O Governador das Gerais

Eu era motivo de orgulho para meus pais, quando o quesito “Notas na Escola” era colocado em alguma conversa.

Notas altas em todas as matérias, desde o Grupo Escolar Olegário Maciel, passando pela Escola Estadual José Bonifácio, com apenas uma média perdida, em História, em uma das séries ginasiais, do Colégio do Sindicato dos Bancários.

Mas essa média perdida posso explicar e justificar. Não devia valer no meu currículo. Injustiça total! Quando me lembro, não sei se me envergonho ou se dou risadas.

A mancha curricular tem de ser explicada desde a raiz, para não deixar sombra de dúvida sobre a minha inocência no caso.

Tudo se inicia na rua da antiga casa. As ruas do bairro onde eu morava eram nossos computadores quando crianças. Havia um “on line” misterioso, onde todos nós sabíamos quando tinha alguém procurando alguém pra brincar. Bastava colocar o nariz para fora do portão, como uma chamada no “skype”, e apareciam crianças de todos os lados, a inventar e incentivar brincadeiras, chegando a varar o dia ia entrando a noite, em época de férias.

Nas manhãs livres, em dias de aulas, após os Deveres de Casa, tínhamos também alguns momentos de folga para extravasar e gastar as energias.

Na época do ocorrido eu morava no Bairro Santa Inês e estudava no Colégio do Sindicato dos Bancários que ficava no Bairro Santa Tereza, tendo que pegar ônibus para ir ao Colégio, me dando um certo status com isso, por ser o único da turma a ter que “viajar” de ônibus para ir à escola.

Estava nas séries ginasiais, maravilhado pelo lugar em que estava estudando. Tinha um professor para cada matéria, o sinal do final de cada aula e dos intervalos era uma música que tocava em um enorme alto-falante, tinha interfone em todas salas, com os quais nos comunicávamos com a Diretoria e com as outras salas, e muitas outras novidades para quem havia saído de uma escola primária na qual uma das professoras se chamava Ermengarda e que diziam ainda usar palmatória, segundo o relato de alguns colegas do andar de baixo, onde ficavam as salas de alunos com menor rendimento.

O Diretor e a Coordenadora Pedagógica tinham, e colocavam em prática, ideias inovadoras. Cheguei a ser Diretor por um dia, ocupando a sala, mesa e cadeira. Participei, eleito pela sala, das informações e das decisões da direção da escola por um dia inteirinho.

É lógico que nesse dia não foi colocado nada de suma importância para ser decidido, mas deu pra sentir o gostinho e conhecer o outro lado da mesa.

Ainda vivíamos em um período de Ditadura Militar e toda aquela inovação e liberdade nos deu uma experiência ímpar de evolução, de pensamentos, visão do mundo e do ambiente escolar.

O Colégio ficava no bairro onde nasci e eu, como já disse, morava em outro e tinha de pegar ônibus para ir e vir, me permitindo caminhar pelas ruas do meu bairro natal, sempre variando o caminho, revendo e reencontrando pessoas.

Bom! A história da média perdida começa do outro lado da rua, bem em frente à casa onde eu morava com quase toda a minha família, meus pais, alguns irmãos, meu avô, a “Sanêga”, que se dizia filha de escravos e que ajudou meus avós a criarem minha mãe e meus tios, e a minha tia Hedy, irmã mais nova da minha mãe, portadora de Síndrome de Down.

Se a rua era nosso computador posso garantir que aquela casa era meu “XBox” particular, onde me deliciava com todas as alternativas que ela me oferecia. Era uma casa enorme, que pertencia ao meu tio, de Goiânia, e na qual fomos morar para cuidar do meu avô, minha tia e companhia.

Tinha um jardim, uma varanda e uma garagem com tamanho suficiente para um bate bola, brincadeiras de tabuleiros, entre outras e até festinhas dançantes, com direito a amassos discretos, apertos nos cantos e umas mãozinhas teimosas. Era a malícia da inocência! Mal sabíamos o quê estávamos fazendo, mas era gostoso “pacas”.

