MAÇARANDUBA

MAÇARANDUBA

BETO MACHADO

A trágica morte do tenente Varela, no Largo do Boiadeiro, produziu uma reviravolta e um trauma sócio-financeiro naquela família que já não era um modelo a ser seguido, do ponto de vista dos padrões éticos.

Varela preparava seu único filho, fruto de uma adoção complicadíssima, quase uma transação comercial, para ser seu braço direito na condução dos seus negócios extra profissionais.

Sua numerosa “corporação” de colaboradores tinha uma afinação assemelhada à de uma orquestra sinfônica. O “Maestro” conhecia os quereres e as dificuldades de cada componente. Logo, sabia como impor seus próprios quereres ao grupo.

Ao completar dezessete anos Álvaro, o Nego, ganha de seu pai um presente inusitado: O brevet do Grupo Varela. Significava que ele estava, oficialmente, admitido no Grupo de atividades extra profissionais do pai. Nego não havia atingido ainda a maioridade e já conhecia e participava das “tramóias” do pai. Era encarregado das cobranças e das anotações dos “pinga pratas”, doações compulsórias advindas de todas as atividades lucrativas realizadas nas regiões “seguradas” pelo Grupo Varela.

O tenente Varela era um militante “vibrador”. Repetia com freqüência, para motivar sua “tropa”, que --- “Para o componente do Grupo Varela todo bandido tem cheiro de vela”; e ainda: --- “Todo inimigo que quiser comer o que é nosso vai cair de cara na tigela”.

Às dez da manhã de toda quarta feira Varela se reunia com um quarto da turma, durante uma hora. Passava as demandas a serem resolvidas até a terça feira seguinte, acrescido de quaisquer fatos novos que surgissem nesse período.

O grupo era classificado e dividido em quatro companhias. Cada uma trabalhava numa escala de 24x72 horas. Porém, nas quartas feiras fazia-se uma conta de ajuste, entre as dez da manhã e às três da tarde, para que todos participassem, sem prejuízo da segurança.

Havia um burocrata encarregado de listar e organizar as demandas surgidas a serem repassadas para o “Maestro”, numa pasta, no inicio da noite de terça feira.

Nego, o esperto precoce do Varela carregava a incumbência de recolher essas pastas e levá-las ao pai. Não havia rotina nos encontros para a entrega dessas pastas. A cada dia era estabelecido um código de localização para o encontro entre os atores, ou seja: os responsáveis pelas tarefas. O código era informado via Zap. Mesmo com a quase perfeição da “Organização” nenhum elemento do grupo alcançou o nível suficiente para ler um possível anúncio subliminar da tragédia que estava pra vir.

Certa vez, Varela sonhara e contara para a esposa seu sonho, onde seu carro mergulhava de cima da ponte Rio – Niterói. Mas quem conduzia o veículo não era ele. Toda sua família estava no banco traseiro: ele, a mulher e o Álvaro, que ainda não havia recebido o codinome Nego.

Sem querer incutir nos personagens mentes supersticiosas acho que, pelo menos a mulher de Varela deveria usar sua intuição feminina para alertar o marido das probabilidades de algo sonhado tornar-se realizado.

Assim alardeava o astrólogo e comunicador Omar Cardoso, nos anos setenta: ---“O sonho é um aviso”.

O Largo do Boiadeiro mantinha sua rotina naquele trágico dia. Um vai e vem incessante de gente e de carros, de fazer inveja a um formigueiro ou uma correição de saúvas.

Varela chegara duas horas mais cedo que o combinado. Distribuiu seus “homens” nas esquinas, previamente, acertadas. Todos ligadíssimos nos acontecimentos. Aparentemente tudo sob controle. A transação comercial a ser efetuada seria com o cidadão que se fazia de elo entre os traficantes de armas do Paraguai e qualquer outro comprador brasileiro que tiver passado no teste a que são submetidos os pretendentes a comprar armas contrabandeadas daquele país... Varela sabia que pisava sobre um barril de pólvora. Ele e seus colaboradores quando andavam longe de sua jurisdição “alugavam” carros possantes, de outros municípios. Subterfúgio para despistar tanto os olheiros do narcotráfico quanto os policiais que patrulham a área.

O encontro fora marcado para o horário do almoço, propositalmente, por saberem da aglomeração humana aumentada, nesse período, todos os dias.

O Restaurante Sabor da Roça, além de servir uma boa comida e um bom vinho, segundo Varela, tem uma visão panorâmica: de sua ampla varanda, fechada com vidro fumê, pode-se monitorar chegadas e saídas de carros e de pedestres. Varela reservara quatro mesas, estrategicamente posicionadas. Mas... Estaria tudo sob controle?... O imponderável e o inimaginável sempre se intrometem nas ações humanas.

