A MARMITA

"Só se vê bem com o coração.

O essencial é invisível aos olhos."

(A. de Saint-Exupéry)

O ambiente cheirava baquelita e fenol.

Uma poeira cinza pairava no ar, liberada pelas lixas do setor de acabamento.

Impregnava a pele, a roupa e pousava no chão e nos utensílios.

Tão densa que permitia, a quem dispusesse de tempo e desejo, desenhar figuras nas superfícies.

Ali fabricavam peças de resina para uso nas instalações elétricas.

Na entrada a expedição, mais adiante, o setor de acabamento e inspeção da qualidade.

O restante do galpão abrigava as injetoras e as moldadeiras.

Dispunham-se os tornos da ferramentaria rente à parede, em cujo centro uma porta ligava a um barracão negro de fuligem.

Depósito da matéria prima e abrigo do sanitário.

Ao lado do qual, uma grande bandeja de zinco com termostato e água quente, mantinha aquecidas as marmitas.

Os operários dirigiam-se à elas ao soar a sirene do almoço.

Distribuiam-se pelo recinto, em busca de lugar discreto e solidão.

Nesta hora, observava-se comportamento natural e geral.

Alimentavam-se resguardando a marmita com as mãos.

Diminuiam a distância entre a boca e o recipiente.

Mastigavam rapidamente.

Compreensível a postura.

Escondia o conteúdo.

Revelar o alimento era expor a própria penúria.

Intimidade envergonhosa.

A marmita era resumo da existência e o valor do trabalho.

Este era, também, comportamento de Gentileza, homem invisível.

Estólido, seu apelido correspondia à personalidade.

Analfabeto, ocupava-se da limpeza e do pesado.

E, na hora da refeição, sumia lá pelos fundos.

Um dia anunciou:

____ De hoje em diante lavo as marmitas!

Não era sua tarefa.

Há quem entenda subterfúgio.

E exerga com o coração.

E que, na calada, ousou examinar a marmita.

Quebrando rigorosa regra de inviolabilidade e respeito.

Experiente, chocou-se ante ao revelado.

Convinha manter segredo.

Dar conhecimento a todos degradaria.

Mas um coração harmonioso e tranqüilo aponta solução.

A bondade discreta e desinteressada suaviza.

Age de maneira singela.

Não produz tensão.

Afasta a incompreensão.

Ameniza as relações.

Sem ofender,

fortalece e multiplica novas bondades.

Renova o amor e preserva a dignidade.

Gentileza continuou a recolher as marmitas e os seus restos.

Sendo a última do ferramenteiro.

Para ouvir dele:

____ Minha mulher acha que me alimento pouco e aumentou o tamanho da minha marmita e do seu conteúdo. Não consigo dar conta de tudo e não tenho coragem de jogar fora. Então, por favor, ajuda-me e venha a partilhar comigo.

Sem malícia, Gentileza prestava-lhe este favor.

E também aos outros ao levar para lavar todas marmitas.

Inclusive a sua.

Na qual ocultava,

para simular peso e consistência,

meio tijolo.

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Araçatuba-SP, 20-09-2007