Tinha um quintal, com um pé de ameixa, uma carpintaria, onde meu avô fazia de tudo em madeira como um verdadeiro artista, um enorme corredor na parte lateral, uma rampa ligando a casa à parte de baixo, uma casinha de cachorro e mais uma casa nos fundos. Um verdadeiro play-ground.

Quase todos na turma tinham a mesma idade, estavam na mesma série e participavam de todas as brincadeiras, desde os campinhos nos lotes vagos, às brincadeiras de rua e as quê esticávamos até a noite em alguma casa, com a permissão e a vigilância discreta dos pais.

A exceção na turma era um garoto que tinha bem mais idade que a média, porém tinha o corpo franzino, mal crescido para a idade. Por ser bem mais velho, inventava e encabeçava muitas das brincadeiras, sempre assumindo a liderança, organizando e tornando as coisas bem mais agradáveis. Aproveitávamos bem melhor o tempo.

Só que algumas brincadeiras podiam acabar mal, e foi aí que começou esta história.

Como já disse, brincávamos do outro lado da rua em frente a casa onde morava, sob o comando e a liderança do mais velho.

A brincadeira consistia em subir no muro da casa em frente e pular em um galho da árvore que ficava na calçada, se balançando, como um macaco, e depois se deixando cair de pé.

Seria um “barato total” se o muro não fosse muito alto, a árvore mais ainda e o galho mais grosso que meu corpo.

Ele era franzino, porém mais velho, mais experiente e muito mais “macaco” que qualquer um de nós, pois tinham os braços enormes e conseguia abraçar o grosso galho com destreza e facilidade.

Lá vai! Ele pulou, abraçou o galho e balançou, uma ou duas vezes, soltou as mãos e caiu de pé na rua. Era só aplausos e gritaria! Nóooooo! Putz! ...etc...!!!!

Se ele conseguiu, eu também consigo, pensei. Subi no muro, criei coragem e pulei. Segurei com destreza o galho, meu corpo continuou o movimento, balançando até que meus pés ficaram em uma posição acima da altura do galho.

O mundo acabou, ou melhor, acabou a pega das minhas mãos no galho (eu apenas agarrei o galho e não abracei, como o mais velho havia feito), e a lei da gravidade prevaleceu. Então eu caí, de pernas para o alto e a cabeça em direção ao chão, como em um mergulho.

O movimento do meu corpo foi giratório, eu estava literalmente de cabeça para baixo quando caí. Eu não era trapezista e, instintivamente, coloquei meus braços para impedir que batesse com a cabeça no chão.

Caí por cima do braço esquerdo, adrenalina nas alturas, nenhuma dor e um susto enorme. Quando tentei me levantar, apoiando em meu braço esquerdo, aí sim veio a dor. Olhei, minuciosamente toda a extensão do braço, desde a mão até o ombro, não deixando um milímetro sem observação.

Que loucura! Próximo ao pulso, parecia um “S” e a mão ficando sem movimento, fui subindo os olhos e não vi mais nada na parte da frente do braço, mas sentia algo cutucando bem acima do cotovelo. Era esquisito, parecia um dedo querendo sair na parte posterior do braço.

Primeira reação foi um grito:

- Mãeeeeeêêê! Quebrei o braço!

Segurei com a mão direita, me levantei sozinho, pois todos estavam aterrorizados com a cena, e atravessei a rua entrando em minha casa aos gritos, porém sem choro (ainda).

Minha mãe estava cozinhando e meu irmão mais velho estava costurando (ele tinha um ateliê em casa).

Ela ficou apavorada, já foi tirando o avental e pegando a bolsa, me abraçou dizendo que iríamos direto para o hospital.

Já o meu irmão, “metido a sabe tudo”, pediu que ela se acalmasse, pegou meu braço, segurando em cima do “S” e disse que havia só deslocado.

- Já vi isso na Marinha. É só dar um puxão que sara.

Aí o grito virou um berro, seguido de choro e de um palavrão, coisa que eu não me atreveria a falar, diante da nossa mãe, em qualquer outra circunstância.

