O Livro de Naira

O relógio da sala de embarque do Aeroporto Internacional “Mariscal Sucre”, em Quito, indicava dezessete horas e cinco minutos. No mesmo painel, um pouco abaixo, lia-se “24/octubre/2018”.

Em uma cadeira, sentado descontraidamente, encontrava-se o professor Dan aguardando o voo para retornar ao Brasil.

Apesar do cansaço natural da viagem de trabalho, pois em apenas dois dias havia participado de três reuniões sobre intercâmbios acadêmicos e realizado duas palestras no Curso de Ciências Filosóficas e Teológicas da Pontifícia Universidade Católica do Equador, o professor, ao mesmo tempo em que conversava com dois jovens abancados à sua frente, lia, vez por outra, as notícias que chegavam ao seu smartphone sobre as eleições presidenciais no Brasil e o destino da “Lava a Jato” em decorrência dos discursos e posicionamento do novo presidente do Supremo Tribunal Federal.

— Chegamos um pouco cedo. Temos cerca de uma hora para acertamos alguns detalhes do intercâmbio — falou o professor sem desviar o olhar do celular.

Imediatamente após ouvirem o docente, os dois jovens começaram a falar ao mesmo tempo.

Dan, educadamente, interveio no falatório e disse:

— Caco, por favor, vamos seguir a antiga regra que diz “primeiro as damas”. Deixe a sua colega Anastasya expor as dúvidas que tem sobre as disciplinas do curso e a estada no alojamento da Universidade aqui no Equador. Em seguida, responderei as suas perguntas. Está bem assim?

Os dois jovens balançaram a cabeça indicando que concordavam.

E de forma organizada, como sempre conduzia os diálogos com seus alunos, Dan respondeu pausadamente e detalhadamente as perguntas formuladas por Anastasya e Caco.

Ele tinha experiência no assunto, pois há quase quinze anos trabalhava como assessor da Universidade Católica do Equador, gerenciando projetos que viabilizavam a participação de alunos brasileiros, graduandos e mestrandos, nos cursos daquele centro universitário.

Em um determinado instante, menos de dez minutos depois que o grupo tinha chegado à sala de embarque, enquanto ouvia Caco falar sobre os documentos pessoais necessários ao intercâmbio, o interesse do professor foi momentaneamente direcionado à bela mulher que se aproximava.

Era uma afrodescendente, alta, bonita e exibindo uma simpatia que realmente chamava a atenção das pessoas. Talvez com seus vinte e cinco, vinte e oito. Não mais do que trinta anos de idade. Estava elegantemente vestida com uma calça preta e uma blusa acetinada azul. Pendurada no ombro esquerdo, ela carregava uma bolsa tiracolo de couro marrom. E segurando junto ao peito, como se estivesse abraçando um bebê, trazia um livro.

Pouco tempo depois que a afrodescendente havia sentado em uma poltrona ao lado de Dan, ele percebeu que ela estava lendo e fazendo anotações nas páginas do livro. Parecia que corrigia um trabalho acadêmico ou revisava um texto para impressão.

Devido à proximidade que eles estavam um do outro, o professor reparou que o livro estava redigido em português e que na parte inferior da capa constava o nome “Naira Doli”, constatação que o deixou bastante curioso.

Daniel Alves, carinhosamente chamado de Dan pelos alunos e colegas do Instituto de História da UFRJ, onde, há quase vinte e cinco anos, lecionava história geral e filosofia contemporânea, era um verdadeiro apaixonado pela literatura brasileira. Tal era a sua paixão e conhecimento sobre os livros nacionais e seus respectivos autores que frequentemente ele ministrava palestras em circuitos literários do Rio, de São Paulo e, vez por outra, em Lisboa e Maputo, cidades da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.

Então, não mais interessado nas notícias sobre as eleições e a “Lava a Jato”, o professor, ao mesmo tempo em que ouvia e respondia aos alunos, iniciou uma pesquisa no seu Iphone para saber quem era Naira Doli. Mas nada encontrava sobre aquela autora. Não havia sequer uma referência de trabalhos publicados. Nem no site “Recanto das Letras”, um portal bastante conhecido e utilizado por autores iniciantes e pessoas que amam escrever, ele encontrou o cadastro daquele nome.

Olhando, ora para tela do celular e ora às pessoas que andavam apressadas em direção aos portões de embarque, Dan fez uma pausa no que respondia à jovem discente e, depois de uma fisionomia pensativa, disse:

— Caco e Anastasya, só um instante. Daqui a pouco voltaremos ao nosso papo, está bem?

Então, virando-se para mulher que havia acabado de sentar ao seu lado, falou:

— “Buenas tardes, me llamo Daniel Alves. La señora me permite una simples pregunta?”

— “Seguro! Pero vamos a hablar en portugués. Me di cuenta de que el caballero y los jóvenes son de Brasil, yo también soy brasileña”.

Estendendo a mão direita e, fazendo apenas menção de que iria se levantar, o professor a cumprimentou e continuou a conversa:

— Ótimo, então vamos prosseguir no nosso idioma. Desculpe-me, não ouvi perfeitamente o seu nome.

— Meu nome é Naira Doli, senhor Daniel Alves. Resido no Rio, vim à Quito para visitar a cidade onde a minha mãe viveu parte de sua infância e principalmente conhecer o Educandário SEK, colégio em que ela estudou.

— Lá no Brasil, as pessoas me chamam de Naira. Já em Dadaab, a cidade em que nasci, e em Londres, onde residia até recentemente, meus amigos preferem Doli. Então, por favor, o que o senhor gostaria de perguntar?

— Olá Naira! Eu prefiro ser chamado de Dan, tudo bem?

— Parabéns pela fluência no nosso idioma. Claro que, por ter cidadania brasileira, é natural que conheça o português. Mas você fala muito bem, apesar do sotaque. E, se não estou enganado, no país em que nasceu a língua oficial é o inglês, não é?

— Sim, senhor Dan, no Quênia o inglês é um dos idiomas oficias. O outro é o suaíli

— Isso mesmo! Suaíli. Conheço alguns moçambicanos que, além do português, falam suaíli, uma língua muito utilizada em diversas regiões da África Oriental.

— Senhor Dan, e a pergunta? — disse a afrodescendente, educadamente interrompendo o professor que não parava de falar.

— Sim Naira, a pergunta. Posso lhe chamar de Naira? Não posso?

Imediatamente após perceber que ela havia concordado simplesmente meneando a cabeça, o professor falou:

— Na realidade, você já respondeu.

— Já? Como já, senhor Dan?

— A minha curiosidade estava relacionada à autora do livro que está em suas mãos. E neste exato momento estou tendo o prazer de conhecê-la pessoalmente.

E a conversa não parou.

Depois de falar de sua paixão pelos livros da língua portuguesa, de suas viagens à África, de seu trabalho em Quito e na Universidade Federal do Rio de Janeiro, Daniel ficou encantado em ouvir o que disse Naira Doli sobre as suas tarefas e responsabilidades profissionais e também alguns detalhes da vida pessoal.

— Como disse anteriormente, nasci em Dadaab, no maior campo de refugiados de guerra do mundo, e fui abandonada na tenda da enfermaria onde fiquei os meus primeiros meses de vida. Nunca tive uma única informação sequer sobre os meus pais biológicos.

