SOU FRUTO DE UM ESTUPRO...

SOU FRUTO DE UM ESTUPRO...

Ou, o valor do perdão

Samara foi estuprada por um homem enfurecido, enlouquecido, - foi obrigada a levar a gravidez adiante, por convicção religiosa de sua família. Ela tinha então 24 anos. Ao dar a luz, entregou a criança a um orfanato, para adoção. Era um menino saudável, forte, e muito bonito, que aos poucos foi se revelando uma criança de inteligência impar, - uma mente brilhante, uma criança muito bem dotada e evoluída, e com um Qi, acima do normal.

Naquele orfanato ele ficou por muito tempo, mas ganhou o carinho e o afeto da diretora, que o acolheu, quase que como a um filho biológico. Ele foi registrado com o nome de Marcio. Através de convênio com boas escolas e até uma faculdade, ali ele estudou até o segundo grau, depois conseguiu uma bolsa para fazer faculdade de medicina, se formou médico. Um dia salvou a vida de uma senhora... Essa senhora era sua mãe.

Aquele estuprador era um homem asqueroso. Muito feio, - ele era rejeitado pela própria família, e pelas mulheres. Ele foi preso, pegou sentencia de 31 anos de prisão. Envolveu-se em uma briga e tomou vários tiros, e teve que amputar uma perna. Houve uma rebelião de presos, naquela confusão a guarda penitenciária atirou em um homem por confundi-lo com outro preso. Era Jacó, que foi alvejado por cinco tiros. Baleado, ele caiu e fraturou uma perna, vindo a ter que a amputar.

Lá fora, a vida transcorria normalmente. Sua família se compadeceu da sua dor, tomou algumas precauções para ajudá-lo e fazer com que ele não se sentisse abandonado. Uma dessas providências foi abrir uma caderneta de poupança em um banco, em nome dele, e ir fazendo um pé-de-meia para ele aqui fora quando saísse da prisão. Para isso, reuniram-se seus irmãos e seus sobrinhos. Depositavam algumas economias todos os meses, sem falta. Para ampará-lo ao sair de lá.

Samara, com o tempo procurou levar uma vida normal. Superar aquele trauma e seguir sua vida em frente. Estudou até o segundo grau. Casou-se com um comerciante do ramo de móveis. Um dia; em um acidente de automóvel ele (seu esposo) veio a falecer. Não suportou os ferimentos. Ela escapou com vida, mas foi hospitalizada entre a vida e a morte. Ficou em coma durante 16 dias. O médico a tratou com o carinho e a dedicação de um filho amoroso.

... O Tempo foi passando...

Samara guardava muita mágoa, e revolta daquele homem que a molestou, e também dos pais dela, por eles a ter obrigado a seguir adiante com a gravidez, mesmo contrariando sua vontade e decisão. Eles eram de família de tradição religiosa convictos. Assim, não aceitavam o aborto sob nenhuma hipótese. Mesmo assim, ela chegou a tomar remédios abortivos e tentou por várias vezes provocar o mesmo. Naquele momento, estando sob forte emoção e desorientação psicológica, suas atitudes e atos condiziam com o que ela estava passando.

Os dois: o médico e sua paciente, por força daquela convivência diária e quase que forçada, desenvolveram uma empatia muito forte. Ela teve várias fraturas, perdeu muito sangue, ficou muito debilitada. Mas... à medida que o tempo se passava e sua saúde se restabelecia, ela foi se acostumando aos cuidados e zelo daquele médico, - tão atencioso e dedicado. No coração dela ia se dissipando aquele ódio e mágoas, e foi dando lugar a uma ternura, e carinho que ela não sabia explicar. Não sabia de onde vinha, mas a causa disso ela atribuía ao seu médico.

Ela via o Dr Márcio, como aquele filho que ela “não teve” - até porque ela não pode mais ter filhos, pois, ela sofreu várias lesões no útero e ficou incapacitada para engravidar. Isso a fazia sofrer muito, e sentir muita tristeza, dor, revolta, e sentimento de perda. Sentia um vazio, uma falta de ter preenchido sua vida com o amor de alguma criança... Uma saudade de alguém. - Então... - vez em quando já lhe vinha na mente, e no coração aquele pensamento de: como e onde estaria aquela criança, que tivera em tão estúpida situação.

