Um dia na vida de Paola

Já havia passado em muito da minha hora habitual de levantar, mas eu não estava com a mínima vontade de sair do conforto do meu cobertor e iniciar mais um dia de trabalho no centro da cidade. Fazia muito frio.

Ainda deitada, olhei de relance para o termômetro que ficava na esquina da Paulista com a Nove de Julho, bem próximo do meu quarto itinerante daquela semana. A temperatura estava abaixo da média dos últimos dias. Quase não acreditei quando li oito graus às sete e dez da manhã, hora indicada no relógio digital no mesmo painel.

Ao virar a cabeça para o lado oposto, avistei, junto a minha mochila, o livro que estava lendo antes de adormecer e lembrei-me do amigo Sam, um bibliófilo que eu havia conhecido durante a leitura.

E, sem perder tempo, retomei a conversa com o meu mais recente companheiro, um amante e colecionador de livros raros.

— Bom dia, Samuel! Ou melhor, Padre Sam. Padre que há bastante tempo já deixou a batina e casou-se com uma linda italiana, certo? Você dormiu bem? Teve notícias da esposa? Ela está bem?

— Não? Ninguém lhe telefonou?

— Mas fique tranquilo, o tratamento dará certo. O importante é fazer o que precisa ser feito. Acreditar nas decisões tomadas.

— Cumprimento-o pela determinação de vender os seus livros para custear as despesas médicas e proporcionar uma vida com qualidade à sua tão amada italiana, que veio da província de Arezzo para viver ao seu lado aqui no Brasil e acabou adoecendo.

¬— Ontem, Sam, conversamos bastante e constatamos que temos vários amigos comuns. Gostei de saber que você conhece o simpático detetive “Hercule Poirot”, que já esteve na Terra de Oz e falou com o “Homem de Lata”, que se emocionou quando Maria Capitolina, mais conhecida como “Capitu”, lhe contou como vive com o marido Dom Casmurro e se admirou com a inteligência do jovem estudante que mora em San Petersburgo, na distante Rússia, o Ródia, lembra? O estudante que cometeu um assassinato e agora, com base em teorias por ele mesmo desenvolvida, vive com o pensamento voltado aos conceitos sobre “Crime e Castigo”.

— E como aprendemos com o nosso amigo francês, o Jean Valjean. Ele nos mostrou a realidade do dia a dia das pessoas que vivem na miséria em Paris, aquelas que nós, cidadãos do mundo organizado, os chamamos de “Os Miseráveis”.

— Sim, Padre. Isso mesmo. O nosso amigo Valjean está sempre questionando se na “sociedade, quem é mesmo o miserável: quem prende uma pessoa por roubar um pão ou quem rouba o pão?” Ele é corajoso, justo. Mas solitário como nós.

— Sempre que converso com Jean, não sei por que, me vem à mente o aforismo de que “morrer não é nada. Horrível é não viver”.

— Sam, eu não ouvi! O que você disse? Por favor, pode repetir?

— Ah! Agora entendi: os relatos sobre a vida dos “miseráveis” e o axioma que cita “horrível é não viver” foram escritos pelo mesmo autor. É isso?

— Qual?

— Victor Hugo? Sim, o conheço. Só não estava associando os assuntos a esse brilhante artista. Um estadista e ativista pelos direitos humanos de grande atuação na política francesa.

— O quê? Claro que me lembro do Diadorim.

— Padre, não é possível? Só vou acreditar porque sei que uma pessoa com a sua formação não costuma mentir. Você está me dizendo que ele, o Diadorim, o meu amigo que vive no cerrado e caminha nas veredas do sertão, não é homem?

— Oh, meu Deus! Eu não sabia que ele tinha morrido. O conheci há muito tempo. Eu era bastante jovem quando conversamos. Não me recordo qual, mas por um motivo qualquer não terminamos o papo. Depois nunca mais o encontrei.

— Então, foi isso. Quando despiram o cadáver de Diadorim houve um espanto geral. Não era ele, era ela.

— E agora mudando de assunto. Ontem à noite, Sam, quando nos conhecemos, você falou rapidamente sobre uns novos amigos. Poderia confirmar os nomes, pois em breve pretendo buscar informações para conhecê-los.

