Ariel

— Por favor, fiquem quietos.

— Eu já entendi. Os dois querem saber qual foi o meu trabalho no sítio. É isso, não é?

— Então, contarei para vocês o que fiz aqui desde quando cheguei há muito tempo. Começarei por um dos acontecimentos mais importantes da minha vida. Está bem?

O dia em que me aposentei

Era o fim de setembro, um pouco antes das seis e meia da manhã, o azul do céu surgia cada vez mais alto, a aurora avançava na amplitude do Jaborandi anunciando a chegada de um novo dia do início da primavera.

Desde que nasci, há um pouco mais de trinta anos, acordo antes de o Sol surgir. Adoro assistir o amanhecer neste vale. É bom ouvir as pessoas se levantarem, o relincho dos cavalos do Juquinha. Gosto de ver a claridade tocar nos galhos mais altos da centenária figueira, um verdadeiro recanto de orquídeas e de pássaros, de sentir o cheiro do café sendo coado na casa rosada, onde o Pedro, meu amigo, e os nossos proprietários, o senhor Lúcio e a dona Luzia, moram. Eles são pessoas maravilhosas. Não conheço ninguém que gostaria de ter como dono que não fosse o casal “Lulu”. É assim que ouço as pessoas se referirem aos nossos patrões.

“Olá Ariel! Dormiu bem? Está com fome? O Pedro não trouxe o seu café. Certo? É isso mesmo, a partir de hoje eu cuidarei do seu “breakfast””. Disse o senhor Lúcio ao abrir a cancela rangente.

Realmente algo diferente estava acontecendo naquela manhã de segunda-feira. Considerando a claridade matutina, o canto dos pássaros e o movimento na lavoura de orgânicos, eu já deveria estar no reboque da caminhonete aguardando o Pedro para seguirmos rumo ao trabalho, como acontecia todos os dias.

“Ariel, aqui está sua ração matinal, uma boa porção de cevada e aveia”. Ofereceu-me o patrão que não parava de falar.

“Hoje é o meu primeiro dia de aposentado, não preciso mais sair para trabalhar. Ou melhor, o nosso, o meu e o seu, primeiro dia de aposentados, Ariel. Lembra que combinamos de parar juntos? Isso é muito bom”. Falou o senhor Lúcio enquanto escovava o meu pelo.

Naquele instante, compreendi o significado de ser aposentado, era não mais ter que sair para trabalhar, e também entendi a conversa que, nas últimas semanas, o patrão vinha mantendo com o meu amigo Pedro e que vez por outra falava olhando para mim e dizia: “O nosso velho Ariel será substituído pelo potro Joey”.

“Amigo, de hoje em diante, passaremos todas as manhãs juntos. Enquanto a Luzia cuida dos orgânicos com a ajuda do Gabriel, eu e você ficaremos passeando pelo pasto. Caminharemos sem pressa e sem destino. Vamos literalmente curtir a natureza, apreciaremos a beleza e o silêncio do Vale do Jaborandi. A ideia é ficarmos à toa até por volta do meio dia quando a minha esposa encerra o trabalho na lavoura e retorna pra casa. Que tal? Gostou, Ariel?” Ele me perguntou afastando-se para guardar a escova.

Ao olhar de relance para o patrão e constatar que ele estava colocando a escova em cima do armário de madeira, o mesmo que guardava o meu uniforme de trabalho. Falei comigo mesmo: “E os meus pacientes? Será que o jovem Joey está realmente pronto para substituir-me. O que será feito do meu jaleco branco? Não serve para o Joey, pois o Pedro mandou bordar no lado direito “Aripeuta”, como sou chamado por todos, exceto pelo casal Lulu que sempre preferiu o meu nome de certidão”.

Eu não tinha dúvida que qualquer cavalo, inclusive o potro que havia recentemente chegado ao sítio, poderia ser um terapeuta. Mas a questão era que eu ainda me sentia em plenas condições de continuar trabalhando, fazendo as visitas regulares aos hospitais e às casas de repouso, levando gestos de conforto aos pacientes acamados da ala pediatra.

“Acho que não vou gostar de ser aposentado”. Eu murmurava para mim mesmo.