Como seria aquele menino? Como deveria estar? Pelas suas contas ele deveria estar com 26 anos. Seria ele alto, baixo, forte, Bonito? Como e onde estaria ele? Ela começou a ter uma ternura muito grande por aquele médico que a tratava com tanta dedicação, parecia até que já o conhecia e o amava há muito tempo. Em sua mente sempre lhe vinha aquele carinho por ele, aquela ternura que já a começava invadir, e de vez em quando se pegava pensando nele.

Será que, era apenas cuidados médicos com sua paciente, ou se era algo mais, - como um amor filial? Mas, não conseguia mais se conter, e continuava aquele carinho maternal por ele. A ponto de, à noite quando orava para dormir, sempre lhe vinha na mente com muita ternura, a fisionomia e os cuidados profissionais do médico para com ela.

Então, vinha na sua imaginação a pergunta de, como seria seu filho se estivesse vivo? - Será que ele se parecia ao menos um pouco com aquele médico? Mas... aí lhe surgia a lembrança horrível daquele homem asqueroso que a violentou. Logo voltava à realidade, que aquele rapaz tão carinhoso, bonito que cuidava dela com tanto zelo, não poderia ser filho biológico daquele homem...

... Ela e o médico ficaram muito amigos, passaram então a se conhecer melhor. Foi quando ele, falando-lhe sobre sua vida particular, - ela começou a perceber algumas semelhanças entre a história dele, e os acontecimentos da vida dela. Samara passou a lhe relatar toda a sua história, desde o começo de tudo. Então; para ela, uma evidência já se fazia notar com muita clareza, era a idade dele e a idade que ela imaginava ou sabia que aquele filho dela teria hoje.

Ele... Márcio, por sua vez, era um pouco solitário, pois não tinha pai nem ao menos mãe. Teria sido cuidado na infância por uma senhora bondosa, em um orfanato. Com ele, coincidentemente ocorria algo semelhante ao que ocorria a ela. O que Samara sentia em relação a ele. Vez em quando Márcio se pegava a pensar, com ternura naquela paciente, com carinho, como se ela fosse sua mãe. Ele não sabia distinguir realmente o que era zelo profissional, ou amor filial.

Ao conhecer mais a fundo a história de Samara, e ao constatar vários pontos em comum com a sua, Márcio ficou ainda mais ansioso, para descobrir mais, - não resistiu à tentação de pedir-lhe permissão para procurar saber outros detalhes. Pediu que ela o autorizasse a fazer buscas. E buscar outras informações sobre a história, - que também lhe dizia muito em particular. Eram muito intrigantes todos aqueles fatos. A conclusão de ambos era a mesma, tudo levava a crer que eram mãe e filho. Manifestou desejo de conhecer a mãe dela, pois soube que ela sabia muito do paradeiro do seu filho que foi dado àquele orfanato.

A mãe de Samara sempre soube do paradeiro da criança, mas (ela) Samara pedia para sua mãe não a informar sobre tal. Samara, então concordou com as buscas dele, - e foi através da mãe dela que Márcio começou a investigar e também conseguir várias informações, a partir do orfanato, - sobre todo o processo de adoção do menino. Até então ele não sabia que se tratava dele próprio, os motivos, as causas e como tudo se passou. Sua descoberta foi fantástica. Estava se desfazendo ali naquele momento o seu grande enigma. Ele realmente seria o filho que Samara doou ao orfanato.

Finalmente veio a grande revelação, mas que não seria tanta surpresa para Samara e Márcio, eles eram realmente mãe e filho. Mas seu coração de mãe já suspeitava, e quase se tornara evidente na convivência entre ambos, médico e paciente, nesses quase dois meses no hospital. Abraçaram-se e choraram, muito. Samara nesse momento estava expurgando aquele ódio, dor e mágoas causadas por uma tragédia que havia mudado o curso de sua vida, lhe deixando aquelas feridas abertas, em sua alma e seu corpo.

