Remorso Infantil (O Funeral do Pardal)

Entre os diversos amigos de infância que tenho, “tatuados” na lembrança, não posso deixar de mencionar o Alessandro, descrevendo-o e relatando uma das principais passagens que ocorreu conosco, entre as idas e vindas dele em minha casa e vice-versa.

Alessandro, pessoa rara para a época, não pela inteligência ou por alguma aptidão, mas por ser canhoto, o quê quase não se via.

Era bom de bola, mas isso eu também era, e fazíamos uma bela dupla. Nessa época, juntávamos uma turma e qualquer lote vago se transformava em um campinho de terra, de primeira qualidade, tendo, às vezes, até uns pedaços de grama (mato).

E não era só futebol. Chegamos a limpar um lote e transformá-lo em uma quadra de vôlei de terra, com rede e toda a marcação necessária. O sucesso, durante as férias e finais de semana, foi delicioso e parecia não ter fim, até que alguns adolescentes (os mais velhos), acabaram por tomar conta e ocupar quase todos os horários do dia.

Tudo bem! Tínhamos outros lotes e outros campinhos, além de ter como preferência o futebol, seguido das inúmeras brincadeiras que deixávamos para a noite, ou quando ninguém tinha bola.

As brincadeiras quê me lembro: - Queimada, Rei da Rua, Rouba Bandeira, Chicotinho Queimado (essa, poucos conhecem), “Benti Altas” (mais conhecida como Bete), Polícia Ladrão, Pera/Uva/Maçã/Salada de Fruta (quase proibida pelos pais), Pegadô, e mais algumas que jogávamos também nas casas, com papéis ou tabuleiros.

Pensando bem, com essas lembranças emergindo, posso dizer que me orgulho da infância que tive e me esforço para transmitir um pouco disso para meus filhotes, na árdua tarefa de dividir o tempo com os jogos de computador.

Voltando ao meu amigo Alessandro, costumávamos também ter nossos momentos de dupla, sem a turma ou qualquer outro que pudesse interferir em nossas escolhas, por essa ou aquela brincadeira.

Íamos para a casa dele, ver sessão da tarde, o quê era para mim um exercício de observação e de curiosidade, devido a uma característica única de toda a sua família.

Desde cedo tenho o espírito observador e crítico, sendo bastante detalhista. Na maioria das vezes, nada que fuja do normal escapa dos meus olhos. Assistir filmes ou novelas comigo chega a ser chato.

A família do Alessandro assitia a TV de uma maneira imensamente peculiar, ficando todos sentados de lado, olhando para a tela com o canto dos olhos, incluindo o pai, a mãe, a irmã e, poderia jurar, que o cachorrinho também.

Nunca perguntei o por quê disso, como também nunca encontrei um motivo para tal, só sei que percebi, a ponto de comentar com a minha mãe e de provocar nela gargalhadas, gerando comentários engraçados a respeito.

Às vezes, andávamos para lá e para cá, sem um objetivo definido, apenas procurando o quê fazer e nos aventurando, vez ou outra, em uma rua mais distante, conversando muito e falando sobre diversos assuntos e de como era a nossa visão das pessoas e das coisas.

Nos identificávamos nas opiniões e gostos.

Falávamos de sexo, dentro dos nossos limites de “Exímios Especialistas”, completamente leigos no assunto. Era a malícia da inocência, a se deliciar com comentários e, algumas vezes, com algumas imagens de revistas e da TV.

Nosso foco e modelo de menina eram as gêmeas, Cíntia e Adriana, que eram as ricas da rua e que pareciam intocáveis, principalmente porque fomos flagrados, conversando algumas bobagens, perto da mãe delas. Lembro-me que ela caiu na gargalhada, mas ficamos mortos de vergonha e nem tínhamos mais coragem de passar na calçada da “mansão” que moravam.

Entre os mais velhos tinha os filhos do Juiz, que moravam na outra mansão, da esquina oposta, que judiavam dos menores (nós, inclusive). Lembro-me perfeitamente que um dos dois, ao exibir pela rua sua espingarda de chumbinho deu um tiro em mim. O tiro não foi acidental e pegou bem no osso da minha clavícula, ardendo muito durante uma semana. Mas era o filho do juiz, então….

