SINAL APAGADO

SINAL APAGADO

BETO MACHADO

A byke do Emílio brotou, silenciosa, da Estrada do Pontal como um relâmpago sem trovão. Portando-se como um risco iminente aos transeuntes da principal auto via da abastada zona oeste litorânea.

Emílio curtia o prazer que o deslizar suave e veloz da sua “magrela” lhe proporcionava. Isso o motivava ou até o impulsionava a cometer infrações de trânsito.

Quando se aproximava da estação do BRT Gilka Machado um apagão engoliu as cores dos sinais de trânsito. Caos estabelecido. Emílio subestima os riscos e atravessa o cruzamento como se uma luz verde o autorizasse a passar. As conseqüências foram mínimas: xingamentos que mais ofendiam sua mãe do que a ele próprio. A sorte do recalcitrante o livrou de um acidente grave. Mas o susto o colocou em estado de reflexão e o forçou a parar a cem metros do local onde cometera a infração. Mesmo se quisesse prosseguir com suas pedaladas não conseguiria. Na mesma velocidade vai caindo a ficha e vai chegando a bambeira nas pernas.

--- Essa foi por pouco. --- Balbuciou consigo mesmo.

A sua inconseqüência ainda lhe rendeu uma bela paquera.

Fora da faixa de segurança, maltratando o gramado do canteiro divisório das pistas da Av das Américas, duas jovens com ares de patricinhas atravessam, jogando na direção do ciclista, todos os charmes que traziam lá das bandas do Terreirão.

Emílio Foster, morador do Pontal, vinte e cinco anos, filho de um desembargador aposentado e uma renomada pedagoga em atividade, tinha plena consciência que não deveria corresponder àqueles flertes envenenados. Mas o instinto do bicho homem não lhe dá chance de selecionar suas presas. Caiu no alçapão é pássaro; caiu na rede é peixe. E Emílio é daqueles que soletram na cartilha do grande compositor Serginho Meriti: “Deixa a vida me levar”... “Vida, leva eu”.

A maioria dos seus amigos de escola já se formou. Uns brilham como profissionais liberais, outros são altos funcionários públicos e alguns são políticos. Emílio encabeça o grupo dos jovens “nem, nem”. Nem estudam nem trabalham. E como dizia meu pai, “cabeça vazia é oficina do diabo”, Emílio emprestou a sua para o “capiroto”. Em dias alternados sobe o Vidigal para pegar sua “carga” de “balinhas” que ele revende a uma clientela virtual. Teve alguns problemas com a justa, antes de completar dezoito anos, mas foram, facilmente, sanados pelo pai que ainda estava na ativa. Os policiais que “incomodaram” o “menino” sofreram o “corretivo” de praxe: funções administrativas. Trocaram o uso de pistolas e fuzis, para confrontos com bandidos, por vassouras e panos de chão, para higienizar o quartel, trabalhando sob os olhos do comandante. E, pelo visto, a ação disciplinar serviu de exemplo. O “menino” não foi mais “incomodado”, a despeito da aposentadoria do seu pai.

As “mina” do Terreirão não esperam o ataque dos “mano”. É o fim da era dos “machos Alfa”.

--- Quem sabe é nós, fia.

--- Vou atacar... Quem come com os zói é jacaré, véi.

A impulsividade de uma das meninas passava dos limites. Se aproximou tanto de Emílio, ao ponto que deu pra segurar o guidão da byke.

--- E aí, gato, cabe mais uma ou duas nesse buzão?

--- Nem uma nem duas... Qual é a de vocês?

--- A gente ta de rolé. Total de bobi.

--- Vocês moram aí? --- Emílio pergunta e aponta para a rua que leva ao Terreirão, com um ar de soberba.

--- Eu já morei... Hoje moro em São Conrado... Ela ainda mora mas também ta de saída. Só que eu não resisto a saudade dos amigos de mili anos, véi... Toda semana eu broto no pedaço.

--- Toda semana?... Tua parada é semanal?...

--- Quê parada, véi?

--- A tua caminhada de S. Conrado ao Terreirão.