“O que houve, Ariel? Que olhar triste é esse? Chegou a nossa vez de aproveitar a vida. Já sei! Você acha que não mais verá o Pedro. É isso, não é? Mas fique tranquilo, já acertamos tudo. Ele virá todas as tardes cuidar do seu aposento e do seu jantar. Está bem? Agora vamos caminhar e usufruir da nossa merecida inatividade”. O senhor Lúcio exclamou enquanto, com uma das mãos, mantinha a porteira aberta para eu passar.

Não me sentindo inativo, preferindo não ser aposentado e continuar a ser chamado de Aripeuta, mas sem opção, segui o proprietário e fomos em direção aos eucaliptos e às araucárias na parte mais alta do sítio.

O trinado constante dos pássaros não era capaz de mitigar o silêncio profundo que emanava do vale nem me convencer de que eu deveria esquecer o meu passado, os meus pacientes e os meus amigos, pois daquele dia em diante não mais sairia do Jaborandi.

Depois de umas duas horas de caminhada, quando o patrão, um pouco ofegante da subida, quebrou a quietude e disse: “Hora de descanso, Ariel”, o Sol já havia emergido acima da figueira, tornando mais intenso o azul do céu que tocava nas montanhas.

Do platô sombreado pelos galhos de uma gigantesca araucária, onde paramos, avistava-se, na outra margem do rio, uma pequena manada de cavalos do Juquinha, proprietário do sítio vizinho ao nosso.

O senhor Lúcio, depois que recuperou a respiração, foi catar pinhão no gramado embaixo da araucária.

Enquanto o patrão enchia a mochila com aquelas sementes, fiquei admirando ao longe a minha parentela no pasto. Apesar da distância, forçando a vista dava para identificar que duas éguas andavam a parte. Moviam-se lentamente. Estavam prenhas. Via-se o que o estado delas era respeitado pelos outros, e que a nenhum cavalo era permitido aproximar-se e incomodá-las.

Aquele comportamento, socialmente educado dos integrantes daquele grupo de “equus caballus”, deixou-me um tanto impressionado, pois eu sempre vivi afastado dos meus semelhantes e junto dos “homines sapiens” e achava que os meus parentes viviam num mundo sem respeito ao próximo. Mas pela cena que acabava de assistir, a minha inferência estava totalmente equivocada.

Um pouco separado da manada, não muito afastado, avistei um garanhão. Forçando ainda mais as vistas reparei que ele tinha um manto bem parecido com o meu. Era malhado com manchas brancas de diferentes formatos e que, segundo o Pedro uma vez me disse, tratava-se de uma pelagem do tipo tobiana.

Ali parado, contemplando o pasto distante, reparei que o garanhão não era um cavalo novo como os demais. Talvez da minha idade ou um pouco mais velho. Tinha um olhar triste. Parecia um cavalo cansado, daqueles que passam a vida toda transportando carga ou gente no lombo.

De repente veio-me à cabeça lembranças da minha família, ou melhor, do meu irmão, coisa que nunca havia acontecido antes. Estranho como os acontecimentos pretéritos da vida podiam caber num pensamento de segundos. Isso seria comum a todos os aposentados? Por não terem mais uma atividade, um compromisso, uma responsabilidade, seria normal eles ficarem remoendo o passado? Eu não tinha uma resposta, mas estava acreditando que havia um fundo de verdade naquela minha dedução.

Ainda olhando para o garanhão, que de tão apático parecia um pangaré, senti um aperto no coração. Seria aquele tobiano meu irmão? Muitas vezes ouvi o Pedro dizer que, apesar de bastante raro, a minha mãe, que morava no sítio vizinho, havia gerado potros gêmeos, ambos malhados, e que diferente do que acontece normalmente nessas situações, ou seja, os filhotes não sobreviverem, quem não resistiu foi a égua. Minha mãe faleceu poucos dias depois de nos ter parido.

De repente fui despertado da divagação:

“Ariel, vamos começar a caminhada de volta? Já estamos no nosso horário. Ao meio dia em ponto, a Luzia servirá o almoço e eu prometi que estaria lá.” Exclamou o senhor Lúcio enquanto fechava o zíper da mochila que estava carregada de pinhão.