— Alguns dias antes de completar três anos de idade, eu fui adotada por uma voluntária brasileira que, dentre outras tarefas em Dadaab, dedicava-se a contar histórias aos jovens e às crianças que viviam naquele campo. Isso foi em mil novecentos e noventa e quatro, ano que tenho como referência para tudo que planejo na vida. Para mim, e acho que também para muitos brasileiros, aquele foi um ano inesquecível: perdemos o Ayrton Senna e o Tom Jobim. Mas ganhamos uma moeda nova, o real, e o tão sonhado tetra no futebol. E eu nasci de verdade, ao conhecer Naomi, a minha mãe.

Após saber que o professor aguardava o mesmo voo que ela para o Rio de Janeiro e sentindo uma invasão súbita de confiança que nunca tinha tido até então na presença de outras pessoas, Naira colocou o livro em cima do braço da poltrona e continuou a conversa:

— Depois de morar em Dadaab por cerca de dois anos e quase três em Nairóbi, nos mudamos (eu e minha mãe) para Londres, onde residia o meu pai, John.

— Quando saímos do Quênia e fixamos residência na Inglaterra, país dos meus avós paternos, eu estava com oito anos e Naomi com quase setenta e dois. Era meados do ano de mil novecentos e noventa e nove e meus pais estavam se aposentando.

— Durante os oito anos que minha mãe ficou em Londres, eu tive a oportunidade de, junto com ela e com John, visitar alguns campos de refugiados na África e no Oriente Médio. Naomi era constantemente convidada para fazer palestras em instituições de ajuda humanitária. E, sempre que tinha uma folga no colégio, eu a acompanhava em suas viagens. Por três vezes voltei à Dadaab.

— Quando o meu pai, aos oitenta e dois anos, adoeceu com um câncer na garganta, ela deixou de viajar e dedicou todo o seu tempo a cuidar de John que por quase um ano sofreu com a agressividade da doença.

— Menos de dois meses após a morte do marido, Naomi comunicou ao filho Paul, meu único irmão, que gostaria de terminar seus dias no país em que havia nascido. E, naquele mesmo ano, se mudou para o Brasil e lá continua morando até hoje, no apartamento que era dos seus pais. Vive no mesmo quarto em que viveu quando era criança.

— Então, se não errei nas contas, você mora no Rio há mais ou menos dez anos — o professor afirmou, enquanto pegava barras de cereais em sua mochila.

— Não, senhor Dan. Eu continuei em Londres. Preferi concluir os estudos na Europa.

— Inicialmente fiquei morando na casa de Paul. Lá, nos tempos vagos, eu ajudava a minha cunhada Emily a cuidar da filha Keli.

— Depois que concluí a faculdade, aluguei um pequeno apartamento na Spring Street, bem próximo à estação do metrô de Paddington, pois eu havia conseguido um emprego numa pequena editora em Notting Hill.

— Fiquei na Inglaterra até junho do ano passado, quando então desejei retomar a vida ao lado da minha mãe e mudei-me para o apartamento dela no bairro do Flamengo no Rio. Um mês após a minha chegada aceitei o convite para dirigir o “Instituto Naomi” que estava sendo criado por iniciativa de uma ONG inglesa com o objetivo de apoiar e divulgar trabalhos sociais realizados por voluntários brasileiros.

Quando Dan ofereceu barras de cereais à Naira, deu um instalo em sua mente e ele murmurou para si mesmo: “Caramba! Estou de papo com a afrodescendente há quase vinte minutos e não a apresentei aos meus alunos”.

Naquele instante, o professor observou que Anastasya estava desligada do que acontecia a sua volta, com o livro de espanhol aberto no colo, resolvia alguns exercícios, e Caco dormia tranquilamente com a cabeça encostada na lateral da poltrona. Então, ele preferiu não os incomodar e disse em voz baixa:

— Doli, esses dois jovens, sentados à nossa frente são meus alunos e vieram comigo a Quito.

— Ótimo! Logo depois que sentei, ao seu lado, percebi que vocês estavam juntos e que eram brasileiros. E com relação ao seu trabalho nas universidades, o senhor leciona na área de ciências exatas ou humanas? — ela perguntou, interrompendo Daniel.

— Humanas. Mas, nos últimos anos, tenho trabalhado pouco em sala de aula. Venho dedicando a maior parcela do meu tempo na orientação dos mestrandos de história e filosofia.

E logo que concluiu a resposta, Dan, reparando que Anastasya e Caco, naquele instante, estavam atentos à conversa, então falou:

— Caco e Anastasya, por favor, cheguem aqui. Deixe-me apresentá-los à autora Naira Doli. Ela é brasileira, mas nasceu no Quênia.

A jovem franziu as sobrancelhas, levantou-se e deu dois passos à frente. Por instantes, olhou para o professor sentado na poltrona ao lado, e falou demonstrando certo orgulho quando pronunciou o seu nome:

— Como vai, senhora Naira Doli? — chamo-me Anastasya Popov, sem acento no “a” e com “y”.

E, beijando o rosto da sua colocutora, a aluna concluiu:

— Herdei o nome da minha bisavó. Ela era ucraniana.

Anastasya tinha vinte e dois anos, usava calça jeans com uma blusa de estampas. As unhas, no tamanho certo, estavam pintadas com esmalte vermelho-claro. Não era gorda, muito menos magra, mas seu rosto era redondo e quando olhava às pessoas transmitia simpatia.

— Ok, querida. Se em breve vier escrever o seu nome, pode deixar não esquecerei os detalhes da grafia. E, por favor, esqueça o pronome “senhora”. Não sou tão jovem e bonita como você, mas ainda não cheguei aos quarenta.

— Está bem, Naira — disse a jovem que, após sentar ao lado da afrodescendente, perguntou:

— Tenho uma curiosidade. Ouvi você dizer ao professor Dan que tinha nascido no Quênia e que, apesar de ter cidadania brasileira há bastante tempo, só veio a conhecer o nosso país no ano passado quando lá chegou para fixar residência. Então, como conseguiu manter a fluência no português? A senhora, ou melhor, você fala sem erros de concordâncias nominais e verbais.

— Foi um aprendizado natural ao longo da vida. Como você também deve ter ouvido, quando fui adotada eu tinha dois anos de idade e a partir daquele dia até hoje, só converso com a minha mãe em português.

— Olá, Doli! — sou Carlos Eduardo, mas gosto de ser chamado por Caco. Está bem?

— Tudo bem, Caco — disse Naira beijando o rosto do rapaz.

O jovem, diferente de sua colega, era bem magro. Tinha os cabelos presos no estilo rabo de cavalo, vestia um jeans desbotado e uma camiseta azul marinho, usava óculos de aro preto e portava uma bolsa do tipo tiracolo cheia de livros.

— Doli, eu também tenho uma curiosidade. Você lê muito em português?

— Não como gostaria, mas digamos que leio um pouco acima da média dos brasileiros. Aprendi a amar os livros com a minha mãe — ela respondeu com firmeza, sem balbuciar.

E a partir daquele momento a conversa, entre os quatro, fluiu animadamente sobre a experiência de vida que se obtém morando no exterior, seja trabalhando ou estudando, e também a respeito do livro que Naira estava lendo e fazendo anotações.