— Rachid, um francês que terminou seus dias num vagão do metrô de Paris, foi o primeiro que você nomeou. Certo? Depois citou a jovem pécora, chamada Dasdores, que para viver se prostitui no cais do porto da cidade de Belém. Falou também da dupla Cadu e Nando, dois montanhistas inseparáveis, amigos de infância que escalam montanhas mundo a fora. E por último você mencionou um agnóstico, mas não lembro o nome.

— Carlos? Ah! Está bem, Carlos André. Obrigado Sam.

— Não. Por favor, hoje não. Vamos deixar o papo sobre esses novos companheiros para outra oportunidade. Eu queria apenas confirmar e registrar os nomes, o que acabamos de fazer.

— Agora, se você não se importar, gostaria de falar um pouco sobre a minha vida. Faz tempo que tenho vontade de conversar com um amigo. Falar de como me tornei Paola.

— Então, você topa me ouvir?

— Obrigado, amigo Sam.

— Vou começar pelo dia em que vi Lina pela última vez, momentos antes de sair de casa e passar a residir nas calçadas desta enorme cidade, tornando-me uma moradora de rua. Dia em que deixei de viver ao lado da única pessoa que me amou de verdade, a minha querida avó Lina. Se hoje me tornei uma pessoa do bem, devo a ela os ensinamentos que tive na infância e parte da adolescência, quando vivia sob os seus cuidados.

— Padre Sam, a minha vida nas ruas teve início numa tarde de inverno. Ainda me lembro dos detalhes...

Ao chegar da escola, numa segunda-feira do início de julho, como habitualmente fazia nos últimos dois ou três anos, antes de ser chamado por Lina para almoçar, fui para o meu quarto apreciar-me em frente ao espelho. Já naquela época eu adorava me ver transvestido de mulher. Ficava imaginando como seria bom se eu pudesse vestir-me e comportar-me como uma menina e não como um menino.

Naquele dia, além do batom vermelho e do laço de fita no cabelo, eu estava usando por cima do uniforme do colégio uma saia cor de rosa e um sutiã também rosa que eu havia comprado no final de semana anterior.

Poucos segundos após eu dar o primeiro passo em direção ao meu reflexo no espelho da porta do guarda roupa, ouvi Doralina, esse era o nome de batismo da minha avó, chamar-me: “Paulo, o almoço está servido”.

No instante seguinte, sem que eu esperasse, pois nunca tinha ocorrido antes, ela abriu a porta e, levando à mão a boca, num gesto de espanto, gritou: “Menino, o que é isso? Você enlouqueceu?”.

Fiquei estático, congelado. Nada consegui falar.

Num ato continuo a minha avó entrou no quarto e, demonstrando um comportamento não condizente com o seu modo de ser até então, começou a revirar os meus pertences e roupas que estavam no armário. Ao encontrar no fundo da última gaveta peças de roupas femininas, ela disse, tentando manter a calma: “Paulo da Silva, o que está acontecendo aqui? De quem são esses trajes de meninas?

Em um movimento desesperador, ainda calado, retirei o laço de fita, o sutiã e a saia. Com as duas mãos eu limpei os lábios e, olhando para o chão, tentei esclarecer. Mas, tanto eu como ela, nada falamos por uns dois minutos.

— Sam, como eu, à época com quinze anos, também sem saber o motivo, conseguiria explicar as minhas preferências por roupas e costumes femininos à Doralina? Uma mulher que tinha renunciado a vida comum em sociedade e optado recolher-se num mosteiro por quase cinquenta anos, dedicando-se aos serviços religiosos, uma devota à Santíssima Imaculada Conceição da Luz.

— Como, em meados de 1969, dizer à ela que eu era um transgênero? Ela não acreditava nem que o homem havia chegado à Lua naquele ano.

— De que maneira então, explicar à uma ex-freira que eu era um indivíduo que não se identificava com o gênero que correspondia ao sexo que me tinha sido atribuído no nascimento? Ela jamais entenderia, pois havia deixado à clausura no dia em que me encontrou dentro de uma cesta de vime no último banco da paróquia do Mosteiro da Luz.