Feito isso, a partir daí, ele passou a investigar quem seria seu pai. Onde estaria ele, quem poderia lhe informar ou fornecer alguma pista de como o localizar. - Buscou informações em jornais da época, fóruns, delegacias, cartórios, e por fim soube que ele estava cumprindo pena em uma penitenciária, acusado de estupro, há mais de 25 anos. Marcio foi à penitenciária para fazer uma visita àquele homem: não uma visita de cortesia, mas para conhecê-lo, e entender aquela história.

Enquanto isso, Jacó cumpria sua pena de 31 anos de cadeia.

Já se passara 26 anos e ele estava prestes a ser beneficiado com a abreviação da pena, e a progressão para liberdade condicional. Márcio ficou o conhecendo, e um pouco da sua vivência e rotina na prisão. Procurou saber seu nome, sua idade, e por qual crime respondia. Bem como também qual a sua cidade de origem. O encontro com aquele homem foi uma experiência muito enigmática, pois não se tratava de acusá-lo, - e muito menos apedrejar, ou absolver. Houve ali muito mistério. Estar diante daquele homem: o contato com aquela situação nova, difícil de entender e de se lidar.

Dr Márcio estava acompanhado por um advogado, Jacó estranhou, quis recuar. Quis saber por que aquele interrogatório, - se ele já estava pagando pena e não devia mais satisfação a ninguém. Dr Márcio lhe explicou que fazia parte de um projeto particular seu, e que aquela ação era parte de seu trabalho na área social. Jacó lhe contou toda sua história, Márcio lhe ouviu com toda atenção. E o tranqüilizou que não estava ali para julgá-lo, nem acusar. Jacó se sentiu mais à vontade.

Samara, ao saber do resultado das buscas de Márcio, não absolveu aquele homem (Jacó) pela sua culpa, mas também não o condenou mais. Manteve-se indiferente. Apenas passou a compreender que o reencontro com seu filho, tivera algum propósito que ela não sabia decifrar. Para dar sentido à sua vida. Jacó, de alguma forma já teria sido punido, ao menos em parte pela sua culpa. O tempo se encarregaria de fechar as cicatrizes. O reencontro com seu filho, agora, nessas circunstâncias a fez reavaliar suas posições, analisar friamente a partir daí. Em meio a inúmeros casos abomináveis de estupro, ao menos um teria um desfecho em paz.

Passou-se o tempo...

Chega a hora de Jacó ser levado para o semi-aberto, - Márcio, já tendo a sua confiança e amizade, lhe revelou ser seu filho biológico. Jacó teve um mal estar, - quase desmaiou. Pediu-lhe perdão com voz trêmula, surpreso e meio desorientado. Márcio lhe tranquilizou, explicando que não estava ali para um acerto de contas. E que as coisas ficassem como estavam, pois ele há tempos já sabia ser seu filho. Cada um seguisse sua vida a partir desse ponto. E, que ele o aceitasse como filho, se quisesse essa era uma decisão de livre escolha dele (Jacó).

Dr Márcio conquistou a simpatia de Jacó, e passou a lhe fazer visitas com freqüência, - pois, para ele, esse era um procedimento de rotina. Mas também para avaliação da condição de convívio social de Jacó quando ganhasse a liberdade. Quando foi solto, ele ganhou direito a uma pensão por invalidez, contra o estado. Mas também havia aprendido o ofício e artesão. Aqui fora, sua família o aguardava, e havia uma conta-poupança em seu nome em um banco. Já idoso e com uma perna amputada, ele foi seguir o curso normal de sua vida. Acertou as contas com a justiça e hoje vive em liberdade.

Obs: {Essa é uma peça literária, sem a intenção de entrar no mérito da questão, ser contra ou a favor do aborto, ou agradar grupos; A, B, ou C }. O estupro é abominável, seja em qual for a circunstância. Aqui, não está em discussão.

Texto protegido pela lei dos direitos autorais nº 9.610/1998, e registrado No E D A RJ. Arnaldo Leodegário Pereira. -- Campo Grande MS - 03/05/2019.

Arnaldo Leodegário
Enviado por Arnaldo Leodegário em 05/05/2019
Código do texto: T6639726
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