A despeito das diferenças nos estilos de vida, nos hábitos do dia a dia e até nas idades de cada um daqueles brasileiros que conversavam na sala de embarque, já naquele primeiro encontro houve um grande entendimento, uma união espontânea dos estudantes e do professor com a recém-conhecida de origem africana. Percebia-se claramente uma sinergia no grupo.

Para quem os vissem dialogando naquele canto da sala de embarque, como era o caso dos demais passageiros que ali também aguardavam seus voos e, involuntariamente, ouviam o papo descontraído dos brasileiros, apostariam que o grupo era formado por amigos ou colegas que se conheciam de longa data.

A conversa continuou durante as primeiras horas do voo, pois Naira conseguiu trocar de lugar com outro passageiro e sentou-se próximo dos três. Só depois que foi servido o jantar e reduzida à iluminação de bordo é que eles silenciaram e naturalmente pegaram no sono.

Naquele primeiro encontro, Dan soube que Naira Doli não era uma escritora e que o livro, o qual estava lendo e fazendo anotações, não era na realidade um livro concretizado. Era o que as editoras chamam de “boneca”, digamos um rascunho. Isso explicava a ausência de informações na internet sobre obras e textos da brasileira nascida no Quênia.

Doli também lhe disse que, há quase uma década, escrevia textos sobre as atividades que sua mãe durante anos havia desenvolvido em prol das comunidades carentes e de refugiados de guerra de vários países. E que, quando veio morar no Brasil, imaginou que poderia escrever um livro inspirado na vida de Naomi. Um romance com base em fatos reais. Seria quase uma biografia.

Então, nos últimos meses, além das atividades inerentes à sua função de Diretora Presidente do Instituto Naomi, que não eram muitas, Naira tinha organizado os artigos anteriormente elaborados, traduzindo alguns parágrafos do inglês e outros do suaíli para o português, e também redigido textos complementares sobre a vida de sua mãe e, após uma rápida consulta na internet sobre editoras no Brasil, enviou todo material à “Ules Ensinamentos” para elaboração da primeira “boneca” (montagem do trabalho gráfico para correções antes da impressão final da obra).

“A menina que contava histórias”, esse era o título dado por Naira à obra que estava escrevendo. Ela pretendia efetuar o lançamento no dia dezessete de dezembro daquele ano, data em que Naomi completaria noventa anos de vida.

Por volta das seis horas da manhã, já do dia seguinte, após pegarem as bagagens no hall de desembarque do Aeroporto Tom Jobim, no Rio de Janeiro, os quatro decidiram tomar um café e seguiram em direção à praça de alimentação.

Depois de acomodados numa mesa da lanchonete “Megamatte”, o professor, enquanto verificava as mensagens e notícias que chegavam ao celular, falou:

— Doli, ontem no voo, durante a nossa conversa, você comentou que, apesar do apoio de algumas pessoas, estava com dificuldades para concluir a revisão final do seu livro. E disse também que talvez não conseguisse ter os primeiros duzentos exemplares impressos até o final do próximo mês como havia planejado.

— Sem conhecer o conteúdo, simplesmente olhando-a em suas mãos, parece-me que a obra literária está quase pronta. Então, caso não se importa em responder, qual seria essa dificuldade?

— Senhor Daniel

— Por favor, Naira, dispensa o senhor! Dan ou Daniel, ok?

— Tudo bem.

— Professor, como o senhor, oh perdão! Dan, como você percebeu nos momentos iniciais da nossa conversa, apesar de eu ter residido, estudado e trabalhado por praticamente toda a minha vida em países de língua inglesa, tenho certo domínio do português. Mas essa fluência é somente na expressão oral. Já no que diz respeito ao ato de escrever, tenho restrições. Prefiro redigir em inglês ou em suaíli.

Constatando o interesse de seus interlocutores no assunto, Naira continuou falando:

— Na semana passada, um dia depois de eu ter recebido a “boneca”, o editor ligou-me e, educadamente, comentou que nos aspectos gramaticais o livro estava corrigido. Mas que, em sua opinião, o estilo de escrever os parágrafos e os diálogos deveria ser ajustado para uma linguagem mais “abrasileirada”, pois o texto parecia ter sido redigido em outro idioma e vertido para o português por um tradutor sem experiência ou conhecimento do modo atual de se expressar do brasileiro...

— Então por que não escreveu o livro num desses dois idiomas de sua preferência? — perguntou Caco, interrompendo o que dizia Doli.

— Concordo com Caco, pois, além da facilidade que lhe proporcionaria na escrita, uma obra literária redigida em inglês com certeza teria mais mercado para venda na Europa ou mesmo na África

— disse Anastasya enquanto oferecia à Doli pãezinhos de queijo que a garçonete havia acabado de colocar em cima da mesa.

— Obrigada, querida. Vou aceitar apenas um.

— Talvez eu não tenha deixado claro que, desde o início, a minha ideia era conceber o livro no idioma nato de Naomi e lançá-lo aqui no Brasil, onde o trabalho que ela realizou mundo afora é muito pouco ou nada conhecido.

— Até vocês me disseram que nunca tinham ouvido falar em Naomi, a contadora de histórias.

De repente Dan, que ouvia atentamente as explicações de Naira enquanto tomava o seu café, colocou a xícara sobre a mesa e assumindo um semblante típico de quem mata uma difícil charada, falou:

— E se nós participássemos da revisão final. O que vocês acham?

Seguiu-se quase um minuto de quietude durante o qual todos à mesa olharam para o professor com uma expressão que sugeria que não tinham compreendido o que ele acabará de propor. O silêncio foi interrompido quando Naira terminou de engolir o pedaço de pão de queijo que estava mastigando e disse em voz baixa:

— Desculpe-me Dan, eu não entendi.

— Ah! Agora que pesquei. Excelente ideia, professor. Formaremos um grupo para trabalhar sob a sua orientação. Tenho certeza que poderemos ajudar a Doli na revisão. Você concorda em participar, Anastasya? — falou Caco, como se a ele coubesse à decisão final sobre a proposta do professor.

— Por mim, tudo bem. Já estou envolvida com dois grupos de estudo na pós-graduação, mais um ou menos um não fará diferença. Preciso apenas de um tempo, talvez uns dois dias, para ajustar os horários — respondeu Anastasya sem titubear.

Naira, que havia ouvido em completo mutismo a conversa dos jovens com o professor, continuou calada buscando entender o que levava aquelas pessoas, que a tinham conhecido na tarde do dia anterior, a se mobilizarem para ajudá-la.

Percebendo que Doli continuava confusa com o que acabará de escutar, Dan esclareceu a sua ideia, detalhando um pouco mais, como eles poderiam contribuir na revisão dos textos.

— Doli, caso concorde, você nos enviaria uma cópia da boneca. Em seguida, durante a leitura individual, quando pertinente, reescreveríamos os parágrafos, ajustando-os por meio de paráfrases, sem modificar a sua essência. Depois reuniríamos para analisar as sugestões de cada um e a elaboração final do texto. Esse trabalho poderá ser realizado por capítulos, o que nos levaria a ter que programar uma ou duas reuniões por semana.

— Então, cara escritora, qual é a sua opinião?

Depois de refletir por um tempo, Naira, pausadamente e olhando, não só para Dan, mas para todo o grupo, disse:

— Pensando bem, acho que vou aceitar.