— Doralina deixou o convento e passou a ser minha avó. Fomos morar em uma casinha humilde de dois quartos. Para criar-me, Lina bordava e vendia doces caseiros. Ela conseguiu uma bolsa para eu estudar num dos melhores colégios aqui de São Paulo, o Salesiano Teresinha, e incentivou-me à leitura das obras clássicas da literatura mundial. Aos domingos, íamos à missa e quando passávamos em frente ao banco onde havia me encontrado, ela repetia o texto escrito no pedacinho de papel que havia achado ao meu lado dentro da cestinha:

“Por favor, cuide do meu filho. A minha família não o aceita porque me tornei uma mãe solteira. Paulinho, assim eu o chamo, nasceu em 15/07/1954. Sou devota à Virgem Maria e adoraria que ele fosse educado e incentivado a seguir o sacerdócio católico”.

— Samuel, sabe o que Doralina, após recitar o bilhete, sistematicamente dizia?

— Nem imagina?

— Ela dizia: “Paulo, estamos no caminho certo. O desejo da sua mãe será atendido. Eu, sua avó, estou cuidando de tudo. Você será um excelente presbítero.”

— Amigo, você tem ideia de como, depois de ficar calado por dois minutos olhando para o chão, eu consegui explicar à Lina o que estava acontecendo comigo?

— Também não imagina?

Nada expliquei, falei apenas: “Vó Lina, não quero ser padre. Só me sinto eu mesmo em roupas femininas. Sei que aqui é o lar de Jesus. Vou sair de casa para que eu possa ser exatamente quem eu quero ser”.

Enquanto eu colocava algumas roupas e meus livros na pasta escolar, Lina ficou sentada na beirada da cama em que eu havia dormido desde criança chorando de cabeça baixa. E quando eu, caminhando em direção à porta, quase murmurando, disse: “Vó, obrigado por ter me criado. Agora vou seguir o meu caminho em outro lugar”. Ela respondeu: Paulo, você vai se arrepender. “Em pouco tempo, o mundo lá fora vai te destruir”.

Ficamos parados, um olhando para o outro, não por muito tempo, até que Lina se levantou, se aproximou e, segurando a minha mão, disse num tom de voz mais brando: “Então filho siga o seu caminho. Que a Imaculada Conceição da Luz lhe proteja todos os dias. Mas, se a sua cabeça mudar e você voltar a querer ser o menino Paulo, eu o receberei de braços abertos”.

“Não, não estou chorando, Vó Lina”, eu falei enquanto levava a mão ao rosto para limpar as lágrimas que estavam escorrendo. Em seguida, olhei para ela o mais intensamente do que havia olhado para quem quer que fosse e beijando o seu rosto, confirmei: “Vó, vou seguir a vida. Quero ser a Paola que está dentro de mim”.

Já naquela época, convicta que não queria continuar sendo Paulo, quando saí pelo portão da única casa que residi, para iniciar a minha existência profundamente isolada, desconsiderei de caso pensado tudo quanto pudesse me levar de volta aos complicados comportamentos que vivia até então, de ora ser menino e ora ser veladamente menina.

— Isso, Sam, foi há cinquenta anos. Hoje, continuo vivendo nas ruas quase que do mesmo jeito que nos dias seguintes ao que abandonei a minha avó.

— Por favor, não entendi o seu comentário, pode repetir?

— Ah! É uma pergunta. Você quer saber como eu passei a viver nas ruas. É isso, amigo? Ok.

— Na tarde em que saí de casa, vim direto para cá. Eu já gostava de passear pelas ruas aqui do centro. Desde garoto, eu adorava entrar nas livrarias, lá eu passava horas e horas folheando os romances. Vez por outra comprava um.

— Usei os poucos trocados que tinha economizado da mesada que recebia para alimentar-me nos momentos iniciais desta minha jornada. Nos três primeiros anos, passei a viver com o que conseguia ganhar lavando louças nos botequins e restaurantes. Tornei-me cliente de muitas pensões, aquelas que funcionam quase que exclusivamente para os emigrantes que chegam diariamente à São Paulo, vindos do Norte e Nordeste em busca de trabalho. Mas até hoje, só uso esses estabelecimentos para refeições básicas e banhos.

