Idalina e Sílvia também demonstraram descontentamento. Silvério entende o gestual feminino e recua de sua intenção.

___ Então, quando vocês quiserem... Tudo certo... Tô às ordens... Desce mais uma gelada, Maria. _ Silvério grita, abrindo os braços na direção do balcão. Ana e Bela escolheram sorvetes. Esses são artifícios apropriados para iludir o cérebro quanto ao calor. Parece até que aquele doce gelado acalma e massageia o coração das jovens, ante aquele alvoroço em volta das mesas, repletas de bebidas, comidas e guloseimas natalinas.

Súbito, Sílvia deixa escapar dois fios de lágrimas que mergulham do seu rosto para o papel que serve de toalha de mesa. Todos da mesa 5 percebem. Todos sabem o que produziu aquele choro contido. E Sílvia sabe que, além da fé fraquejada, agora só lhe restam os pingos lacrimais molhando e desenhando o rosto do seu filho no papel que cobre a mesa. Os olhos fixos, o corpo paralisado, Sílvia parecia outra pessoa. Izabela pensou em acordá-la daquele transe mas abortou a idéia, atendendo a um gestual de Idalina. Isso foi providencial. Logo Idalina voltou a si. Aquele sorriso dentifrício ressurgiu como num passe de mágica.

___ Vocês me perdoem a ausência por alguns instantes. Isso tem acontecido comigo, não raro. Mas acho que breve vai passar.

Quinze para meia noite. As pessoas já começam a abandonar suas cadeiras e se abraçar, desejando FELIZ NATAL aos conhecidos ou não. Os fogos de artifícios espocando, vindos de todo lugar, dominam o visual do CÉU.

Maria põe sua TV no último volume, num canal que espalhou seus repórteres por todos os bairros da cidade para mostrar o contraste da pandemia com a festa da chegada do MENINO JESUS.

O ritual de abraços, beijos e desejos de FELIZ NATAL ultrapassou a meia noite. Nem parecia que estavam em tempos de pandemia. Não havia uma só cabeça ali, naquele festejo, pensando em quando chegariam as vacinas para imunizar a população. Um visitante de primeira vez imaginaria que a tal imunidade de boiada já teria atingido aquela comunidade. Caso contrário, nem todos os respiradores ou leitos de UTI disponíveis, no país, dariam conta de atender, a contento, aos moradores do emblemático TERREIRÃO.

Roberto Candido Machado
Enviado por Roberto Candido Machado em 19/12/2020
Código do texto: T7139348
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