E ali mesmo, no hall de desembarque do Galeão, enquanto terminavam o café Dan concluiu a sua proposta de como seria desenvolvido o trabalho e sugeriu a biblioteca do Instituto de História como local de reunião. E que os encontros seriam realizados às quintas-feiras, às nove da manhã. Havendo necessidade, se encontrariam também nas noites de sexta-feira.

Naira discordou apenas do local indicado. Ela colocou à disposição a sala de reuniões do Instituto Naomi. Caco e Anastasya aceitaram imediatamente a proposta, quando souberam que o Instituto estava localizado na Muniz Barreto, próximo à estação do metrô de Botafogo, pois ambos moravam naquele bairro e poderiam ir a pé ou de bicicleta às reuniões.

Antes de se despedirem, Caco, ao receber o número do celular da queniana brasileira, criou o grupo “livrodenaira” no WhatsApp, o que, além de ter facilitado os agendamentos dos compromissos semanais no Instituto, permitiu também que os participantes trocassem informações sobre as sugestões de ajustes nos textos.

No dia seguinte à chegada ao Rio, Naira providenciou as três cópias digitais da “boneca” e as enviou para os endereços eletrônicos de seus novos amigos.

A revisão dos diversos capítulos do livro fluiu sob a supervisão do experiente professor Dan sem empecilhos. Eles trabalharam por quase quarenta dias. O encontro, agendado para a última quinta-feira de novembro, dia vinte e nove, ocorreu conforme planejado.

— Hoje, pessoal, como tínhamos acertado, Naira fará a leitura em voz alta da versão revisada de todo o texto, de modo a nos permitir uma melhor compreensão das expressões e ideias contidas no livro — disse o professor e, olhando diretamente para Caco, concluiu:

— Não se preocupem com o transcorrer das horas, já reservei o nosso almoço no Ráscal do Shopping Rio Sul.

O jovem respondeu afirmativo, gesticulando o polegar para cima e sorrindo para Dan.

Sem nada dizer, mas demonstrando certo nervosismo, a brasileira nascida no Quênia se levantou e caminhou em direção ao púlpito da sala.

— Farei a leitura do nosso trabalho seguindo as instruções do professor Dan — falou num português claro, enfatizando o pronome possessivo “nosso”. E antes de iniciar, destacou:

— A qualquer momento vocês podem interromper-me para inclusão de possíveis ajustes nos parágrafos. Está bem?

E sem esperar resposta, interpretando o silêncio como “tudo bem”, ela iniciou a leitura do livro sobre a vida de uma brasileira pouco conhecida no Brasil, mas que foi um destaque em vários continentes, inclusive na Ásia:

“A menina que contava histórias”

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“Dedico este livro à minha mãe e às pessoas que padeceram e as que ainda padecem nos campos de concentração e de refugiados políticos de todo o mundo.”

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Sumário

Naomi

Treblinka

Ciência e Religião

As Guerras e o Pacifismo

A Amizade, o Amor e a Felicidade

Nada é para Sempre, exceto as Mudanças

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Naomi

“Las vicuñas de los Andes ecuatorianos eran muy grandes y ellas caminaron, caminaron y caminaron...”.

Foram com essas palavras, numa manhã de setembro de pouco frio, pois o sol brilhava em toda região andina do Equador, que Naomi com cinco anos de idade terminava de contar a sua primeira história para os coleguinhas da escola. Ela vestia um lindo uniforme de saia xadrez modelo escocesa, blusa branca e um pulôver azul marinho.

A partir daquele dia, tornou-se comum vê-la rodeada de alunos e, vez por outra, também de professores, ouvindo-a contar histórias durante os intervalos de aulas do Educandário SEK de Quito onde estudava.

Naomi, a menina que gostava de contar histórias, era filha única, tinha os cabelos não muito escuros, mais ondulados do que cacheados, olhos castanhos claros, uma beleza facial que associada a sua inteligência a destacava dentre as crianças da sua idade.

Desde muito cedo demonstrou interesse nos livros. Ainda não tinha completado oito anos de idade quando passou a preferir ouvir a sua mãe contar e ler histórias infantis do que brincar no playground do prédio com suas amiguinhas. Ela, diferente do que acontece com a maioria das crianças, não dormia enquanto a narrativa não chegasse ao final.

O seu fascínio pelos livros e histórias foi crescendo com o passar do tempo. Depois do colégio em Quito, ela continuou sendo ouvida por alunos, adolescentes, refugiados políticos e pacientes de instituições de diversas cidades do mundo onde estudou, morou e trabalhou.

Em suas palestras e conversas mundo afora, ela frequentemente dizia aos seus ouvintes que na vida é preciso ter curiosidade intelectual. O desejo de se obter conhecimento deve fazer parte de cada um de nós, em maior ou menor grau, de modo a permitir que tenhamos uma visão mais ampla do mundo, seja no segmento da ciência, da religião ou dos nossos sentimentos e emoções.

Quando seu pai, um executivo de uma multinacional da indústria automotiva, após anos trabalhando pelo mundo, se aposentou e voltou ao Rio de Janeiro, ela, então com vinte e dois anos e no último período do curso de graduação de Ciências Humanas na Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul, não regressou para o Brasil.

Depois de formada trabalhou como Agente Social responsável por propiciar segurança e bem-estar às crianças e adolescentes doentes, carentes, abandonados e refugiados. Dentre outras instituições não governamentais que prestam ajuda humanitária internacional, ela foi colaboradora voluntária na “Cruz Vermelha” e na “Organização Médicos sem Fronteiras”.

Naomi permaneceu no exterior por mais de sessenta e cinco anos, residindo em várias cidades de vinte e dois países. Ela tinha uma sede insaciável de dominar o idioma da nação em que estivesse residindo ou trabalhando, pois o que mais gostava de fazer era contar histórias. E para tal, era necessário conhecer a língua de seus ouvintes, o que a levou a falar fluentemente dez idiomas.

Ela sempre foi uma ótima narradora. Contou para cidadãos do mundo histórias divertidas, comoventes, fáceis, difíceis e até aquelas sem pé nem cabeça.

Até por volta dos seus onze anos de idade, Naomi narrava contos infantis que ouvia de sua mãe e também as que ela mesma inventava. Desta fase, as seguintes histórias foram publicadas em revistinhas infantis, custeadas por seus pais, e distribuídas gratuitamente às crianças: “As Aventuras do Zé, o grilo dourado”; “O Cãozinho do rabo azul”; “A Praia das galinhas”; “A Menina do patinete”; O Bambolê mágico e “A Cabra da vovó”.

Na adolescência, ela passou a contar histórias de sua autoria sobre castelos, reis, rainhas, príncipes, jovens apaixonados e outras. Antes de completar vinte e dois anos ela já tinha publicado dois livros para o público jovem. “Noites eternas”, o primeiro, teve toda a tiragem (dez mil exemplares) vendida. Já o seguinte, “A Princesa dos pobres”, foi distribuído somente aos parentes e aos diretores de alguns colégios.

Depois de formada e trabalhando em prol da ajuda humanitária, Naomi continuou contando histórias. Foi na fase madura, com base nas leituras e na experiência de vida, que ela escreveu uma série de artigos, alguns publicadas em diversos idiomas, sobre acontecimentos que, em épocas distintas, marcaram a sociedade humana, mas que nem sempre são comentados em salas de aulas.

Nos parágrafos seguintes serão apresentados alguns resumos e comentários sobre o que escreveu e contou Naomi.