— Não, nunca morei nesses hotéis pensões. Para dormir, sempre preferi montar a minha tenda nas calçadas e nos estacionamentos. Comprei a minha primeira barraca e mochila logo depois que assisti na tevê, quando estava uma noite tomando sopa na pensão, uma reportagem sobre a comunidade de hippies em Maromba, na cidade de Visconde de Mauá. Gostei de ver que eles moravam em tendas e adotei a prática. Isso foi logo no meu primeiro ano de moradora de rua. Eu adoro a minha barraca. Daqui só pretendo sair para morrer ou morta.

— Com o passar do tempo, deixei de lavar pratos e passei a lavar os carros nos estacionamentos dos edifícios empresariais e comerciais, tornei-me uma profissional desse ramo informal de serviço.

— Sim, Sam. Claro que ao longo dos anos pequenas mudanças aconteceram no meu dia a dia, mas a essência, a minha razão de existir, não mudou. Há cinquenta anos sigo a rotina de trabalhar durante as manhãs, visitar as livrarias no início das tardes e retornar pra casa por volta das quinze horas e lá dedicar-me aos livros. É a melhor parte do dia. Isolada na barraca, vivo as vidas contidas nos romances. Junto com os personagens viajo por todos os lugares e, como num túnel do tempo, desloco-me para o passado e para o futuro. Cada livro tem o seu mundo, o seu significado.

— O quê? Você quer que eu fale um pouco dos amigos e dos namorados?

— Sobre essa parte, comum na vida das pessoas, nada ou quase nada tenho a dizer, porque quase não existiu.

— Sam, você sabia que as pessoas não dão a mínima atenção aos moradores de rua. Não conversam conosco. Quando muito, elas nos dão esmolas. Mas eu jamais pedi ou aceitei dinheiro. Pedi, sim, para lavar pratos e carros.

— Lembro que quando eu era jovem, buscava pretextos para iniciar uma conversa com um transeunte na calçada ou com alguém em uma livraria. Sentia falta de falar com as pessoas. Mas de tanto ser enxotada, logo me acostumei com a solidão física e deixei de abordar o meu semelhante. Para mim, a sociedade deixou de existir no dia em que passei a ser eu mesma e a morar nas calçadas.

Não nego que o meu comportamento e trajes femininos contribuíram para esse isolamento por parte das pessoas, pois até hoje quando por uma necessidade qualquer alguém fala comigo, ora me trata no masculino e ora no feminino.

— Está bem! Já vou responder e matar a sua curiosidade.

— Tive pouquíssimos relacionamentos sexuais. Transei duas ou três vezes, no máximo quatro, quando estava no auge da vida adulta.

— Não, não transei com homens. Não sou homossexual. Sou uma mulher na aparência e nos modos, mas nunca tive desejo de fazer sexo com homens. Sou transgênero e não gay. Entendeu?

— Não, não fiz amizades nas ruas. Meus únicos e verdadeiros amigos sempre foram os livros e só converso com gente como você Samuel que parece ser, mas não é uma pessoa que nem eu.

— E o que aconteceu com a minha avó depois que a deixei? Foi essa a sua pergunta, Sam?

— Ouvi dizer que Lina, de tanta tristeza, veio a falecer cinco meses depois que saí de casa. Apesar de não aceitar o meu comportamento, tenho certeza que ela me amou até o seu final. Eu sempre a compreendi, porque a vida nos anos de 1960 era bem diferente do que é hoje. Uma época em que quase não existia aceitação dos homossexuais pela sociedade, imagina então a minha avó aceitar-me: um garoto que não se identificava com sexo de nascença e que afirmava ter nascido no corpo errado.

— Sam, obrigado por ouvir-me. Acho que não vou durar muito. Sinto a vida abandonar meu corpo e a minha mente dia após dia. É preciso aceitar e eu aceito que existe a vida e existe a morte, apesar de nunca coexistirem.