O quê parecia ser um dedo cutucando de dentro pra fora, na parte posterior do braço, era o osso que quebrou em diagonal e queria sair. Com o puxão, do “sabichão”, o osso resolveu mudar de lado e rasgou, simplesmente, rasgou meu braço na parte frontal, lado oposto do cotovelo, esguichando sangue para todos os lados.

Aí minha mãe se acalmou e virou outra pessoa, calma e prática, ela pegou uma toalha, enrolou no local que sangrava e fomos os três pegar um ônibus para irmos ao hospital mais próximo, acreditando que lá tudo seria resolvido e voltaríamos rápido para casa.

- Não, minha senhora! Isso aí é fratura exposta. Não temos condições de cuidar disso, aqui neste hospital.

Foi o quê disse a enfermeira que nos atendeu com uma calma enervante, se limitando a colocar uma faixa, imobilizando o braço e estancando o sangramento.

Outro ônibus e fomos direto para a fábrica de fraldas do meu tio, um dos irmãos da mamãe, que tinha carro e saberia onde me levar, pois a coisa parecia feia. E era mesmo.

Ele me levou ao Hospital Belo Horizonte, que ficava em uma grande avenida da cidade, próximo à antiga TV Itacolomi e em frente a famosa Zona da Zezé.

Lembro como se fosse ontem, quando fui levado para uma sala cheia de pessoas machucadas sendo socorridas, onde me trataram com prioridade, devido à gravidade do ferimento e à minha idade. Mulheres e crianças primeiro! Isso ainda valia naquela época.

Ao meu lado tinha um homem que parecia ter se acidentado com um pedaço de ferro no chão. Seu pé estava com a lateral toda cortada e a enfermeira disse que iria doer um pouco a picada da agulha de anestesia local. Quando a moça enfiou a agulha e começou a aplicar, todo o líquido começou a esguichar pela ferida do pé dele. Todos nós, inclusive o ferido, começamos a rir e não parecia ser tão trágico tudo aquilo. A enfermeira mudou o local da picada e continuou o procedimento, sob minha observação curiosa. Nem em filmes tinha visto tais coisas.

O meu caso era diferente e não foi nada divertido. A enfermeira que me atendeu chamou um médico, às pressas, que já foi logo dizendo que o caso era de cirurgia.

Não foi nada divertido mesmo. Desde a hora que machuquei, próximo ao horário do almoço, depois de dois passeios de ônibus e uma volta de carro com meu tio, já estávamos no fim da tarde. A adrenalina abaixou e a dor começou a tomar conta. Lembrei da anestesia dada há pouco no moço do pé machucado. Depois, só me lembro da minha anestesia, das palavras carinhosas daquela enfermeira maravilhosa e eu acordando, já noite, com um gesso que ia do ombro até a mão. Tinha um paciente na cama vizinha escutando um jogo no rádio de pilha e uma vontade imensa de fazer xixi.

Quis levantar, ir ao banheiro, uma outra enfermeira apareceu e me ajudou, me conduzindo depois para a cama, onde apaguei rapidamente.

Na manhã seguinte acordei com a voz doce da minha mãe, já me convidando para irmos embora, pois o médico havia me liberado.

Com isso foi um, dois, ou três dias sem ira à aula, chegando o fim de semana sem saber nada das matérias.

No sábado peguei um ônibus e fui à casa de um colega que ficava no mesmo bairro do colégio. Era o “Tó” (Antônio), um cara superengraçado e inteligente, com o qual me identificava e sabia que podia contar.

Contei toda a aventura do braço quebrado, rimos um bocado e ele me passou as matérias daqueles dias.

Tinha um questionário de História, que o professor Ivanir havia passado, que já copiei com todas as respostas pois tinha muita matéria para estudar ainda.

Fui para casa feliz da vida e com o dever e os deveres cumpridos, sem ao menos conferir a matéria com as respostas prontas, copiadas do caderno do colega.