“Você gostou da grama daqui de cima do vale? Parece-me bem mais apetitosa que o capim lá de baixo. Amanhã, amigo, voltaremos. Ou melhor, a partir de hoje todas as manhãs estaremos caminhando juntos sem nenhum compromisso”. Ele concluiu já ao meu lado.

Voltando do meu devaneio para o mundo real, respondi ao patrão com um olhar de quem concordava com tudo. E logo em seguida, comecei a andar em direção à casa rosada, pois eu sabia que o patrão quando começava a falar não parava mais.

Quando chegamos próximo à cancela de acesso aos meus aposentos, reparei que o senhor Juquinha já havia recolhido a manada e os cavalos estavam juntos à cerca apinhados ao redor do ancião, o malhado que parecia um pangaré.

Talvez por ter percebido o meu interesse no grupo, o senhor Lúcio deixou-me solto e disse que mais tarde o Pedro levar-me-ia de volta ao curral. Aproveitando aquela oportunidade, mas com cara de quem não quer nada, imediatamente caminhei em direção à cerca. Logo que cheguei, o garanhão sem titubear, segundos depois de cumprimentar-me, disse: “lembra-se de mim? Você é o Ariel, não é? Sou o Abel, seu irmão. Estou um tanto acabado, mas somos gêmeos”. E, sem deixar-me responder, começou a contar como havíamos sido separados com poucos meses de vida.

De toda a nossa conversa, que não levou mais do que uns quarenta minutos, gravei que eu, por ter nascido o mais franzino dos dois, havia sido vendido para o casal Lulu, que à época procurava um potro para participar de um projeto social em apoio aos pacientes hospitalizados. E ele, o Abel, permaneceu no sítio do senhor Juquinha, onde nós havíamos nascidos, para trabalhar em transporte de carga e de pessoal.

Abel contou-me também que, apesar da idade e do seu desgaste físico, ainda trabalhava. Verdade, que numa rotina menos estressante, pois de uns tempos para cá, em média transportava lenha e leite somente em três dias da semana, nos demais ficava no pasto orientando e educando os mais novos. Mas, mesmo assim, sonhava em se aposentar. Já estava na terceira idade e sentia-se bastante cansado.

Quando ele me perguntou se eu ainda participava dos projetos sociais, fiquei um pouco constrangido em responder que já não tinha mais obrigações de trabalho.

No caminho de volta da cerca, parei no pasto próximo ao curral, exatamente onde eu ficava quando regressava das minhas visitas “humanitárias”, ou melhor, “cavalitárias”, e ali parado senti-me duplamente infeliz: uma porque estava longe do Pedro que sempre esteve ao meu lado desde quando ainda potro eu precisei lutar para sobreviver. Outra, pelo motivo que não mais encontraria os meus amigos.

Olhando o mundo do Jaborandi a minha volta, senti uma tristeza. Senti saudades do Britinho, da Aninha, da Carlinha, do Diogo...

Então, sozinho, ouvindo os pássaros e curtindo a beleza das orquídeas nas árvores, deixei-me levar pelas lembranças das visitas que diariamente fazia aos meus amigos hospitalizados.

Os meus amigos

O meu trabalho, que nunca considerei um trabalho, era participar de projetos sociais, visitando e permanecendo, por alguns minutos, ao lado das crianças acometidas de doenças graves nos hospitais, onde eu levava um gesto de conforto e carinho àqueles pacientes. Eu era um cavalo terapeuta.

Quando estava sendo treinado para realizar as visitas, isso há muito tempo, o Pedro me disse uma coisa que jamais esqueci. Segundo ele, existia apenas uma única diferença entre os humanos, os seres considerados racionais, e os animais, os seres considerados irracionais. Falou que nós animais vivemos mais felizes porque não temos consciência da nossa finitude. Já as pessoas, por terem conhecimento de que são finitas, vivem angustiadas com medo da morte. E para amenizar esse sentimento, algumas buscam ajuda nas religiões. Outras se voltam à terapia. À época não entendi muito bem a importância daquela diferença, ou seja, o conceito de ferida da mortalidade. Mas com o transcorrer das minhas visitas, passei a compreender e a entender o sofrimento causado por não sermos eternos.