**

Assim foi o meu dia. Um pouco diferente dos outros. Hoje, pela primeira vez contei a história da minha vida para um amigo. Talvez por ter sido levada pela serenidade de Sam, que por muito tempo dedicou-se ao sacerdócio. Ou, quem sabe? Conduzida pela minha porção emocional por estar completando sessenta e cinco anos. Ou mesmo por uma necessidade de compartilhar receios, porque envelhecer é um desafio para todos, imagina para um transgênero que vive nas calçadas.

Nesta fase natural da vida, que as pessoas chamam de terceira idade, tenho constatado que a solidão, diferente de antes, passou a incomodar-me. A falta de um cônjuge e de descendentes torna a velhice um enorme desafio a ser vencido.

Estou conseguindo ultrapassar esses obstáculos com ajuda dos amigos personagens da literatura e de você, caro leitor, para quem escrevo com carinho estes parágrafos.

Amanhã, estas páginas, que ora estou terminando de redigir, estarão sendo lidas por alguém ou largadas no fundo da lixeira de um escritório do centro de São Paulo.

Mas isso não importa!

O importante é que, se o Sol continuar oferecendo-me o porvir, na próxima noite, por volta desta mesma hora, estarei escrevendo mais uma lauda sobre “um dia na vida de Paola”, contando o que fiz e o que vi nas ruas de São Paulo, cidade que amo desde o primeiro dia em que decidi ser Paola, em detrimento de continuar vivendo sob os cuidados e a proteção da minha querida avó Lina.

Estou cansada. Preciso dormir.

Paola

15/07/2019

****

— Pedro, tem um tempinho? Queria lhe mostra um texto.

— Porra, Leo! Está de sacanagem comigo? Pensei que estivesse morto aí sentado! Desde que cheguei ao escritório, há quase uma hora, estou tentando falar contigo e você não me deu a mínima atenção. Não levantou a cabeça nem para responder o meu bom dia. E agora vem com essa de querer me mostrar um texto. Não estou nada interessado nesses seus romances eróticos nem nessas “revistinhas de sacanagem” do século passado que você se intitula colecionador.

— Já são nove e dez da manhã e ainda não começamos a discutir os rascunhos do novo livro do Gustavo. Ele vai passar aqui hoje, logo depois do almoço. Ficou de decidir se renovará ou não o contrato com a nossa editora. Você esqueceu?

— Você pelo menos concluiu a leitura do último capítulo que recebemos na semana passada? Já tem uma opinião, Leo?

— Não podemos perder mais um contrato, estamos à beira de nos tornamos mais uma editora falida.

— Calma, amigo Pedrão! Estamos juntos há bastante tempo e você sabe que não costumo deixar furo. Estou pronto para reunião sobre o novo livro. Daqui a vinte ou trinta minutos, chamaremos a revisora Carmem e iniciaremos o trabalho agendado. A ideia é apresentarmos ao Gustavo uma proposta de possíveis cortes nos textos, pois acho que ele esqueceu a nossa conversa sobre o número de páginas. Hoje, comercialmente falando, só há mercado para obras até no máximo duzentas páginas. Não dá mais para publicar “Guerra e Paz”.

— Agora, Pedro, gostaria de conversar contigo sobre uma ideia que me veio à cabeça sobre esse texto que acabei de ler. Não vou levar mais do que dez ou quinze minutos expondo. Está bem?

— Leo, por favor, nada daquelas suas propostas tipo “Kama Sutra”, já ultrapassamos esta fase.

— Pedro, com certeza você já deve ter ouvido falar dum “traveco” que há anos lava os carros nos estacionamentos aqui da redondeza. Certo?

— Claro! Quem não conhece? Nos bons tempos da nossa editora, antes desta crise, quando ainda se comprava livros neste país e os editores tinham carro, ele, algumas vezes, lavou o meu “SUV”. Se não me engano, as pessoas o chamavam de Paola.

— Chamavam não, Pedro. Chamam. Apesar de já ter chegado à terceira idade, ela, ou ele, não importa, ainda continua lavando carros e morando nas calçadas.

