A imagem dos sonhos III: Rindo sob a tinta derramada

Sentado no chão da sala, ainda com a roupa do trabalho, Fabrício demonstra alguns traços com um pincel numa folha de papel, enquanto isso segura com o braço esquerdo o pequeno João Marcelo inquieto a puxar-lhe os dedos da mão na tentativa de se livrar daquela imobilização. Do lado direito, Alícia observa-o e em seguida mergulha seu pincel cheio de tinta cor de rosa na tinta e vermelha, com a concentração claramente expressa em seu rosto, dá suaves batidas e longos deslizes no papel à sua frente. Fabrício observa atentamente "Isso... Muito bem, querida" e sugere a tinta marrom, ela responde firmemente um "Nããão", ele sorri e deixa escapar o Marcelinho, que se apressa em aproveitar a liberdade.

— Deixe-me ver... São flores? Pergunta, Fabrício.

— Sim, papai. Iguais aquelas da casa da vovó Carmem!

— Hum... Eu sabia!

— Aqui têm muitas flores, não contei elas, mas têm quatro chapéis de aniversário...

— Chapéus, querida.

— Chapéus?

— Sim.

— ... As flores, quatro chapÉus e um cachorro.

— Ah... Aqui são chapéus de festa de aniversário?

— Sim... De todos os meus aniversários, desde que eu nasci!

— Hum... Querida, não vejo o cachorro...

— Claro, papai! Você não comprou a tinta branca, ele é branco, olha aqui os olhos dele!

— Perfeitamente, filha! Da próxima vez eu vou comprar... Disse ele rindo sem se conter.

Passada a onda de riso olhou para o lado esquerdo e lembrou-se do filho menor e o enxergou do outro lado da mesinha perto da irmã a enfiar cuidadosamente o dedo indicador no pote de tinta azul e libertar a imaginação na poltrona amarela.

— João Marcelo!!! Aí não pode!

Depois do grito o menino se desequilibrou e se agarrou no vestido branco de Alícia pra não cair e derrubou o pote de tinta em si mesmo, por sorte estava de fralda, a mamãe se irritaria ainda mais quando descobrisse que a tinta era própria para tecido e não para papel como papai pensava.

Depois de acalmar o menino e antes de tirar toda tinta espalhada, Fabrício respirou fundo olhou em volta e em questão de minutos observou Marcelinho retornar ao pote, agora quase sem tinta e balbuciar algumas palavras impossíveis de entender, mas que pareciam justificativa pra bagunça. Num instante de calma inexplicável ele pegou uma das câmeras (material de trabalho da esposa). "Você tem que pintar aqui, Marcelinho!", disse Alícia entregando uma folha de papel em branco pra ele, depois passou o pincel quase seco no papel repassando seus conhecimentos ao irmão mais novo, enquanto o mesmo olhava atentamente o que a irmã fazia, em sua inocência, já estava feliz com o novo aprendizado, então, olhou para o pai e simplesmente deu um sorriso imenso, com os olhos ainda marejados de lágrimas pelo susto e com o corpo coberto de tinta, quis dividir a alegria do momento com ele e ele se apressou em registrar.

Mesmo tendo custado a ele, uma reforma de poltrona, duas brigas, dois buquês de rosas brancas e sete pedidos de desculpas, Fabrício viu beleza única naquele simples quadro. Uma semana depois que a poltrona reformada chegou, deu de presente a Carla, sua esposa, três molduras que eternizaram "O dia em que a mamãe foi trabalhar e encontrou tudo azul". Ela, ao abrir o embrulho, não conseguiu enxergar nas fotos, nada além de sorriso, inocência, liberdade e aprendizado. Percebeu que não há maior prejuízo que o tempo perdido com sentimentos amargos, pôde aceitar a calmaria do marido e deu-lhe um demorado abraço.

Nota: "A imagem dos sonhos" é uma série de contos, veja entre meus textos na categoria contos, para ver os anteriores.