Homem comum

Acordo todos os dias exatamente as seis da manhã. Assim que abro meus olhos a primeira coisa que enxergo é meu teto branco sem nenhuma mancha ou teia de aranha. Minha primeira reação física é tentar limpar a vertigem que toma conta do meu campo de visão passando as mãos incessantemente sobre os olhos. Tento resolver os meus problemas com o mínimo de esforço possível. Não gosto de ir ao hospital.

Sou um homem comum.

Quando estou pronto para me levantar da cama o primeiro dos meus pés a tocar o chão é o direito, sou supersticioso, e procuro não me meter com a má-sorte. Todas as vezes não calço chinelos e descalço vou até o banheiro, onde escovo os dentes com a pasta da marca que uso desde os 11 anos. O desjejum também é sempre o mesmo, omelete e café preto. Afinal, você sabe, sou apenas um homem comum.

A semana inteira sento no mesmo assento do ônibus: segunda fileira após a catraca, banco da janela, lado oposto do motorista. Todos os dias como uma rosquinha com cobertura de chocolate granulado, na padaria que fica no caminho do trabalho. Nunca peço de outro sabor.

No meu emprego todas as manhãs fico encarregado de ligar para clientes em potencial e oferecer o “melhor toner de impressoras do Brasil”. Ele rende até 1.000 impressões sem precisar de troca. É incrível. O emprego perfeito para mim. Sempre, ou quase sempre, recebo como resposta à minha oferta a seguinte frase ou alguma de suas variações: “não tenho interesses em toners, por favor, não volte a ligar”. E, ignorando esses pedidos, retorno a ligar, dia após dia, afinal ninguém será capaz de a longo prazo ao “melhor toner de impressoras do Brasil”. Porque são todos homens e mulheres comuns.

A hora do almoço é sempre uma festa. Sento sozinho no restaurante e me sirvo sempre dos mesmos alimentos. Sou comum, não gosto de provar novas comidas. Arroz. Feijão. Linguiça. Batatas-fritas. Meu prato sempre pesa 500 gramas. E assim, vou ingerindo todos os dias, a mesma quantidade e os mesmos nutrientes, sentindo o conforto de minhas escolhas já tomadas.

Às quatorze horas volto ao meu posto de trabalho. Me dirijo à minha baia, localizada no canto mais extremo do cubículo que chamamos de escritório, e sento em minha cadeira preta que tem até rodinhas. E nessa parte do serviço, eu que sou agraciado com as ligações de clientes que por sorte consegui vender o bendito toner.

“Eu quero saber por que o toner não imprimiu as 1.000 páginas prometidas? ”.

“Vocês são uma fraude! ”

Escuto muito mais do que reclamações. Mas, deixarei os xingamentos de fora para evitar que o caro leitor se assombre com a infinidade de variações que uma pessoa pode ser ofendida simplesmente por fazer seu trabalho. Eu sou um homem comum. Hábitos comuns, trabalho comum, vida comum.

Eu sou um homem comum.

Ao fim do dia refaço o caminho para casa. Mesmo lugar do ônibus quando vazio. Em pé em meio a multidão de corpos cansados e suados quando não tenho sorte. Sempre chego no meu ponto às 20h 30 min, e dali, sigo a pé até chegar em casa, todos os dias conto o número de passos que dou. Cento e doze ao total. Não piso nas linhas encruzilhadas do chão.

Ah! Infelizmente sou um homem comum.

Meus desejos são mensurados pelo ordinário. Em casa, faço minha última refeição, que é sempre sopa para evitar os pesadelos. Deito. Fechos os olhos e durmo um sono sem sonhos. Sou comum demais para sonhar.

Certo dia quando o despertador tocou pontualmente às 06h, abri os olhos e estranhamente não enxerguei meu habitual teto branco. Em seu lugar havia um telhado todo preto fosco me esperando acordar. Meu coração pulou uma batida e me desesperei. Me senti tão desnorteado que esqueci de minha vertigem costumeira e acabei levantando apressadamente e caindo no chão. Estatelado. Percebo que em decorrência do pequeno acidente, algo novo acontecera. Levantei com o pé esquerdo. Maldito azar que me acompanhará por todo o dia. Maldito telhado pintado! Quem fez isso comigo? Sou apenas um homem comum querendo viver em paz.

Quando consigo me erguer vou a banheiro e vejo que a pasta de dente acabou. Droga! Quebrando completamente minha rotina tenho de ir ao mercado comprar. Infelizmente, para meu azar saí vestindo pijamas sem que percebesse. E, por isso, pela primeira vez em anos as pessoas da rua, todas comuns, prestam atenção em mim. Claro que eu deveria estar parecendo alguém descompassado, mas me sinto menos comum.

- Bom dia Senhor, vejo que a noite foi proveitosa nem quis que terminasse! – A atendente menciona enquanto me passa o troco.

Uma nova sensação surge em mim, e em muito tempo sorrio pelo comentário inapropriado da caixa. Logo o sorriso se transforma em uma gargalhada que não consigo conter. Só paro de rir quando lágrimas me banham os olhos e minha respiração finalmente se acalma. Sou um homem extraordinário. Me sinto completamente fora de minha habitualidade e dos costumes. Estou trajando pijamas em plena luz do dia. Pijamas de combinação.

Já em casa me apresso e corro para o ponto de ônibus. Perdi meu ônibus. Desde que comecei na firma há quatro anos isso jamais aconteceu. Parece que não estou tendo tanto azar quanto imaginei, pois, logo em seguida passa outro com destino idêntico. Decido embarcar mesmo que o caminho seja mais longo.

O único lugar ocupado é o que costumo sentar. Todos os outros estão vazios a minha disposição. Será uma piada? Já que não posso prosseguir com minha rotina decido sentar na última cadeira, ao lado da janela.

Vinte minutos, contados em meu relógio analógico, depois, uma moça senta ao meu lado. Ela tem cheiro de morangos e baunilha.

Pelo canto do olho a observo. Seus grandes olhos castanhos estão atentos ao mundo inteiro ao seu redor. Ela se encanta com cada monumento e paisagem pela janela. Ouço seus suspiros baixos quando vê qualquer coisa diferente. Eu nunca havia olhado pela janela do ônibus. Só o que me importava era chegar ao meu destino. Nunca reparei no caminho.

- Eu nunca tinha vindo aqui! – Ela deixa escapar.

Minha primeira reação normalmente seria acenar com um sorriso contido e deixar para lá, mas hoje, estranhamente, após todos os episódios de azar, me sinto extraordinário.

- Você quer que eu te leve para conhecer a cidade? – Ofereço, indo contra todos os meus instintos.

Um sorriso ilumina o rosto da mulher e percebo então que ela é verdadeiramente extraordinária. Seus olhos exprimem sinceridade, medo e todo um mundo de possibilidades.

- Seria extraordinário que me levasse.

Por fim, acabo de descobrir.

Sou um homem extraordinário.

b bezerra
Enviado por b bezerra em 08/08/2018
Reeditado em 08/08/2018
Código do texto: T6412953
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