— Hoje, ao entrar no hall do prédio, eu a encontrei junto às caixas de correspondências dos escritórios segurando dois envelopes. Aí, como quem não quer nada, perguntei: “Senhora, tem correspondência para os números 704 e 705, Editora Letras?” Para minha surpresa, num movimento rápido, ela virou a cabeça e disse: O senhor trabalha na Editora? E se aproximando, com o braço estendido num gesto que respondia a minha pergunta, falou enquanto entregava-me um dos envelopes que tinha na mão: “Por favor, ofereça ao seu chefe”.

— Sem nada pensar, dei continuidade à conversa. Depois de dizer que a conhecia de vista, que nunca tinha se tornado seu freguês porque era adepto do transporte público. Mas que, de tanto ouvir falar da lavadora de carros que trabalhava trajando saia rosa, blusa de cetim azul e sandália Anabela, jamais esquecera o nome Paola.

— No nosso papo, fiquei sabendo que ela mora nas calçadas desde os quinze anos de idade, que é uma amante da literatura e que recentemente passou a escrever textos e os distribuir nos boxes dos escritórios da vizinhança. Segundo ela, uma forma de encarar a solidão enquanto envelhece.

— Leo, já estou vislumbrando o final dessa sua reunião improvisada com a lavadora de carros. O traveco pediu para você dá um toque no chefe e verificar se ele topa custear a impressão de umas mil cópias desse folheto que você recebeu dentro do envelope. Aposto que é um anúncio de um “lava a jato” que ele pretende abrir. É isso, não é? Veja bem, se esse pedido fosse há pelo menos um ano, eu concordaria com você em ajudarmos o traveco, mas no momento não podemos nem pensar. Está bem? Vamos ao novo livro do Gustavo. Vou ligar para a Dona Carmem comparecer à nossa sala. Ok?

— Não, Pedro, não é nada disso. E arrego para essa sua mania de falar “veja bem”. Porra! Vou repetir pela milésima vez: “veja bem” é uma gíria usada pelos policiais quando estão respondendo questionamentos de repórteres de rua. Entendeu?

— Agora, com relação ao traveco, não existe “lava jato” e ela, não ele, assim que Paola prefere ser referenciada, não pediu nada. E também não é um folheto de propaganda o papel dentro do envelope.

— Pedro, eu fiquei impressionado com o conhecimento literário da Paola. Ela contou-me sobre a paixão pelos livros. Disse-me que no seu quarto, uma barraca de camping montada dentro de um estacionamento ou num recuo de uma calçada, ela tem quatro mochilas repletas de livros que comprou e depois de lê-los, preferiu guardá-los e não doar às escolas públicas como normalmente faz com demais obras que compra e lê.

— Por favor, Pedro, larga o telefone. Daqui a pouco eu chamo a Carmem. Sem demagogia e exageros, se eu saí do papo impressionado com a cultura da moradora de rua, agora, que terminei de ler estas cinco páginas redigidas por ela de forma manuscrita, estou maravilhado com o estilo narrativo. Impossível não se emocionar e se encantar com os parágrafos escritos sobre o seu cotidiano nas calçadas e as conversas com seus amigos, personagens da literatura brasileira e estrangeira.

— Então, sócio Pedrão, a ideia que me veio à cabeça é transformar a Paola em uma autora. Compilar seus textos e publicar um livro, talvez com o mesmo título que ela dá aos seus escritos: “Um dia na vida de Paola”. Claro que não podemos sonhar que a lavadora de carros se tornará um Alexander Soljenítsin.

— Penso em produzir um bom programa de marketing, tanto nas redes sociais como na tevê. Convidar a produção de um programa para realizar uma entrevista com a autora, uma moradora das ruas de São Paulo. Poderemos salvar a editora com esse lançamento. O investimento não será grande.

— O que acha, Pedro?

— Apesar de estar curioso em conhecer um pouco mais a Paola, neste momento não acho nada. Mas prometo que em breve darei a minha opinião. Está bem? Agora vamos a nossa reunião sobre o novo livro.

***

Dois dias depois...

— Oi Leo! Como foi o encontro com a nossa autora? Achou o quartinho itinerante, ou melhor, a barraca que ela vive? Ela topou nos deixar ajustar os textos e publicar um livro? Conversou com ela sobre as possibilidades das entrevistas para divulgarmos o trabalho?