As obras de urbanização de comunidades, “tidas e havidas” como carentes estavam a todo vapor. As ruas e becos que deságuam no famoso Largo do Boiadeiro já estavam em fase de pavimentação. Esse tipo de obra, geralmente, tem o objetivo de transformar o aspecto das favelas em formato de bairros urbanos. “Mas, de quebra” trás a insatisfação dos que preferem o “status quo” dos becos e vielas, das valas negras e pinguelas, das lamas e da escuridão. Sempre haverá pessoas com as mentes tatuadas, e o desenho é uma favela, além do “modus habitandus” priorizando a sobrevivência e não o desenvolvimento. Mesmo que venham morar no vigésimo quinto andar de uma torre luxuosa na Barra da Tijuca suas cabeças estarão para as ações “faveladas”.

Vários homens vestindo uniformes alaranjados cumpriam as tarefas e as obrigações municipais com a satisfação de quem ainda não perdera seu emprego, por conta da crise econômica.

Nenhum daqueles cidadãos de corpos e mentes terceirizados tinha percepção de quantos recursos públicos, oriundos dos seus impostos estariam sendo indevidamente desviados, inflando o preço da obra que lhes sugava as energias, para bolsos de empresários inescrupulosos e políticos corruptos.

Parte da manhã: tarefa cumprida com a produtividade além do esperado pelo chefe da equipe. Com o intuito de motivar a turma o encarregado resolve antecipar a hora do almoço em dez minutos.

A pensão da Juliana monopoliza a preferência da “peãozada”, até porque ela mantém um crediário semanal para uns e quinzenal para outros. Tudo bem controlado por seu maridão, um troglodita que cobra a inadimplência com a rigorosidade dos agiotas e dos narcotraficantes. A concorrência tenta explicar o sucesso e a evolução da Pensão da Juliana pelo fato de ela não sofrer calote da clientela. O que ela refuta com veemência, colocando na discussão o seu tempero e o seu atendimento.

Zé do Rolo, alcunha recebida por ser o piloto do rolo compressor que acomoda o asfalto nas vias, mantendo o pavimento quase impermeável, aproveitou aqueles dez minutos de bônus para comprar um maço de rosas e dar para Lindinalva, sua paquera e conterrânea que trabalha na lojinha de consertos de celulares, ali pertinho.

O sotaque de Lindinalva encorajara Zé, há algumas semanas, a perguntar de onde era ela. Ouvir a menina dizer que era de Feira de Santana e estava no Rio de Janeiro desde o ano 2003, foi de uma felicidade imensurável. Ele também era de Feira. Tudo parecia convergir para um relacionamento iminente.

Lindinalva, rubra de acanhamento, recebe as flores ao mesmo tempo em que ouvem um forte estrondo. Um alvoroço; correria; gritaria; um caos.

TRAGÉDIA!!!! TRAGÉDIA!!!!

O rolo compressor, equipamento de trabalho do Zé havia se desengrenado e descido a ladeira que começa em frente ao Sabor da Roça. O veículo pesadíssimo derrubou a coluna central da varanda do estabelecimento, botando abaixo o telhado colonial. Uma peça de madeira maçaranduba caiu sobre corpo do tenente Varela, levando-o a óbito, quase imediatamente. Vários feridos foram levados para o Miguel Couto e outros para o Lourenço Jorge, inclusive o jovem Nego com muitos ferimentos leves; ninguém com risco de morte.

Zé do Rolo fez menção de ir ao local do acidente, mas Lindinalva o puxou para dentro da lojinha e o convenceu a sair pela parte de cima da comunidade e retirar aquele uniforme.

--- Se quiser morrer, vai lá... E vai ser rapidinho.

É evidente que Zé optou pela vida. Deu um “selinho” sua paquera, tomou emprestadas uma bermuda e uma camisa do técnico de celulares da lojinha e pirulitou-se em direção à Estrada da Gávea. Ao empreender a “fuga” Zé não consegue discernir se voltava pra casa ou se ia para a sede da empresa, pedir ajuda jurídica e, depois se apresentar em uma delegacia, como lhe havia orientado Lindinalva. O instinto o levou à sede da firma.

Nego, hoje já beirando os trinta anos, ainda se arrepia ao se lembrar daquele fatídico dia da morte de seu pai. Por não ter o escudo da farda aceitou bem a mudança de atividade

Pouco a pouco o Grupo Varela foi se diluindo. Menos por vontade de Nego, que se mostrou um perfeito sucedâneo do tenente Varela, idealizador, organizador e comandante da primeira milícia no Rio de Janeiro, e mais pelo recrudescimento do cerco aos grupos de extermínio, por parte do poder público e pela disputa acirrada entre grupos com o mesmo objetivo: segurança privada clandestina. Quase imperceptivelmente a organização acabou em definitivo.

Um fundo financeiro deixado por Varela propiciou que Nego adquirisse uma empresa de taxi, cuja atuação alavancou a evolução patrimonial que a família mantém sob “segredo de estado”, para não assanhar o Leão da Receita Federal. O “laranjal” do Nego é de fazer inveja aos políticos mais corruptos do país.

A morte do Tenente Varela mudou o rumo da vida de um jovem que cresceu ao lado de ações de exterminadores, de justiceiros comandados por um homem que filho via como um herói, um ídolo. Encarava seu pai como quem encara um espelho.

Roberto Candido Machado
Enviado por Roberto Candido Machado em 06/07/2019
Código do texto: T6689857
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