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A Barbárie de Treblinka

Localizada a cerca de cem quilômetros a nordeste de Varsóvia, a pequena cidade de Treblinka tornou-se conhecida por ter abrigado nos seus arredores dois campos de concentração nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Um de trabalho forçado e o outro de extermínio, onde milhares de judeus foram cruelmente mortos em câmaras de gás.

Lá nada estava adaptado à vida, tudo estava moldado à morte. Todos os dias chegavam à estação da cidade até vinte mil pessoas vítimas do racismo nazista.

A maior parte do trabalho nos campos era realizada por cerca de oitocentos prisioneiros organizados em esquadrões especiais que descarregavam os trens, limpavam os vagões, supervisionavam os demais prisioneiros na tarefa de se despirem, conduziam os deportados às câmaras de gás, extraiam os dentes de ouro e cremavam os corpos.

Por dia, segundo os depoimentos de fugitivos e poucos sobreviventes, aproximadamente quinze judeus, trabalhadores que incineravam os corpos, cometiam o suicídio.

Essa informação valida o que acreditava e divulgava Epicuro, filósofo grego do período helenístico, que “quando o sofrimento se torna insuportável a morte passa a ser uma solução”.

Somente naquele campo, a cada dia, dez mil seres humanos agonizavam e morriam sem estarem padecendo de doenças graves ou mesmo sabendo por que estavam sendo executados.

O abatedouro de Treblinka não era um campo comum, lá os nazistas construíram esteiras rolantes e organizaram a matança segundo os métodos de produção em série utilizados nas grandes indústrias da época. O processo utilizado era composto de fases distintas com o objetivo de retirar metodicamente das pessoas tudo a que tinham conquistado na vida.

Inicialmente, os “matadores” tiravam do indivíduo a liberdade, a casa e seus pertences. Em seguida, nas proximidades do portão de entrada do campo, eles separavam as mães dos filhos, as esposas dos maridos e antes da execução os mandavam retirar as roupas.

Sabe-se que uma pessoa nua perde a força de resistir, não mais luta contra o opositor, aceita o que está acontecendo como se fosse o seu destino. Junto com as roupas perde-se também o instinto vital.

Em um de seus textos sobre este campo de concentração, Vassili Grossman, responsável por alguns dos mais impactantes relatos sobre o Holocausto, escreveu algo mais ou menos assim: “Nem Dante viu um quadro tal como esse de Treblinka em seu inferno. E isso é infinitamente duro até de ler. Espero que o leitor entenda que escrever a respeito não é menos difícil”.

Então para que escrever e contar tudo isso?

O próprio Grossman respondeu em seu artigo: “O dever do escritor é contar a terrível verdade e o dever do leitor é conhecê-la. Não basta falar da responsabilidade da Alemanha com relação ao que ocorreu. É necessário falar da responsabilidade de todos os povos e de cada cidadão em relação ao futuro. Hoje, cada pessoa deve responder para si mesma a seguinte pergunta: O que deu origem ao racismo, o que é necessário fazer para que a barbárie de Treblinka jamais volte a acontecer no mundo?”.

Não esgotei o assunto escrito por Naomi sobre um dos mais cruéis campos de concentração mantido pelos nazistas durante a ocupação da Polônia, apresentei um resumo sobre as suas atrocidades.

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A Religião e a Ciência

Antes de apresentar o que Naomi deixou em seus escritos e palestras sobre a religião e a ciência, eu gostaria de ressaltar que, como pude constatar, aqui no Brasil, ainda há assuntos que raramente são discutidos no mundo acadêmico, tais como racismo, transgeneridade, homossexualidade, dentre outros. E, no meu entendimento, a religiosidade também pode ser incluída nesse grupo, pois é uma questão tão complexa que a maioria das pessoas que conheço aceita a religião mesmo sem conhecer no que ela consiste na sua essência.

Naomi, quando falava sobre a religiosidade existente na maioria das pessoas, iniciava a conversa com a seguinte pergunta: “Qual foi a motivação que levou o homem a criar e a desenvolver a religião?”.

E sem esperar uma resposta sequer dos ouvintes, ela iniciava a sua apresentação respondendo a sua própria pergunta:

“Há opiniões diferentes sobre o surgimento da religião. Uma delas afirma que ela originou-se da possibilidade de o indivíduo se comunicar com ancestrais falecidos. Outra, cita o medo do ser humano com relação às forças da natureza. E uma terceira, menciona que a raiz da religião está relacionada ao animismo, ou seja, a espiritualização das diversas manifestações da natureza, a crença de que todas as formas possuem alma e agem intencionalmente”.

“Com o passar do tempo, a ciência demonstrou que os parentes falecidos não se sensibilizam com vida dos vivos, que as forças da natureza têm explicações naturais e que o animismo não existe.”

Ela concluía o primeiro questionamento, destacando que na época científica desapareceram os porquês das necessidades de uma religião e as decorrentes limitações que as pessoas costumavam impor a si mesmo devido às crenças religiosas.

E utilizando a técnica de apresentar um questionamento e seguidamente responder com seus próprios argumentos, Naomi fazia a sua apresentação e redigia seus textos sobre um dos temas mais complexo da sociedade humana.

“A religião e a ciência, apesar de terem desfrutado de uma longa amizade por séculos, começaram a romper o relacionamento a partir de Copérnico e Galileu. Mas o antagonismo entre os dois campos foi de fato concretizado com as teorias de Charles Darwin, divulgadas no livro “A Origem das Espécies””.

“O pensamento de que os segmentos religioso e científico estão em lados opostos foi fortalecido em determinadas camadas sociais por causa da divergência entre o criacionismo, descrito no texto bíblico da Gênesis, e o evolucionismo, entendimento cientifico de Darwin, que leva o indivíduo achar que é preciso tomar uma decisão tal como: se eu acredito e aceito a Bíblia, portanto não posso anuir com a teoria do evolucionismo e vice-versa”.

“Nos tempos atuais, o conflito seria a única opção no relacionamento entre a ciência e a religião ou há outro modo de se ver essa questão?”.

“Sim, há. Por exemplo, a posição chamada de “Independência” é uma apreciação pacificadora desse conflito e muito popular nos meios acadêmicos, teológicos e científicos. Ela declara que ciência e religião são de âmbitos soberanos, estão em setores separados, estanques. Portanto, não cabe falar em confronto, porque a ciência se desenvolve com propósitos impessoais, com bases na lógica, na coerência e na adequação experimental. Procura explicar dados concretos, que sob as mesmas condições são possíveis de serem reproduzidos, e responde aos questionamentos sobre “o como” a vida e seus fenômenos físicos e naturais acontecem. Já a religião, com objetivos pessoais, interpela as questões de nossas vidas relacionadas à culpa, ao perdão, à ansiedade, à plenitude, à confiança. Busca decifrar “o porquê” dos acontecimentos e a finalidade de nossas vidas”.

“E o que pensam os adeptos da posição denominada de “Diálogo””?

“Eles admitem que haja algumas semelhanças nos pressupostos, métodos e conceitos da ciência e da religião, pois como sabemos, há questões fundamentais que, até hoje, não foram respondidas, tais como: de que maneira funciona a relação da mente com o corpo? O que havia antes do Big-Bang? Como era medido o tempo antes do Big-Bang?