O meu primeiro contato com esse assunto foi quando, antes de completar dois anos de atividades junto às crianças, numa certa manhã, no corredor de acesso à enfermaria infantil do Hospital Serrano, ouvi uma senhora, na faixa dos trinta anos, dizer à amiga que estava aos prantos com as mãos no rosto: “Não consigo imaginar a dor que está sentido, querida. Perder um filho é uma coisa antinatural”. Naquele instante, nada entendi porque não conhecia o significado da palavra antinatural e tampouco o conceito figurativo de perder um filho.

Mas logo depois de chegar ao lado do leito do Britinho, não o encontrar e ouvi o Pedro exclamar: “Aripeuta, perdemos um paciente, perdemos um amiguinho. O Britinho morreu”. Senti o que nunca imaginei que poderia sentir: uma dor no peito, um sentimento estranho ao saber que não mais teria contato com o menino que tinha praticamente a minha idade, sete anos, que adorava passar as mãos no meu focinho e que agradecia a minha visita com um lindo sorriso no rosto. Britinho foi a primeira criança que conheci. Algum tempo depois, soube que aquele sentimento se chamava tristeza.

Anos se passaram, mas o menino do sorriso jamais saiu das minhas lembranças. Ele não viveu para tocar o sino...

**

E a Aninha?

Acho que não poderei cumprir o que a prometi.

A menina de cabelos castanhos claros, ligeiramente cacheados, que viveu por muito tempo, desde seu nascimento, dentro do hospital, ensinou-me a ver o mundo por um lado que jamais imaginei que pudesse existir, pois em nenhum momento, de todas as visitas que fiz, ela demonstrou qualquer comportamento adverso ao da alegria.

Desde pequena, sempre foi muito falante e com o raciocínio rápido conversava comigo como se eu fosse um coleguinha seu. Apontava às figuras em diversos recortes de revistas e perguntava-me: “Ari, você conhece este lugar? Conhece esta praia? Este parque?” A conversa sempre terminava com o mesmo final. Depois de explicar onde ficava o local indicado, Aninha concluía: “Quando eu tocar o sino a mamãe vai me levar lá”.

Todas as vezes que ouvíamos: “a mamãe vai me levar lá”. Eu olhava para o Pedro e ele olhava para mim. Surgia um silêncio profundo entre nós dois. Eu reparava lágrimas nos olhos dele. Não posso afirmar se os meus também lacrimejavam. Mas com certeza o brilho mudava.

Nós sabíamos que a menina era órfã. A mãe havia falecido antes de ela completar seis meses de vida e não havia em sua certidão o nome do pai. Mas Aninha, na época em que a conhecemos, então com quatro anos de idade, tinha colocado na cabeça que um dia a mãe viria do céu para levá-la para casa.

Com o passar dos anos, ela foi mudando as perguntas, os temas das conversas e deixou de se referir à mãe. Mas jamais deixou de estampar contentamento em tudo que fazia.

Na quinta-feira passada, quando estivemos juntos, Aninha estava bastante feliz, pois tinha sido informada pela equipe médica que em breve tocaria o sino e poderia ir morar num abrigo com jovens da sua faixa etária. Ela tinha completado quatorze anos, havia se transformado numa linda adolescente de cabelos cacheados e, ainda, me tratou como se seu fosse um colega de infância.

Quando nos despedimos, ela colocou no bolso do meu jaleco o endereço de sua nova casa e carinhosamente beijando o meu focinho, falou baixinho junto ao meu ouvido: “Ari, você vai me visitar, não vai?”.

Instintivamente, abaixando e levantando a cabeça, respondi que sim.

**

Será que a Carlinha já está com um novo namorado?

Lembro-me dos momentos difíceis que ela passou.

Quando a visitamos pela primeira vez, ela encontrava-se sofrendo com enjoo causado pela quimioterapia. Estava no sétimo ciclo do tratamento e continuava com náuseas.

Com o objetivo de aliviar o efeito dos medicamentos quimioterápicos, nós levávamos para Carlinha alguns alimentos que, segundo os médicos do hospital, diminuíam a naupatia. Então, antes de chegarmos à enfermaria, Pedro pendurava no meu pescoço uma cestinha com três bananas e quatro picolés de uva.

