O Pesadelo dos Goleiros

O centro comercial ia ficando para trás, o ônibus entrava numa complicada sequência de viadutos, rotatórias, túneis, que compunham um incompreensível labirinto, requerendo toda a perícia do motorista. O trânsito se deteve por alguns minutos, e Abrahão, passando a manga da blusa pela janela embaçada, pôde ver do lado de fora, uma enorme favela, com pequenos sobrados que se amontoavam, todos carecendo de revestimento e pintura, exibiam os tijolos, dando um aspecto de que o lugar fosse completamente vermelho. Mas o que lhe chamou à atenção foi o terreno baldio que tão bem conhecia, pois ali, há alguns anos, havia sido o campo do São Gonçalo, glorioso time da várzea, onde Abrahão fora o camisa sete.

O Atlético Clube São Gonçalo, como não podia ser diferente, tinha todo o seu uniforme na cor vermelha, e por este motivo era conhecido por Benfica do ABC. Seu emblema era um complicado desenho, composto por uma enorme roda dentada, no seu interior havia um círculo azul com exatas vinte estrelas, o nome do time, e a data de sua fundação, 1977.

Com o São Gonçalo, Abrahão havia vencido o torneio das vilas, e agora, tentava lembrar-se de cada um de seus companheiros naquela final, quando enfrentaram os rivais de sempre, o União Amigos da Vila Aurora.

O guarda-metas era o Coelho, possuía uma enorme agilidade embaixo dos três paus; lateral direito era o Branco; pela esquerda, Canhoto, que tinha o chute mais potente que o do Roberto Carlos; a dupla de zaga era o Negão e o Gaúcho; o meio-de-campo tinha o Ceará, Jamaica; o Etanol, que trabalhava de frentista em posto de gasolina; e completava com Riquelme, capitão e maestro do time, jogava com a mesma elegância de seu homônimo argentino. Ele, Abrahão, era o atacante que jogava pelas beiradas do campo e o nove era o Cardoso, especialista na bola aérea, tinha o estranho costume de jogar com um esparadrapo pegado na testa. O treinador era o professor Toninho.

A final fora um jogo difícil, duro, chovia bastante, e logo, os jogadores do União, que usavam fardamento todo branco, estavam cobertos por lama, e ficava difícil identificar quem eram os autênticos vermelhos do São Gonçalo e os apenas enlameados adversários. Gaúcho quebrava todas na defesa, e Riquelme passava o jogo olhando para cima, impotente via a bola que viajava de uma meta a outra. O primeiro tempo acabou com igualdade no placar.

No intervalo, o professor reuniu seus comandados na beirada do campo. Quando Toninho falava, as palavras saíam simples, em um estado bruto, os plurais nunca vinham com os Ss correspondentes, mas todos o escutavam com a mesma atenção do devoto que escuta o padre na missa de domingo. Toninho, quando moço, havia jogado no Flamengo, compartilhado vestiário com Junior, Zico e companhia. Entendia de futebol como poucos.

Chamou Abrahão para uma conversa ao pé de ouvido, mostrou-lhe a palma da mão, onde havia rabiscado com caneta bic algumas instruções incompreensíveis, e depois, dentro de sua oratória característica, explicou: cai pela esquerda, corta pra dentro, manda pro gol, a bola molhada, dizia ele, é o pesadelo dos goleiros.

No segundo tempo tudo continuava igual, as jogadas violentas se multiplicavam, e a cada lance ríspido, o juiz, em um ritual que seguiria pelo restante da partida, levava o apito a boca, e com ar grave, repreendia o jogador faltoso. Os minutos passavam rápidos, e como no costume da várzea o time visitante joga pelo empate, o São Gonçalo já era tomado pela pressa, que como todos sabem, é a maior inimiga da perfeição. Riquelme, em um de seus poucos lances de lucidez, lançou a bola para Canhoto, que sem deixá-la cair, cruzou, Cardoso cabeceou na trave, e pode-se escutar o suspiro angustiado dos poucos torcedores que se espalhavam ao redor do campo. Quando já estava por terminar a batalha, ocorreu um estranho fenômeno, que mais tarde, se tornaria uma lenda contada por todos que presenciaram aquela partida. O cronômetro do juiz simplesmente parou, os ponteiros congelados, estáticos, marcavam os quarenta e quatro do segundo tempo, e assim como o cronometro do árbitro, todos os ponteiros, de todos os relógios do mundo inteiro, também haviam parado. Os dois times permaneceram na lama, jogando, por mais muitas horas, possivelmente durante todo o dia, pois já começava a anoitecer quando Ceará roubou a bola no meio-de-campo, levantou a cabeça e lançou para a velocidade de Abrahão. O camisa sete dominou com elegância, encarou o lateral direito do União, que era forte como um touro, e coberto pela lama, os olhos muito claros pareciam se destacar como duas labaredas. Abrahão passou o pé por cima da bola, o adversário deu o bote, mostrando os cravos da chuteira. O atacante, então, deu um drible seco, como algum dia já fizera o grande Garrincha, e arrematou. A bola foi entrando mansinha, enquanto o goleiro do União se esticava todo, sem conseguir evitar o gol que sentenciava a derrota de seu time, pois logo após a bola cruzar a linha de cal, o cronômetro voltou a funcionar, e o juiz, exausto, decretou o encerramento da partida.

Depois do jogo, todos foram ao bar que ficava ao lado do campo, beberam com alegria, mas Abrahão não bebeu, nem jogou sinuca, ficou sentado em um banco, com as costas apoiadas na parede de azulejos brancos, encardidos. Naquela noite, assim como em muitas outras noites depois daquela, a imagem do gol se repetia em sua mente, cada vez mais belo, cada vez mais digno dos aplausos de seus companheiros. Abrahão havia atingido a glória muito jovem, com apenas dezessete anos, e tudo que viesse depois daquele momento, seria menor, ofuscado pela grandeza daquele chute cruzado no campo do São Gonçalo.

O semáforo ficou verde e o ônibus seguiu, apressadamente, seu caminho

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Esteban Donato Ardanuy
Enviado por Esteban Donato Ardanuy em 02/11/2019
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