É nesse contexto que, segundo os adeptos desta posição, começa a surgir à possibilidade de diálogo entre cientistas e teólogos”.

Antes de encerrar esse tópico, apresentarei algumas considerações resumidas por Naomi com base nas leituras das obras de Liev Tolstoi, um de seus autores preferidos e que ela praticamente “devorou” seus livros.

Tolstoi, contrariando os cientistas do seu tempo que consideravam a religião como desnecessária, acreditava e divulgava que na sociedade humana, nem um “homem racional” poderia viver sem as suas crenças porque somente a fé dar-lhe-ia a necessária orientação sobre o que fazer nos seus dias presentes e futuros.

Segundo ele, os animais orientam seus comportamentos, sem indecisões e sempre da mesma maneira, considerando as consequências diretas desses próprios comportamentos.

Por exemplo, o esquilo é esganado por comida e sabe que precisa estocar alimentos. Assim, ele sai diariamente em busca de nozes e de sementes e as levam à toca, porque no inverno o alimento recolhido será necessário para si e seus familiares. Além dessas considerações ele nada sabe e pode saber.

Mas, de acordo com o pensamento do romancista russo, nós não agimos assim, com essa simplicidade. A capacidade cognitiva do animal é delimitada ao que chamamos de instinto, ao passo que a capacidade cognitiva elementar do ser humano é a razão.

Ao esquilo, que recolhe sementes para o inverno, não ocorre dúvida do tipo: será bom ou ruim recolhê-las? Mas uma pessoa, ao fazer uma colheita de frutas, não pode deixar de pensar, dentre outras centenas de possibilidades, se ela não estaria arruinando o desenvolvimento natural daquele pomar.

O ser humano, nas suas escolhas e afazeres diários, inter-relaciona-se não só com os fenômenos infinitamente pequenos da vida que podem afetar seu comportamento, mas com todo o mundo infinito no tempo e no espaço. O estabelecimento dessa relação do indivíduo com o todo, do qual ele se sente parte e no qual busca orientação para sua conduta, é o que Liev Tolstoi chamava de religião e o considerava como inseparável do “homem racional”.

“Mas será que existe uma verdadeira religião? Perguntava Tolstoi”.

Como divulgados em algumas de suas obras traduzidas para o português, ele mesmo respondia que a verdadeira religião era aquela que trazia em suas raízes os valores de que “Deus existe, é onipresente e é o princípio de tudo”; que “no ser humano há uma partícula do preceito divino que poderá ser fortalecida ou enfraquecida, dependendo de como a pessoa conduz a própria vida”, e “que para fortalecer essa partícula, o ser humano deve conter suas paixões e cultivar dentro de si o amor, fazendo aos outros, aquilo que queremos que façam a nós”.

As Guerras e o Pacifismo...

E com apenas dois pequenos questionamentos, um de Dan e outro de Caco, e um rápido intervalo para descansar a garganta e fazer xixi, Naira concluiu a leitura dos sete capítulos.

— Espero que tenham gostado — ela disse com um tom de voz emotivo e segurando o livro com as duas mãos junto ao peito.

— Excelente! — exclamou o professor enquanto aplaudia.

— Muito bom mesmo — Anastasya, também aplaudindo, falou.

— Eu gostei bastante, mas posso sugerir uma coisa? — disse Caco, ao mesmo tempo em que olhava para o relógio no pulso.

— Claro que sim. O livro é nosso — respondeu imediatamente a afrodescendente.

Em pé junto à porta e com a mão na barriga, Caco complementou:

— Já são quase duas da tarde. Podemos continuar o papo no Ráscal. Tô quase morrendo de inanição.

Durante o almoço daquela última quinta-feira de novembro os quatros amigos só paravam de falar de Naomi, a protagonista do livro, para elogiar a comida da cozinha mediterrânea com influência italiana, mas rica nos ingredientes nacionais, servida naquele restaurante, o preferido de Dan.

Quando o garçom conseguiu interromper o papo e perguntou o que eles gostariam de beber, o professor pediu-o que trouxesse a carta de vinhos. Depois de escolher o tinto chileno “Falernia Carménere” e aguardar que todos fossem servidos, ele levantou-se e propôs um brinde ao livro e falou:

— Desde outubro, quando conhecemos Naira em Quito, estamos juntos neste trabalho literário que nos permitiu encontros prazerosos. Mesmo sabendo que, a partir de hoje, não mais nos veremos com a mesma frequência das últimas semanas, pois temos tarefas e responsabilidades profissionais distintas, gostaria de manter o nosso grupo ativo no WhatsApp e, dentro das disponibilidades de cada um, manter nossos encontros. Talvez uma vez por mês, para trocarmos ideias sobre temas atuais, não só de literatura, mas de outros segmentos culturais. O que vocês acham?

— Sensacional, eu topo — respondeu Caco sem nada refletir.

E após mastigar mais um pedaço do salmão grelhado, sentindo o tempero múltiplo de ervas e alcaparras, repetiu três vezes: “Hum! Isso é muito bom”.

Anastasya, ainda com a taça de vinho na mão e com um leve sorriso, perguntou ao colega:

— O que é muito bom? Manter os nossos encontros ou o peixe que você está comendo?

— Os dois — Caco respondeu. E, num tom de brincadeira, concluiu:

— Encontros seguidos de almoço aqui neste restaurante, claro oferecido pelo nosso professor e orientador. Certo, Dan?

— Certo. Almoço por minha conta — Dan respondeu.

— Agora sim, perfeito! Posso participar até março do ano que vem, porque em abril, se o Caco não esqueceu, seguiremos para o intercâmbio no Equador — disse Anastasya.

— Vamos então ouvir a opinião da nossa autora. O que você acha, Naira? — perguntou o professor assim que sentou e repousou a taça de vinho ao lado do prato.

Naira Doli, por desconhecer a simpatia dos brasileiros, mais uma vez admirou-se com o entusiasmo de seus amigos e o modo caloroso que estava sendo tratada por eles.

Ela demorou um tantinho a responder, permaneceu em pé junto à cadeira retribuindo o olhar carinhoso dos amigos que já estavam sentados. Em seguida, falou pausadamente:

— Cada um de nós vive no seu mundo, temos projetos de vida não semelhantes, estamos em faixas etárias distintas, mas aceito de bom agrado a sugestão de continuarmos nos encontrando. Aproveito para mais uma vez agradecer, ao Caco, à Anastasya e ao Dan pela valiosa contribuição que deram à concretização de “A menina que contava histórias”.

— Querida Naira, as palavras e as ideias estavam todas no livro. Nós apenas sugerimos pequenas arrumações, fomos simplesmente a cola que juntou os pedaços, não inventamos nada. A obra foi toda criada por você, curta-a — respondeu o professor.

— Está bem, Dan...

Interrompendo a conversa entre Naira e o professor, Caco perguntou:

— Quando será o lançamento do livro?

— Querido Caco, a noite de autógrafos acontecerá no dia dezessete de dezembro, às dezenove horas, lá no Instituto Naomi. Data em que minha mãe completará noventa anos, toda a minha família estará reunida. Em breve os convites serão encaminhados, e eu conto com a presença de vocês.

— Você irá. Não irá, Caco?

— Por que não participaria deste megaevento? Eu estarei lá, chova ou faça sol.

