Bricabraque 2020 (foi no tempo do vírus)

Aqui em 2073 me lembrei de um caso ocorrido em 2020 no Brasil. Foi no tempo do vírus e da quarentena, um caso que meu pai contava anos depois; eu era muito criança na época desse vírus, não lembro de nada, li depois por curiosidade. Nesse tempo morto só sabia brincar de bonecas despedaçadas e comer chocolate lambuzando minha cara branca e debochada de criança. Meu pai dizia que eu era uma criança que gostava de fazer caretas engraçadas, dançar e rabiscar desenhos coloridos matisseanos. Meu pai não era muito de contar histórias pessoais dele, muito menos histórias do passado e dos outros, mas dizia que tinha um amigo que passou uma experiência muito inusitada nessa pandemia da década em que o país foi governado por pessoas que acreditavam em terra plana. Esse comentário (da terra plana) que meu pai falava era uma tremenda de uma mentira que ele jurava ser verdade! Meu pai morria de rir nessa citação. Achava que eu acreditava... Mas deixem esse detalhe para lá, o importante é o caso do amigo dele:

Quando essa pandemia se espalhou pelo mundo, as pessoas foram obrigadas a ficar em casa de quarentena. Dizia meu pai que o vírus veio da China e se espalhou por vários países, matando as pessoas aos borbotões. Nessa parte meu pai ficava sério. Foi triste. Pessoas próximas morreram; não foi um tempo fácil. Todo mundo confinado por meses nas casas, mesmo que muitas pessoas não seguiram muito bem as medidas do governo e ficaram zanzando nas calçadas. O resultado foi o previsível: morte na certa num apocalipse de zumbis teimosos. Mas o amigo do meu pai (esqueci o nome do danado), que ficou sem trabalho e era obrigado a ficar em casa olhando os seus filhos, dois meninos irrequietos e morenos, enquanto a mulher ia trabalhar. Imagina um homem que ficou estressado! Queria trabalhar, queria beber, queria comprar sua cocaína do fim de semana, queira ver o Flamengo nos botecos e era obrigado a ficar preso em casa. Mandava áudios desesperados pelo smartphone (um aparelho meio tosco que usavam naquele tempo) para conversar com os amigos – Não aguento mais ficar em casa preso! Estou o dia todo vigiando os meninos, eles não me dão sossego! A minha mulher não está deixando nem eu tomar umas cervejas em casa! A mulher tá paranoica, gente!, já chega em casa e logo toma banho no chuveirão do quintal, passa álcool nas mãos o tempo todo, não quer nem trepar mais pra não contaminar! Vou pirar, rapaziada! Vou ter um piripaque aqui! E ria de nervoso, um riso insano dos abstêmios. A rapaziada ria junto, mas estavam todos no mesmo barco (termo também usado na época, um pouco desgastado, naturalmente). Todo mundo no limite das próprias forças mentais. As ruas vazias, as lojas fechadas, o bares falindo, sistema de saúde entrando em colapso, uma profusão de mascarados por todo lado, o presidente mandando o povo voltar para o trabalho e para o abate do capital virulento. Um carnaval de Tânatos... Meu pai adorava esses termos gregos, por isso me chamo Dafne. Meu pai falava que os amigos dele não entendiam nada do que ele fazia alusão. Esse amigo dele, o surtado, dizia que meu pai era o poeta das esquinas falidas! É, filho da puta, mas foi você quem deu vexame no tempo do Corona!:

O amigo surtado deu uma escapada num motel com a mulher do vizinho, pegou o vírus, contaminou a família e não foi ao cinema. O cinema, interditado, reabriu depois, mas meu pai não lembrava bem quando. A pandemia foi longe.