Ziguezagueando 17

Queria fazer aquilo um dia. Sim. Jovita sempre teve no juízo aquela vontade ofuscada, mantida no íntimo, irrealizada, sem brecha para ação, de lutar por alguma causa, a que fosse de todos, fora do comer e beber. Gostaria de ser tomada da indignação, do modismo da insatisfação com tudo, governo, vida, pobreza de cultura, decadência da ética e da educação, da ausência de referência moral para o cidadão ter motivo para atender a algum ideal, que desmantela a geração e põe em risco a sobrevivência e manutenção da raça rumo ao melhor.

A cultura do medo, da violência, tinha vencido a pequena mulher, somente vivia por assistir, mansa e pacificamente, por pura imposição da avalanche cruel e nefasta da destruição programada, a do declínio da aptidão do homem para o bem, o giro incessante, profano e cruel que circula a cabeça do mortal todo dia, tinha anestesiado a vontade para o agir de Jovita.

Como abelha na colmeia, formiga no formigueiro, urso na caça, pinquim imperador na busca de comida para o filhote, para economia e manutenção de força para ida, Jovita tinha escolhido o único e indeclinável caminho, o da sobrevivência, sua, da filha e da mãe.

Imagina!ter ímpeto para sair às ruas e gritar, esbravejar com a multidão em favor de algum direito que valesse a pena em prol do novo, do melhor, mesmo que fosse dos direitos dos animais de estimação?

Perder tempo com protestos e indignações, não era a prioridade de Jovita,a mente, em tempos idos, tinha sido testada no inferno, este do tanta coisa errada, além do amontoado de carga que levava sem culpa, aquele de aguentar calada a vida, e ter ainda que gerar um tipo de satisfação para o ir trabalhar todos os dias.

Não assistia aos jornais mais, resolveu vendar os olhos para os defeitos do mundo

Mas quando ouviu o grito de guerra do grupo dizendo: Praia limpa, já! Praia limpa, já! Jovita não soube se foi a intimidade que criou com o recém conhecido, por estar conversando de assuntos insolúveis, botando sal em carne podre, seus e dele, ou devido a fragilidade de argumentos, e a nudez de alma, sua e de Hugo, que a conduziu a ficar também sem algumas cascas da alma. Se revelando.

Jovita levantou e disse para Hugo: Não posso resistir, vamos entrar na multidão e seguir o cortejo? Sempre quis fazer isto, nunca tive tempo, nem coragem, vamos?

Hugo quis suspeitar que a moça poderia estar tendo algum surto, levou a mão na carteira, deixou o valor da comida e mais um pouco embaixo do copo, saiu em disparate atrás de Jovita.

Era muita gente, usavam cornetas, bandeirinhas, fogos de artifício; todos com roupas e saídas de praia. Hugo viu que teria trabalho, não enxergava mais Jovita. Somente doideira de gente que queria chamar a atenção para a causa,# Praia Limpa.

Sentiu que a consciência daquele grupo era gigantesca, passou ter vontade de gritar também, pedir solução. Afinal, tinha andado a beira praia nos dias que estava na cidade, e viu de tudo na areia; fezes de animal, até de gente, latinhas de refrigerante e cerveja, aves doentes comendo restos de comida, óleo diesel em meio a água do mar. Uma judiação.

Entrou em transe, caiu na frequência, gritava, tirou até a camisa, amarrou na cintura, jogou o sapato longe, dobrou as calças, esqueceu de Jovita. Depois de tanto manifesto, teve um grupo de quatro jovens, que estavam entre os manifestantes, um pouco mais malucos que ele na ocasião, pegou-o pelos braços, tinham chegado na orla. Passaram a lança-lo para o alto.

Jovita, sentada, exausta na areia, esquecida inclusive de que tinha estado com Hugo, olha para a pequena multidão, um pequeno aglomerado que via longe, que estava se dispersando. Era mais de seis da tarde, quando Jovita, como que arrebatada, percebe um homem sendo jogado para o alto, como criança no pula-pula.

Jovita acordou, o tico e teco trabalhou, era Hugo. Será que estava sendo machucado? Levante? Saiu correndo. Nestas alturas, somente de sutiã, calcinha, e descalça. O cabelo, amarrado todo para cima, com o “ embornal de couro” dependurado, como Hugo, tinha sido contaminada pelo frenesi da manifestação.

Márcia Maria Anaga(Direitos Autorais Reservados, publicado no site Recanto das Letras)

Márcia Maria Anaga
Enviado por Márcia Maria Anaga em 16/06/2018
Código do texto: T6366166
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.