— Sim, estaremos lá — confirmou Dan, olhando primeiro para Anastasya, que estava com o polegar da mão direita na posição de afirmativo, e depois para Naira, que se ajeitava para sentar-se no seu lugar.

Enquanto saboreavam o “petit gateau” com sorvete de creme e calda de frutas vermelhas, que o garçom havia recomendado como uma das melhores sobremesas servidas, Naira conversava animadamente com o seu editor, respondendo em viva voz no celular, de modo a compartilhar o seu contentamento com os amigos à mesa, os questionamentos sobre a impressão e lançamento do seu primeiro livro.

Na porta de saída do shopping, antes de se despedirem, eles combinaram que o novo encontro do grupo ficaria por conta do evento do dia dezessete.

Nas semanas seguintes, a conversa no WhatsApp praticamente ficou restrita à Naira e ao professor que, devido a sua experiência, continuou ajudando-a, junto à editora, nos assuntos relacionados aos processos de impressão da obra.

Quando o tão esperado dia por Naira Doli chegou, ela já tinha organizado todos os detalhes, tanto para a comemoração do nonagésimo aniversário de Naomi, como também os da cerimônia de lançamento do livro até então surpresa, não só para sua mãe, mas para todos os convidados inclusive o irmão Paul, a cunhada Emily e a sobrinha Keli.

Naquele dezessete de dezembro, não diferente dos últimos anos, a movimentação das pessoas nas ruas devido às compras de Natal, o número de banhistas voltando das praias e a quantidade de turistas na cidade tornava o trânsito lento na zona sul do Rio. Mas, apesar desse contratempo, dez minutos antes da hora prevista, todos os cento e vinte oito convidados já estavam no salão de cerimônias do Instituto Naomi.

No momento em que, sem muita formalidade, Naira, ao lado do irmão Paul e da cunhada Emily, anunciou à presença de Naomi, Presidente do Instituto e aniversariante, os presentes, a maioria representante de instituições não governamentais ligadas às atividades de ajuda humanitária, instintivamente cessaram a conversa e a aplaudiram.

Trajando um elegante vestido mídi, num azul cobalto, que combinava com os brincos e a pulseira, Naomi, caminhando naturalmente ao lado da neta Keli foi recebida com entusiasmo por todos os convidados.

O evento ocorreu como planejado, foi servido espumante “Cava Freixenet Cordón Negro Brut”, petit four e sequilhos. Instantes antes dos “parabéns para você”, Paul fez um pequeno pronunciamento em homenagem à mãe, ressaltando a importância do seu trabalho junto aos refugiados em diversos países.

Depois do bolo, Naira anunciou o seu presente especial, o livro “A menina que contava histórias”, e leu pausadamente o primeiro capítulo intitulado “Naomi”.

Todos ficaram encantados com a surpresa e com a qualidade do texto que a autora havia lido num português perfeito, apesar do sotaque inglês. A mãe, bastante emocionada, abraçada à filha, agradeceu a homenagem e, por quase quinze minutos, falou e foi ouvida atentamente por todos sobre o relevante papel das narrativas na vida das pessoas. Destacou que não faz muita diferença se a história chega ao conhecimento do indivíduo por meio da leitura ou se contada por alguém. Se inspirada ou não em fatos reais. O importante é que o conhecimento sempre será transmitido de geração a geração por meio dos textos, das conversas e das histórias narradas ou lidas.

— A despeito do que muitos possam pensar a ciência já evidenciou que o hábito da leitura e da escrita produz indivíduos mais inteligentes. Essa constatação, se não me falha a memória, foi resultado de uma pesquisa conduzida por um professor da Universidade de Toronto, no início dos anos noventa do século passado, cujo nome a minha idade já não me permite lembrar. O estudo analisou os efeitos da leitura no desenvolvimento da inteligência verbal das pessoas e concluiu que ler aumenta a capacidade de decodificação do cérebro, melhora as habilidades linguísticas e expõe leitores a conceitos que ajudam a construir o alicerce de seu conhecimento, ampliando a sua capacidade de encontrar soluções para os problemas — disse Naomi no seu modo carismático de se reportar às pessoas.

E, após beber um gole d’água e olhar carinhosamente para Keli e Naira que estavam ao seu lado, ela continuou falando:

— Segundo os pesquisadores de Toronto, os leitores de ficção conseguem elaborar raciocínios mais complexos do que os desenvolvidos por pessoas que não têm o hábito desse tipo de leitura, pois os textos ficcionistas adaptam o cérebro desses indivíduos a levarem em conta as nuances e as ambiguidades das questões que lhes são apresentadas.

Depois de uma pequena pausa para recuperar o fôlego, quando então a maioria dos presentes imaginou que Naomi estava encerrando sua fala, ela acrescentou.

— Há também alguns estudos que concluíram, com base em pesquisas realizadas com pessoas acima de cinquenta anos, que as que liam livros por no mínimo trinta minutos diários viviam em média vinte e três meses mais que as que não liam. Ou seja, a leitura contribui com a longevidade — e com um leve sorriso de felicidade no rosto, ela concluiu:

— Sou uma prova viva desse estudo.

Ao final de seu pronunciamento, a aniversariante foi mais uma vez aplaudida entusiasticamente por todos os ouvintes.

Em seguida, Paul fez sinal para os garçons servirem mais uma taça de “Cava Freixenet” e, sem muita demora, propôs um brinde à “Menina” que ao completar noventa anos ainda gostava de “contar histórias”.

Apesar do cansaço natural de uma nonagenária, Naomi permaneceu em pé junto à porta de saída do salão, ao lado da filha e da neta, se despedindo e agradecendo a presença de cada um dos convidados que por ali passava carregando um exemplar autografado do livro “A menina que contava histórias”.

Quando o professor e seus dois alunos estavam se aproximando da anfitriã, a queniana brasileira se adiantou e, ao lado do grupo olhando de frente para Naomi, disse:

— Mamãe, conforme lhe falei há alguns dias, esses são os meus três amigos que conheci no retorno da minha última viajem à Quito, a senhora lembra?

— Sim, querida. Claro que lembro, mas não me recordo os nomes.

— Esse é o professor Daniel, a jovem chama-se Anastasya e o bonitão ao meu lado é o Carlos Eduardo, ou melhor, Caco, como ele mesmo se apresenta às pessoas.

— Olá pessoal! Fico feliz em conhecê-los. Vocês são os primeiros amigos brasileiros de minha filha aos quais sou apresentada. Oh! Vejo que os três adquiriram “A menina que contava histórias”, isso é maravilhoso — e sem dar oportunidade para que alguém falasse, Naomi continuou:

— Como todos vocês, só hoje eu tomei conhecimento da existência desse livro. Mas, com base na leitura do primeiro capítulo realizada pela autora, deduzo que, apesar de a minha filha ter sido criada e educada na Inglaterra, totalmente afastada do nosso idioma, ela redigiu o texto num português impecável, com expressões atuais do nosso cotidiano. Acho que vocês irão gostar.

Naira, interrompendo a conversa, disse:

— Mãe, por favor, escuta! Quando lhe falei dos meus amigos, acho que mencionei que estávamos desenvolvendo um trabalho aqui no Instituto. Certo?

— Sim, mas não entrou em maiores detalhes. Não sei em que vocês estão trabalhando. É algo que eu precise saber?

No exato momento em que Naira fez menção em responder, foi educadamente tolhida por Paul que avisou:

— Mãe, Naira, vamos embora? O táxi já chegou.