Na hora do lanche, vivíamos momentos inesquecíveis. Carlinha sempre segurava os dois lanches, o meu e o dela. E também chupava dois picolés. Tudo era motivo de brincadeira. Ela adorava colocar a banana na minha boca em pedaços bem pequenos. Dizia que assim eu não me engasgaria.

A primeira vez que a vi triste foi quando, numa tarde de muito frio, eu e o Pedro a encontramos com um boné amarelo na cabeça. Assim que nos viu chegando à porta da enfermaria, diferente dos outros dias, em vez de sentar-se na cama, ela deitou e se cobriu dos pés à cabeça.

Completamente coberta com o edredom, ela disse: “Por favor, vão embora. Não quero ver ninguém”.

O Pedro já tinha sido avisado pela enfermeira de plantão que ela estava muito abalada com a queda dos cabelos. O processo estava um tanto atípico, pois na fase inicial nenhum fio havia caído. Entretanto, naquela semana, em apenas três dias, ela tinha ficado praticamente careca.

Só depois de muita insistência, quase cinco minutos, conseguimos conversar com ela. Os olhos estavam vermelhos de tanto chorar. Mas não era para menos: uma menina de quinze anos que se encontrava com a vida parada desde que tinha sido diagnosticada com leucemia. Internada há quase doze meses. Sentindo-se desesperançosa com as coisas boas da vida, inclusive com o relacionamento afetivo, pois havia sido abandonada pelo namoradinho assim que foi hospitalizada.

Mas a tristeza e a desilusão com a vida desapareceram assim que a quimioterapia terminou.

Quando a fomos visitar, na semana passada, ela estava nos esperando no pátio do hospital, junto à parede principal, ao lado do sino ali fixado para os pacientes tocarem ao vencerem o câncer. Com um lenço azul e branco, que eu e o Pedro havíamos lhe dado de presente, elegantemente amarrado na cabeça, Carlinha disse assim que nos viu chegando:

“Aripeuta, hoje é o dia mais feliz da minha vida. Estava esperando você e o seu amigo chegarem para juntos tocarmos o sino. Voltarei para casa no final da tarde. Estou curada. Vou seguir a vida, uma vida normal. Ir à escola, ao cinema, conversar com meus colegas. E até arranjar um novo namorado. Sentirei saudades de vocês”.

Comunicando-me pelo olhar, com um brilho de felicidade, respondi: “Nós também sentiremos a sua falta. Mas é melhor assim”.

**

E o meu amigo do estacionamento?

Espero que o Diogo, o montanhista, tenha realmente superado a doença e voltado às escaladas.

Ainda me lembro da confusão na porta de entrada do Hospital Serrano no dia em que nos conhecemos.

Era uma quinta-feira chuvosa, na realidade chovia há quase uma semana. Como de costume, chegamos às oito e quarenta em frente ao estacionamento. Pedro parou a caminhonete e, diferente das outras vezes, não desceu. Ele virou a cabeça para trás e, olhando-me através da janelinha do vidro traseiro, gritou: “Aripeuta, está um dilúvio. Vou estacionar a pick-up e o reboque o mais próximo possível da porta de entrada do Serrano, está bem?”.

Permaneci quieto, estático e silencioso. Esta minha atitude, já conhecida do Pedro, significava: “sim, tudo bem”.

E assim ele procedeu. Estacionou o nosso comboio ao lado da entrada principal do hospital.

No momento exato em que, com ajuda do meu amigo, eu estava descendo do reboque, um táxi que vinha em alta velocidade parou ao nosso lado e o motorista começou a gritar com Pedro, esbravejando que ali não era local de desembarque de animais. Era o estacionamento exclusivo para pessoas necessitando de atendimento emergencial.

Claro que o taxista estava certo na sua alegação, mas não precisava ser tão deseducado e nos tratar com tanta arrogância, pois o Pedro nada havia respondido, simplesmente fez sinal para que eu me afastasse um pouco do hall de entrada e correu para manobrar a pick-up de modo a deixar o local livre.

O motorista não parava de nos agredir verbalmente, apesar da rapidez com que o Pedro agiu.