— O que houve, Leo? Pela sua cara, não a encontrou ou ela não concordou. Foi isso?

— Não, não foi isso que aconteceu, Pedro. Enquanto conversamos podemos ir até a copa tomar um café?

— Ótimo! Também estou precisando de um café bem forte, desde cedo estou tentando convencer o gerente do banco a nos conceder um novo empréstimo, mas está difícil.

— Então, sócio fale-me sobre a sua ideia do livro, talvez esse projeto possa realmente nos dar mais alguns meses de sobrevida.

— Pedro, esqueça o livro da Paola. Ela partiu essa madrugada.

— Partiu para aonde, Leo? Há anos que ela vive aqui nas redondezas

— Quando cheguei à calçada, uma esquina próxima da Nove de Julho, avistei a barraca cercada por uma fita preta e amarela que isolava a área. Em pé um guarda municipal evitava que alguns poucos curiosos, que lá se encontravam, tocassem nos pertences da vítima.

— Após identificar-me como amigo de Paola, o guarda contou-me que ele havia a encontrada morta naquela manhã. Disse que ela estava com as feições serenas, com a cabeça apoiada em uma das mochilas e abraçada com seus livros. Ele, o guarda, falou-me que há muito tempo conhecia a lavadora de carros e ressaltou que ela raramente falava com as pessoas.

— Pedro, o guarda, num gesto de amizade, pediu que eu me aproximasse e entregando-me uma folha dobrada que havia retirado do bolso da farda, disse: “Amigo, leia o último texto escrito por Paola. Eu o encontrei amassado ao lado de sua mão esquerda. Acho que ela estava escrevendo antes de dormir ou de morrer.”

***

Amigos para sempre!

Exceto por uns poucos companheiros dos escritórios que me deixavam lavar seus carros e o guarda Marcelo que nos últimos anos me convidava para o café da manhã, os meus verdadeiros amigos sempre foram os livros. Cada livro teve um significado no meu cotidiano. Aprendi a viver com os personagens e as narrativas criadas pelos seus autores.

Por meio desses amigos conheci e conversei com muita gente importante. Tive o privilégio de bater um longo papo com os “Irmãos Karamazov”. Tornei-me confidente de “Anna Karenina”. Apaixonei-me pela balzaquiana Julia d’Aiglemondei, a “Mulher de Trinta Anos”. Dei conselhos ao Bruno, o “Menino do Pijama Listrado”, para que ele não transpassasse aquela cerca de arame farpado, mas ele não me ouviu e acabou dando naquela tragédia.

Com os livros viajei mundo a fora, estive na “Cidade do Sol”, onde conheci o Caçador de Pipas. Visitei a famosa “Cidade de Papel”. Passei quase um mês em “Budapeste” tentando aprender o idioma húngaro, a única língua que o diabo respeita, pois ela possui vinte e dois (é isso mesmo 22) casos de declinação, quatorze vogais e vinte e sete consoantes. Também viajei pelas “Cidades Invisíveis”, as quais, se não me falha a memória, todas tinham nomes de mulheres.

Li uma vez, não lembro se num livro ou em um texto qualquer, que um pássaro pousado numa árvore nunca tem medo que o galho quebre, porque ele confia, não no galho, mas sim em suas próprias asas. Também vivi sem medo de ser discriminado e rechaçado pela sociedade, porque sempre confiei em mim mesma e nos meus amigos personagens da literatura.

Mas, neste momento de solidão e frio, eu gostaria mesmo é que alguém de verdade estivesse aqui e me desse um abraço bem apertado.

Sei que a finitude é o ponto final das nossas jornadas. Então, em breve espero não mais ver o tempo passar, não mais ver os dias e as noites recomeçarem para que eu possa de novo abraçar e beijar Lina, a minha querida avó.

Doralina jamais desvaneceu na minha memória, coisa que eu não imaginava que pudesse acontecer..........................................

***

— E assim, Pedro, Paola partiu. Na solidão, abraçada com seus verdadeiros amigos ela viveu a sua última noite nas calçadas.

Sérgio Coutinho
Enviado por Sérgio Coutinho em 25/04/2019
Reeditado em 13/05/2019
Código do texto: T6632479
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