— Um momento, filho. — E, olhado para os amigos de Naira, ela disse:

— Que tal continuarmos o papo lá em casa? O café fica por conta da autora.

— Ótima ideia, mamãe — e, com um semblante de quem pede alguma coisa, Naira perguntou:

— Você aceita o convite, professor?

— Sim, adoraria continuar um pouco mais na companhia da senhora Naomi e ouvir suas histórias — disse Dan sem titubear.

— Caco, Anastasya, o que acham?

— Será uma boa oportunidade de conhecermos melhor a inspiradora do seu livro — respondeu, também sem hesitar, Anastasya enquanto Caco balançava a cabeça indicando que concordava com a colega.

Cerca de cinquenta minutos depois de saírem do Instituto, na sala do confortável apartamento do Flamengo, Naomi, sentada na poltrona “Frau” de couro bege, que desde a época de seus pais era mantida no mesmo canto ao lado duma enorme estante de livros, conversava entretidamente com Daniel, Caco e Anastasya sobre o campo de refugiados de Dadaab e também sobre Treblinka. Ela estava encantada com o interesse do professor e dos jovens em temas não muito discutidos entre os estudantes brasileiros.

Quando os ponteiros do relógio na parede indicaram nove da noite e o “cuculus canorus”, o pequeno pássaro entalhado em madeira que solitariamente há cerca de cento e cinquenta anos cumprimentava regulamente os entes daquela família, deu o ar de sua graça e repetiu nove vezes “cuco-cuco”, Naomi parou de falar e, fazendo menção de se levantar, aplaudiu silenciosamente o seu velho amigo. Amigo que ela conheceu do colo de sua avó quando ainda não tinha dois anos de idade.

— Quem já ouviu o relógio cuco tocar, seja em casa, na casa da avó ou daquele outro parente que mora longe, nunca esquece o seu som característico e o momento mágico do seu surgimento no poleiro — disse baixinho o professor Daniel voltado para os jovens Anastasya e Caco enquanto Naomi reverenciava o seu amiguinho de madeira.

— Pronto! Pessoal, aqui está o “Juan Valdez” — disse Naira, entrando na sala e colocando a bandeja com bule e cinco xícaras de porcelana sobre a mesa próxima à porta da varanda.

Enquanto saboreavam o café colombiano, o preferido da família, Naomi ouvia atentamente o relato da filha de como os seus amigos participaram da revisão do livro.

No momento em que a filha parou de falar, por alguns segundos, e levou à boca a xícara de café, a mãe, se dirigindo ao grupo, disse:

— Ah! Então a autora recebeu uma ajuda para tornar o texto palatável aos leitores brasileiros. Ficou ótimo. Parabenizo a todos pelo excelente trabalho. Ao professor Daniel pela orientação dada ao grupo, ao Caco e à Anastasya pelas contribuições no uso de vocábulos do cotidiano das nossas cidades. E, em especial, à Naira pela iniciativa do empreendimento e também pela humildade de aceitar as sugestões de mudanças em seus escritos, o que não é muito comum no mundo literário dos autores.

A conversa sobre os temas abordados no livro fluiu animadamente com a participação de todos, exceto da família de Paul que aproveitou aquela linda noite de um verão ameno no Rio para visitar uns amigos em Ipanema.

Daniel, sempre que havia uma oportunidade, levava o assunto para as questões relacionadas às guerras, à violência e às perseguições que levam anualmente milhões de indivíduos a se deslocarem, cruzando fronteiras, e tornando-se refugiados.

Quando ele disse à Naomi que, de acordo com o último relatório divulgado pela Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), esse número chegou a vinte e cinco milhões. Ela não se surpreendeu com o enorme crescimento, como frisou o professor, apenas respondeu:

— Caro Dan, em termos práticos, as políticas e as ações adotadas em todo o mundo por instituições ou países, em prol de combater as causas que levam essas pessoas a deixarem suas comunidades em busca de uma vida normal em outras cidades, ainda são inócuas. E, pelo que pude observar durante a minha estada em vários campos de refugiados, penso que permanecerão inócuas por muito tempo. Ou talvez para sempre, pois na sociedade humana ainda existem muitos preconceitos sociais, raciais e doutrinas religiosas equivocadas.

Animada com a conversa e recordando o seu tempo de palestrante, Naomi continuou falando:

— Recentemente eu li, não lembro se num livro ou numa revista, que de acordo com o Nobel de Economia de 2015, o escocês naturalizado americano Angus Deaton, “hoje vivemos melhor do que em qualquer outro momento da história da humanidade”. Mas, devido, dentre outros fatores, ao nacionalismo exacerbado de muitos países e a falta de políticas voltadas à assistência humanitária das instituições internacionais, essa prosperidade não atinge de maneira igualitária todas as comunidades do mundo — assim a aniversariante concluiu o papo com Dan.

Anastasya e Caco fizeram diversas perguntas sobre Treblinka. Além de responder os questionamentos e comentar sofrimentos inimagináveis ocorridos naquele campo da Polônia, Naomi recomendou aos jovens a leitura das obras de Chil Meyer Rajchman, autor polonês, e claro também as de Vassili Grossman, um ucraniano que se tornou um proeminente escritor e jornalista na era soviética.

Com o passar das horas, o cuco já havia repetido seu canto onze vezes, Naira e seus amigos perceberam que Naomi demonstrava cansaço e que já não estava mais participando ativamente da conversa.

— Mãe, os meus amigos já estão de saída. Dê um alô para eles e vamos para o quarto. Eu a acompanharei. A senhora teve um dia intenso — disse a filha, num tom carinhoso enquanto alisava os cabelos brancos de Naomi.

— Sim, querida, irei. Mas, antes de retirar-me, gostaria de agradecer o livro. Ele contará às gerações futuras as histórias que contei, tornando quase eterna a minha longevidade — e no mesmo tom carinhoso de Naomi, a mãe continuou falando.

— Naira, por favor, leia mais uma vez o primeiro capítulo do seu livro — pediu a mãe, entregando-a o exemplar que havia recebido naquela noite.

Após os amigos se aproximarem da poltrona bege, Naira abriu o livro, tossiu levemente para aliviar a garganta e, olhando carinhosamente à mãe, sem nada ler, começou a recitar:

“Las vicuñas de los Andes ecuatorianos eran muy grandes y ellas caminaron, caminaron y caminaron...”.

“Foram com essas palavras, numa manhã de setembro de pouco frio, pois o sol brilhava em toda região andina do Equador, que Naomi com cinco anos de idade terminava de contar a sua primeira história para os coleguinhas da escola. Ela vestia um lindo uniforme de saia xadrez modelo escocesa, blusa branca e um pulôver azul marinho...”.

E, aos noventa anos, a Menina que contava histórias, sentada confortavelmente na poltrona que fora de seu pai, de olhos fechados, deixou seus pensamentos levá-la de volta ao início de sua vida, nos tempos do Educandário SEK de Quito onde tinha sido alfabetizada e incentivada a narrar fábulas para seus coleguinhas de classe, com um semblante de pura felicidade, murmurava para si mesma:

— Las vicuñas de los Andes ecuatorianos...

Sérgio Coutinho
Enviado por Sérgio Coutinho em 15/10/2018
Reeditado em 09/07/2019
Código do texto: T6476859
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