As ofensas só terminaram quando o passageiro do próprio táxi, um rapaz de seus trinta e poucos anos, saiu do carro ajudado pela namorada e interferiu, também, aos gritos mandando o motorista calar a boca, uma vez que a caminhonete tinha sido retirada sem perda de tempo.

Mesmo um pouco afastado e olhando entre as pessoas que se aglomeraram, enquanto ouvia o bate-boca, reparei que o rapaz estava ofegante. Parecia-me que respirava com bastante dificuldade, como se o ar em torno dele tivesse se exalado.

Quando por fim terminou a confusão e os espectadores se afastaram, Pedro, me puxando pelo cabresto, se aproximou do rapaz, o nosso defensor, que já se encontrava na sala de pronto atendimento aguardando a namorada preencher a ficha cadastral, nos apresentou e o agradeceu pela compreensão e a intervenção.

Naquele primeiro encontro, fiquei sabendo que o Diogo estava acometido por um sério problema respiratório, apresentando baixa oxigenação no sangue. E também que ele era um apaixonado por montanhas e animais.

Muitos foram os papos naquele hospital, onde ele passou a comparecer uma vez por semana para tratamento.

Encontrávamo-nos no estacionamento do Serrano. Lá, durante os quinze minutos que ele conversava com o Pedro, geralmente, sobre animais e montanhas, eu fazia o meu trabalho. Ficava ao lado do Diogo ouvindo as histórias e vez por outra, quando ele tocava carinhosamente com uma das mãos no meu focinho, eu mudava o brilho nos olhos para demonstrar o meu entendimento no assunto.

O Diogo repetia constantemente que a equoterapia o tranquilizava bastante e que aquele tratamento o deixava melhor que as sessões semanais de fisioterapia cardiopulmonar, as quais ele era submetido com profissionais nem sempre simpáticos.

Até hoje, não consegui entender o sentido de uma palavra que o que Diogo repetia algumas vezes no final das conversas com o Pedro. Ele dizia algo mais ou menos assim: “Amigo, tem horas que não acredito ter sido diagnosticado com esta porra de “depoc””.

Talvez fosse uma sigla “DPOC”. Uma coisa é certa, pelo modo que eles conversavam, tratava-se de um sério problema pulmonar e o Diogo, por nunca ter colocado um cigarro na boca e ter trabalhado desde jovem como guia profissional de altas montanhas, não se convencia de ser portador de tal doença.

Na última vez que nos encontramos, ele estava animado. Beijou o meu focinho diversas vezes e virando-se para o Pedro, disse: “Enfim, depois de um ano e meio de tratamento, venci a doença. Na realidade, não venci. Não há como ficar curado de um mal crônico. Mas agora só preciso voltar ao hospital de seis em seis meses para acompanhamento. Então, amigo, em breve retornarei às montanhas”.

Eu nunca tive dúvida que ele superaria as dificuldades e voltaria ao mundo que amava, simplesmente porque Diogo sempre esteve na montanha e a montanha sempre esteve no Diogo.

E com o rosto colado ao meu, ele agradeceu-me e falou que continuaria vindo ao estacionamento para me ver. Talvez não pudesse comparecer semanalmente, mas sempre que seu trabalho permitisse, viria.

**

Pouco antes do anoitecer, já no curral, mesmo não querendo aceitar, comecei a entender que não mais sairia do Vale do Jaborandi. Não mais visitaria as crianças do projeto social. E foi a partir daquele momento, sozinho na semiescuridão, que assumi que estava aposentado.

Devido ao meu contato com as pessoas e pacientes, diferente dos outros cavalos, eu tinha desenvolvido a capacidade de manifestar sentimentos e emoções. Mas não tinha ainda o que os humanos consideravam uma dádiva dos Deuses, o “livre-arbítrio”. Como animal eu tinha que agir por instintos, não cabendo a mim, um ser irracional, a decisão sobre o que fazer da vida. Eu tinha que aceitar a aposentadoria, pois havia sido criado num sítio para atender as vontades dos patrões.

A noite já corria alta e fazia um frio gostoso quando tentei pegar no sono depois de um dia repleto de autorreflexões sobre aqueles acontecimentos.

O dia seguinte

O silêncio do vale era cortado apenas pelo gotejar das películas de água acumuladas nas folhas da figueira. Sabendo que não iria mais ver os meus amigos, senti uma sensação de que o mundo inteiro havia mudado diante dos meus olhos. Não via mais encanto em nada.

