ALIÁS, CHICO DO BANCO

ALIÁS, CHICO DO BANCO

Atendia pelo nome de Chico. “Aliás, Chico do banco.”

Do banco da pracinha. Na pracinha do centro da cidade. A qualquer hora do dia ou da noite, ali está ele naquele banco descorado, esquecido pelo poder público, e tomado de posse como morada. Sua única propriedade em vida, onde ele come sobras que lhe dão como se numa cozinha, senta-se e trança as pernas para fumar como se numa sala de estar, recolhe-se para dormitar à noite, à guisa de quarto.

Veste-se com um longo paletó preto desgrenhado, uma camiseta encardida em molambos, entremostra um terço – presente de uma beata – esquecido no pescoço. Uma velha calça amarrotada e impregnada de sujeira acumulada de longo tempo. Unhas grandes e amareladas, a pele escura e ressecada lembra mais a carapaça de um batráquio. Dentes quebrados ou ausentes, olhos caídos avermelhados, voz que lhe sai aos trancos quando consegue dirigir-se a alguém. Nos pés rachados, colônia de parasitas. Ele é o simulacro de tudo aquilo que nos causa repugnância num ser humano. Difícil acreditar que tenha sido feito à semelhança do Criador, à nossa.

De ordinário, engendra com pedaços de quengas de coco pequenas tartaruguinhas que perfila na amurada do canteiro, onde ficam acuadas, cabecinhas de isopor balançando ao vento, à venda. Quando acontece, está na fila para receber a sopa que os religiosos distribuem a cada semana. Ou na fila onde jovens aprendizes se dispõem a cortar o cabelo dos que por ali perambulam. Ou ainda para favorecer o banho mensal, a muito custo, aceito por Chico. Menos mal: o ser humano em suas crises humanitárias, em pantomimas sociais para “fazer o bem”.

Chico habita numa espécie de redoma invisível onde ninguém dali se aproxima. Fedido crônico, a merda, o mijo e o esperma que se lhes impregnam os trapos, o bafo de cachaça e o suor do corpo são miasmas que o protegem de todos a uma distância segura, até mesmo dos companheiros ocasionais, que o fazem de bode expiatório no salvaguardo de suas próprias agruras e fraquezas inconfessadas; os passantes e seus olhares de soslaio a rondar como censores silentes; dir-se-ia que até o olho de Deus não o tem focado em toda sua onipresença, algures _ quem sabe _ partilhando causas maiores e mais nobres que digam de seu poder.

Chico basta-se por si só. Nutre-se da carência, como objeto de conspiração da natureza. O banco é seu trono, reinando imperioso na qualidade de “excelência”, persona non grata a receber as mordomias a que faz jus na estratificação social desenhada pelo homem: moedas que lhe são atiradas, sobras de comida, goles de cachaça, tocos de cigarro, toda sorte de bugigangas sem serventia; epítetos e chacotas caem-lhe bem, à postura de criatura excluída. A vida estivera sempre a lhe balançar a cabeça, negaceando-lhe as necessidades, sendo ele próprio um sujeito desnecessário à mecânica fuliginosa da engrenagem social.

Os pombos fazem a festa a revoar em torno do banco, a disputar nacos que lhes são atirados, pela mão de Chico. Há sempre uma ossada para Marica, uma fêmea vira-lata que gravita por ali, e não raro dorme debaixo do banco, compartilhando a noite, não sem antes lhe relamber nos beiços intumescidos, sobejo de comida. Apesar de rejeitar a ideia de tomar banho, de quando em vez, ele lava as mãos numa poça de água estagnada nos paralelepípedos deslocados dos fundos da igreja. Fuçando a lixeira encontra sempre um copo descartável para aguar uma muda de pau-brasil que um transeunte plantara no centro do canteiro.

Ao entardecer de uma sexta-feira, quando eu passava rente ao banco, ele emitiu um certo grunhido, vindo em minha direção, estendendo a mão em garra. Detive-me, e, como de hábito, tentei catar algumas moedas nos bolsos, em vão. Seus olhos esgazeados, súplices, saliva espumante e cabeça reclinada, assemelhavam-no a um cão vadio, acovardado, mendigando clemência. Da carteira puxei, hesitante, a cédula de menor valor. Ele a arrancou de minha mão, qual felino, amassou-a e escondeu no cós da calça, esgazeando os olhos, numa expressão vazia _ um agradecimento, talvez _ quando um bater desencontrado de asas lhe chama à atenção. Os pombos se recolhem nos nichos ornamentais de um tombado prédio neoclássico para o pernoite.

Chico, trôpego, volta para o banco, deixando-se tombar, reclinando a cabeça para o alto, divisando o topo do edifício à frente da pracinha, daí para as laterais esquadrinhando as personagens que vagueiam em derredor: um grupo que partilha goles de cachaça, um velho raquítico de chapéu a varrer o chão, uma vendedora de artesanato recolhendo suas peças. Tateando, sob o banco, encontra uma garrafinha de cachaça e leva-a à boca, sorvendo o que restava. Depois, ele larga-a, vazia, entre os próprios pés, como se não tivesse forças para atirá-la longe. E não tem mesmo. Mãos espalmadas contra o banco, braços rígidos como duas estacas de escora, procura sustentar o corpo, derreando-se ao banco. Fujo dele, num relance último à pracinha, e retomo meu destino.

Dia seguinte, um sábado. Uma galhada de um ipê-roxo deitara-lhe flores por toda a noite, recamara-lhe todo o corpo, atapetara-lhe seu pedaço de chão. Os companheiros acharam-no deitado no banco, mãos presas às coxas, corpo em posição fetal; à falta de um círio para lhe iluminar o caminho d’ alma, um jovem tatuado, pés descalços tisnados, acendeu um cigarro de rubra brasa e cheiro acre, e baforou em sua direção, à guisa de incenso; do campanário da igreja as badaladas da manhã feita, o burburinho das vozes destoantes das beatas a vencer as contas do terço, e uma angelical voz soprano escapando pelo vitral quebrado da parede lateral.

“Ave Maria

Gratia plena

Dominus tecum

Et benedictus fructus

Ventris tuis Jesus

Sancta Maria, Mater dei

Ora pro nobis peccatoribus

Nunc et in hora mortis nostrae

Amem!

Os pombos ovacionavam em volteios e voos rasantes. Marica latia a espaçados intervalos _ “Auuuuuuh!... Aiiiiiiiihh!... Auauuuuuhhh!...” _, numa interpretação livre e pouco ortodoxa de um louvor declinado na linguagem dos arcanjos. Uma tartaruguinha solitária, na amurada do canteiro, cabeceava à brisa leve.

A pracinha já não o tem mais. O banco delata sua ausência, e se ainda restam os trastes e os miasmas, logo aqueles serão divididos pelos seus pares e esses levados pela “chuva do caju” que há algumas madrugadas vem caindo rápida e ruidosa. A vida fora arrancada em suas raízes mais profundas, extirpada, e não vai mais lhe causar dor.

Encantado está, para todo o sempre. Chico. Aliás, Chico do Banco.

Rui López

Rui López
Enviado por Rui López em 03/04/2020
Reeditado em 04/04/2020
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