TU JÁ TENS DOROTEU, OUVIDO HISTÓRIAS...

"Tu já tens Doroteu, ouvido histórias/ que podem comover o triste pranto / os secos olhos dos cruéis Ulisses. / Agora, Doroteu, enxuga os olhos,"

Depois de dois dias a rodar por estradas incrivelmente ruins; depois de ver pelo para-brisa desfilar paisagens que se modificam; de pastos desertos de gado, de gente, de campos de sojas; verdes, simétricos e perfilados e às vezes cinzas de cruéis queimadas; a refletir sobre o sentido da vida e a mover nos lábios os versos de Critilo: " "Infeliz, Doroteu, de quem habita / conquistas do seu dono tão remotas! / Aqui o povo geme e os seus gemidos / não podem, Doroteu, chegar ao trono. "

Quando chega ao rincão longínquo da fronteira matogrossense, no cartório requer certidões de praxe e aguarda no balcão.

Volta a sua atenção para rua. Chão de terra vermelha, lama e poças d'água, lixo, folhas, sacos plásticos, acumulados aqui e acolá; pessoas em movimentos incertos com destinos certos e em passos desnorteados; cães vadios a perambular sarnentos; fezes animais a fervilhar de moscas; carros de sons em volume alto a anunciar comércio e produtos pobres de procedência duvidosa.

Todo esse caos é interrompido, a quase todo tempo, por imensas carretas, luzindo de novas, carregadas de grãos: milho e soja.

O visitante retorna o seu olhar ao cartório, às prateleiras atulhadas de papéis: processos, alvarás, leis, regimentos, regulamentos, escrituras, contratos, procurações, guias, livros e documentos de todos tipos e espécies. Exigências da burocracia, a "cabeça pensante", da sociedade.

Como se todo tempo não tivesse fluído neste rincão, essas caixas lembram o período colonial, a acondicionarem as ordenações do reino, que atravessavam léguas e léguas marítimas, para moldar a América aos padrões europeus.

É a persistente presença do Estado, sufocador e burocrático, se sobrepondo, estranho, alheio e distante da sociedade que, alguns metros, ali fora, se desenrola, se modifica e se consolida em litígios constantes.

Quem pensa, decide, regulamenta e finca esta papelada nestas caixas, está confortavelmente instalado a milhares de quilômetros, na segurança dos palácios de espelhos e das salas climatizadas, decoradas e servidas com salamaleques pelos bedéis dos cafezinhos.

Aqui o resultado salta aos olhos; a nação não é uma criação consciente das pessoas organizadas em sociedade para o bem de todos, mas uma imposição da administração para gerir um governo em benefício próprio, alheio às necessidades do povo que, lá fora, a poucos metros, luta pela sobrevivência.

O escrivão demora-se nas buscas. Se "o tempo é a tardança daquilo que se espera", aqui todo tempo é tardio.

"Aqui o povo geme e os seus gemidos / não podem, Doroteu, chegar ao trono. / E se chegam, sucede quase sempre / o mesmo que sucede nas tormentas, / Aonde o leve barco se soçobra / Aonde a grande nau resiste ao vento." /

Esta dialética, no entanto, o visitante afasta dos seus pensamentos com a chegada do homem dos olhos secos.

Sua figura se impunha por algo que trazia em si e no seu semblante. Era um homem baixo, magro, jovem, roupas velhas sujas da terra vermelha; mesma terra grudava nas partes visíveis do seu corpo, pelas rugas precoces no rosto, pelos braços, mãos e unhas, como se essa terra fosse parte integrante da sua existência física.

Era parecido com alguém que já vimos todos, em gravuras ou estátuas, moldadas por artistas de talento.

Trazia nos braços uma caixa de papelão. Uma dessas caixas comuns, utilizadas para acondicionarem latas de óleo, de soja, talvez, abundantes neste rincão ! Estava firmemente amarrada por barbante grosseiro.

Parou na porta, examinou o ambiente e perguntou se o local era o cartório. Entrou e pousou, cuidadoso, a caixa no balcão. Esperou com as mãos enlaçada sobre a caixa pelo atendimento. Aguardou muito tempo. Quando foi atendido, tirou do bolso um papel que trazia dobrado. Um formulário longo e branco.

O funcionário leu indiferente o relatório e explicou a ele que, como se tratava de "nati-morto", era necessário antes fazer a certidão de nascimento e depois, registrar a morte. Se compreendeu, não deu sinal. Esperou silencioso o Estado entrar em movimento.

____ Tem duas testemunhas?

____ Testemunhas de quê?

____ Pegue qualquer uma aqui na sala ou na calçada! Sugeriu o cartorário.

Era ilógico, ele não tinha testemunha sequer de sua existência, quanto mais do nascimento do filho morto.

O visitante se ofereceu e ajudou-o a encontrar mais alguém na rua.

Era a lei no lugar do fato; o formalismo escondendo a realidade.

Depois de intermináveis assinaturas, o serventuário perguntou se à triste figura podia pagar. Respondeu que não; o que despertou contrariedade no semblante do serventuário que lhe entregou a papelada e orientou:

____ Vai ter que levar estes documentos ao cemitério. Na prefeitura vão lhe arrumar um caixão.

O homem puxou para si a caixa de papelão que descansava no balcão, acariciou-a e demonstrou incompreensão.

O cartorário achou conveniente explicar melhor:

____ Vai precisar de um caixão para o sepultamento. Lá na prefeitura vão lhe arrumar um.

____ Já estive lá, não tem caixão algum. Deram-me esta caixa de papelão.

O homem tornou a acariciou a caixa.

____ Meu filho está aqui. Nesta caixa. É assim que vou enterrá-lo.

"Fiquemos, Doroteu, aqui, por ora, / Pois, de tanto escrever, a mão já cansa. / Em outra contarei o mais que resta / e vi no grão passeio e mais no curro. / Aonde as cavalhadas se fizeram, / aonde os maus capinhas maltrataram / em vez de touros, mansos bois e vacas."

O homem dos olhos secos dobrou os documentos e os colocou no bolso. Pegou a caixa por baixo, como quem carrega carga preciosa e delicada. Saiu e no meio fio da calçada aguardou a passagem de alguns caminhões carregados de cereais para alimentar o mundo.

Solitário desapareceu na direção do cemitério, para enterrar o nosso futuro.

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Os versos são trechos de "Cartas Chilenas", 5a. carta, conjunto de 13 escritas no ano de 1.789, durante a Inconfidência Mineira, por Critilo (Tomáz Antônio Gonzaga) e endereçadas a Doroteu (Cláudio Manoel da Costa).

A tese de que a sociedade brasileira está encaixotada há séculos pelo Estado é de Raymundo Faoro, no livro "Os donos do poder", volume I.

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Obrigado pela leitura.

Baguaçu, 06 de junho de 2015 + 5

Sajob