O Sol estava nascendo quando avistei o Pedro sentado no tronco de cedro que há tempo havia sido deixado ao lado da cancela rangente. Ele estava bebendo um copo de leite, o que fazia sempre antes de iniciarmos os preparativos para um dia de trabalho. Continuei em silêncio observando o meu amigo e murmurando comigo mesmo: “Será que o Pedro esqueceu que estou aposentado? O potro Joey, o meu substituto, mora no curral do outro lado da casa rosada. O que será que ele veio fazer aqui?”.

Sem que eu esperasse, ele pôs-se de pé e caminhou na minha direção, enxugando um bigode de leite com as costas da mão. A voz soou leve e carinhosamente melodiosa, quando ele disse: “Amigo Aripeuta, apronte-se. Hoje voltaremos ao trabalho. Você não é mais um aposentado”.

Ao ouvir aquilo, imaginei que ainda estava dormindo e sonhando. Bati com as patas no chão, uma de cada vez, para ter certeza que estava acordado.

Trinta segundos se passaram, então balancei a cabeça para esquerda e para direita enquanto relinchava. Com essa atitude eu respondia ao Pedro que não havia entendido.

Já ao meu lado, escovando a minha crina, ele repetiu pausadamente: “Aripeuta, hoje voltaremos ao trabalho. Você não é mais um cavalo aposentado”.

E continuou falando: “Ontem, após o jantar na casa rosada, o casal Lulu conversou comigo a seu respeito. Na realidade, quem falou foi o senhor Lúcio, a dona Luzia apenas ouvia e movimentava a cabeça indicando que concordava com o marido. Ele disse que naquela tarde, ontem, tinha permanecido um bom tempo lhe observando pela janela da sala e havia percebido tristeza no seu olhar. O que o levou a concluir que o seu desânimo era decorrente da nova rotina de aposentado. Então, ele achou melhor você continuar com o trabalho terapêutico e orientou-me a dar prosseguimento no projeto social com a sua participação. E deixou claro que você poderá manter-se na equoterapia até o dia em que se manifestar nos demonstrando infelicidade por ter que trabalhar como fez no seu primeiro dia de aposentado. Entendeu, amigo?”

Permaneci quieto, estático e silencioso. E o Pedro concluiu: “Sabia que você entenderia, Aripeuta”.

Sim, pensei comigo mesmo: “Muita bondade do casal Lulu. Agora eu tinha o “livre-arbítrio” para estabelecer o caminho a ser seguido na vida. Caberia a mim a decisão de até quando continuar levando gestos de conforto e amizade aos meus amiguinhos adoentados”.

E feliz da vida continuei, junto com o Pedro, visitando os hospitais, orfanatos e outros locais assistenciais até o mês passado quando fui acometido pela “epistaxe”, uma doença que causa sangramento pelo nariz. Nada muito grave, mas não pude continuar trabalhando. A limitação não veio por eu já ter completado trinta anos de idade. Veio por um problema de saúde.

— Pronto! Contei um pouquinho do que fiz na vida. E a semelhança do que acontece com muitos de nós, acabei narrando a minha história mais para mim mesmo do que para vocês.

— Agora, aproveitem o resto do dia para pastarem e conhecerem o vale. O Pedro só fechará a cancela rangente ao final da tarde. Na volta, continuaremos a conversa, pois ainda não sei quase nada sobre vocês, exceto que o Pé de Pano já completou um ano de idade e que a Kiara, apesar do porte adulto, tem apenas oito meses de vida. E que ambos, até a semana passada, moravam aqui ao lado no sítio do Juquinha.

— Ariel?

— Diga, Pé de Pano. O que quer saber agora? Falei por quase uma hora e você nem a Kiara nada perguntaram.

— Quem quer saber não sou eu, é a Kiara. Ela está me perguntando...

— Então, deixe-a falar. O que você quer saber Kiara?

— Senhor Ariel, por que o seu amigo Britinho não tocou o sino?

Sérgio Coutinho
Enviado por Sérgio Coutinho em 18/06/2019
Reeditado em 29/06/2019
Código do texto: T6676283
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