--- Ah tá.

--- A minha parada é dia sim, dia não. Do Pontal ao Vidiga... A gente pode se ver numa quebrada dessas, por aí... trocar umas idéias... Fiquem com meu cartão. Se acharem que vale a pena ligar ou zapear, to ás ordens. Foi bom conhecer vocês. Já me refiz do susto.

--- Que susto?

--- Escapei de um acidente. Os sinais de trânsito apagaram... Eu atravessei, do jeito que vinha. Quase me atropelaram. Parei aqui porque as pernas estavam bambas.

--- Pô, gato, de byke tem que ta ligadão o tempo todo. Pegou a visão?

--- Peguei... Aguardo a ligação... E o nome de vcs?

--- Sou Raquel e ela é Marina.

--- Valeu. To indo.

Emílio saiu pedalando, em direção ao Vidigal, com a certeza que angariara mais duas clientes para sua loja virtual de “balinhas”. Mas se enganara redondamente. Elas eram suas concorrentes. Acabaram de vender uma carga de “preto” e de “branco” no Terreirão. A clientela delas é presencial e infinitamente maior que a de Emílio. Só que o produto vendido por Emílio é muito mais caro que os delas.

--- Marina, o que vc achou do “Mauricinho”?

--- Diferente... Parece esses caras seguros de si.

--- Pô, véi, já ta falando a língua do gatinho?... Que porra é essa de seguros de si?... Perguntei se vale a pena dar um pega.

--- Ah, claro que vale... Se tu não quiser, eu pego.

--- Sei lá... Não senti firmeza. Aquele papo do me perguntar se a minha parada é semanal me bolou até agora... Pode ligar, se quiser. Mas não abre a guarda não. Pode ser meganha ou “X9”. A Civil ta cheia desses “novinho”... Os pais deles tinham sonho de ver o filhinho ser “dotô” mas o estudo meia boca só dá pra isso mesmo: delegacia ou batalhão. E lamba os beiços. Ah... Ainda tem aqueles que viram nossos concorrentes.

--- Pode deixar comigo. Vou ligar só amanhã. Ele falou que a parada dele é dia sim, dia não. Então amanhã ele ta de “boresta”.

--- Pô, pega visão, Marina, liga pro Dudu do Vidigal. Dá as pintas do gato do Pontal que ele deve conhecer.

Um dos organizadores do baile funk do Vidigal, Dudu é amigão de Milão, como Emílio é conhecido no morro que conquistara Michel Jackson, o rei do pop norte americano, alguns anos antes de morrer.

Dudu dá o mata completo da charada que Marina precisava desvendar.

--- Play boy maneiro, mina. Consideradão na favela.

--- Pedra preta mesmo? Dá pra riscar uns pontos?

--- Pô! Mas não suja não porque o “homem” se amarra na dele. Quem suja com Milão, o “homem” manda buscar onde tiver. Milão é o “cabeça de chave” no comércio do “patrão”.

--- Eu e a Raquel conhecemos ele hoje, por acaso. Ele quase foi atropelado num sinal da Av. das Américas, em frente à nossa base. Enquanto ele se refazia do susto, a gente trocou umas idéias, rapidinho. Deixou o contato, mas eu precisava me socorrer com o amigo.

--- Valeu, amiga. Grato pela confiança.

---Eu que agradeço. Tchau.

O viva voz do aparelho de Marina abasteceu a mente de Raquel de idéias.

--- Amanhã cedo troca o chip desse aparelho. Põe aquele do “ling ling”. Se, por acaso, vc for ligar mesmo.

Não vejo vantagem nenhuma que vc possa tirar de um possível encontro com esse cara.

--- Porque?

--- Depois do que eu ouvi, o “patrão” tem ele como um filho. Tu sabe lá o que é isso?

--- É... Rabo de foguete. Deixa essa coisa pra lá. O que não falta por aí é gatinhos pra gente miar juntinhos.

Roberto Candido Machado
Enviado por Roberto Candido Machado em 01/05/2020
Código do texto: T6934394
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.