Tínhamos aulas de História duas vezes por semana, sendo uma na segunda-feira e outra na quinta, e eu adorava essa aula, pela matéria em si e pelo professor, que tinha um jeito todo especial de explicar e era muito engraçado também.

Agora narro, com profunda dor no coração (rsrsrs), os momentos dos fatos que ocasionaram a perda de média e a minha expulsão da sala de aula, sem direito à defesa, sumariamente.

Era segunda-feira, a primeira aula era de história e, após narrar todo o evento do braço quebrado para o professor e colegas, fomos às matérias.

O professor já iniciou com aquele questionário que copiei. Ele fazia uma das perguntas e quem soubesse era para levantar o braço e responder.

Corria tudo bem, todas as respostas que copiei do “Tó” estavam corretas, quando o Ivanir fez a fatídica pergunta:

- Quem foi nomeado Governador das Gerais no tempo das Capitanias Hereditárias?

Olhei para o caderno, a resposta estava lá, clara e fácil de responder, mas eu havia ficado quieto até então, devido ao fato de não ter assistido às aulas e ter copiado tudo.

Ninguém levantou o braço, nem o “Tó”, todos quietos, sem esboçar um movimento.

Nem pensei duas vezes, essa eu respondo.

Quando levantei o braço pude notar que o autor das respostas que copiei acenava negativamente para mim, mas a resposta estava ali. Por quê não responder?

- Quem foi nomeado Governador das Gerais no tempo das Capitanias Hereditárias? Pode responder.

Repetiu o professor naturalmente, com toda a sala esperando e o “Tó” acenando mais ainda.

Então lá vai a resposta. Enchi a boca para falar, na certeza de ser o único, além do meu colega, a saber tal questão.

- Valfrido Canavieira.

Pude ver o colega abaixando a cabeça na carteira, toda a sala a gargalhar, em uma balburdia de feira, e o meu querido e admirável professor, engraçado e bem-humorado, com seu enorme bigode, de cara bem fechada, mas bem fechada mesmo, com o braço esticado e o dedo indicador apontando para a porta, dizendo as palavras que nunca esquecerei (até para isso ele era engraçado):

- Ra, re, ri, ró, rua! Direto para a sala do Diretor! E só volta para minha próxima aula após a advertência e o consentimento dele.

Pronto! Não estava entendendo mais nada. O quê foi que eu fiz de errado? Se a resposta estava errada, era só dar zero e corrigir.

Fui para a sala do Diretor e tive que aguardar o final da aula sentado na ante sala, de cabeça baixa, ainda sem saber o motivo daquela reação toda.

Eu não sabia explicar e ele nem quis saber o motivo. “Se o Ivanir expulsou de sala foi grave! Advertência!”

Depois da advertência, da média perdida, pois era o exercício de final de bimestre, da poeira baixar, meu colega veio me agradecer pois mantive o segredo de ter copiado dele a resposta, evitando problemas para ele também.

Aí é que tudo foi se esclarecer. Até o momento ninguém havia me explicado o porquê daquilo tudo. Eu, um aluno exemplar, expulso de sala e perdendo uma média em uma das minhas matérias preferidas, sem a menor chance de me explicar. Mesmo porquê eu nem tinha uma explicação a dar.

Naquela época, quando quebrei o braço, passava na Rede Globo um programa de humor chamado Chico City. Era um programa criado pelo espetacular Chico Anysio, que tinha como tema uma cidade fictícia, com diversos personagens hilários e histórias igualmente hilariantes.

Mas onde é que entra a minha expulsão nisso?

Bem! Acho que só eu não havia assistido o danado do programa e por isso a “ficha demorou a cair”.

O prefeito de Chico City, um corrupto interpretado por Chico Anysio, era ninguém mais e ninguém menos que o Excelentíssimo senhor Valfrido Canavieira.

Até hoje não sei quem foi o Governador da Gerais no período das Capitanias Hereditárias.

plp1064

plpdezmeiaquatro
Enviado por plpdezmeiaquatro em 03/03/2018
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