Porém, foram eles que nos proporcionaram a nossa primeira pseudo experiência sexual, ao espalharem o quê haviam feito com uma das meninas, mais velha, do quarteirão de cima. Sabedores dos detalhes tivemos a ideia de chantageá-la, exigindo favores íntimos e ela, muito esperta, nos levou para uma casa em construção e permitiu uns beijos, abraços, apalpes e amassos. Foi o máximo, de coisa nenhuma! Jurávamos ter feito “aquilo” com ela, mas só fui descobrir como realmente era “aquilo” bem mais tarde.

Vamos voltar ao quintal da casa do Alessandro, onde exercitávamos a imaginação, criando exércitos, duendes, Forte Apache e inúmeras outras brincadeiras, que cabiam naquele espaço, murado de todos os lados, com jardim, pedras e tijolos. Tinha matéria-prima para um século de atividades lúdicas.

Não tínhamos maldade e nem malícia. Nossos objetivos e intenções sempre nortearam ao divertimento e à alegria. Uma infantilidade gostosa de se ter vivido e de se lembrar, mesmo após tanto tempo.

Porém, um acontecimento marcou de forma negativa, manchando, por um longo tempo nossa consciência e interferindo nessa amizade sincera e gostosa.

Estávamos em uma brincadeira, a qual nem me recordo mais, quando um pardal, um simples, inocente e indefeso pardal, pousou em uma pedra, bem no meio do quintal. Eu estava próximo a um dos muros e o Alessandro estava perto da varanda da casa, ambos à mesma distância da minúscula ave. Tivemos a mesma ideia estúpida, no mesmo instante. Uma péssima ideia!

Me abaixei, ele também, pegamos juntos uma pedra cada um e atiramos na pobre criatura, no mesmo instante.

Até hoje tenho minhas dúvidas sobre qual pedra teria atingido o pardalzinho.

Foi fatal!

Pardal para um lado, algumas penas para o outro e, equidistantes, duas crianças com os olhares marejados, no automático, perplexos, sem a menor reação ou vontade.

Pela aparência, tenho a convicção de que o Alessandro sentiu o mesmo terror, remorso e asco que senti.

A ideia idiota, não vinha acompanhada de instruções, prevenindo quanto à possibilidade, mínima, de acertar a criatura.

Na mente e no coração uma vontade imensa de voltar o tempo e desfazer aquele ato, impensado, vil e inconsequente.

É lógico que esses sentimentos só pude identificar mais tarde, mas aquele momento foi de terror.

Por alguns segundos, que duraram séculos, ficamos inertes, olhando, ora para a ave, que já não era mais, ora um para o outro a buscar socorro e perdão.

Muito interessante ao recordar com detalhes o ocorrido, foi constatar que nenhum dos dois buscou culpar um ao outro, mas nos acusávamos intimamente. Eu dizia que tinha sido a minha pedra que atingira o pobre coitado e, ainda em um início de choro, Alessandro jurava ter sido a pedra dele.

Tento imaginar como me sentiria hoje em igual situação, mas mal consigo relatar completamente o que senti.

A poeira (e as penas) foram abaixando, conseguimos balbuciar alguns sons parecidos com palavras de arrependimento. Eu disse: “-Fui eu!” E o Alessandro repetiu o mesmo, quase ao mesmo tempo.

Iniciamos uma caminhada lenta até o local onde jazia o ser agredido e tenho a certeza que o meu amigo também, assim como eu, andava e rezava para que tivesse sido uma pedrada só de raspão, e que pudéssemos reanimar a criatura de alguma maneira.

Nada de nada! Aqui jaz! Fim! Morreu mesmo!

Completamente sem vida, molinho, com o pescoço caindo de lado, ao tentar erguê-lo, com as mãos trêmulas.

Ali fizemos e ali pagamos, com choro, soluços e muito arrependimento.

O fato, acredito eu, é que nunca, em nenhum lugar da face deste planeta, um pardal teve um funeral tão chorado e rezado, como o daquele bichinho. Fizemos o seu enterro, com caixão, cruz, reza e duas carpideiras, no caso, “carpideiros”.

Fato também é que a nossa amizade esfriou. Passamos a nos encontrar menos, jogar menos futebol juntos, fazer menos campinhos, nada de ver TV, com as cadeiras de lado e, principalmente, nem de brincadeira, me atrevi a jogar uma pedra em qualquer criaturinha viva e indefesa. Única consequência positiva do ocorrido.

O tempo passou e o Alessandro sumiu. Deve ter se mudado com todo a sua família, a TV, o cachorrinho, as cadeiras e poltronas.

Apenas guardo essa triste lembrança de ter um dia provocado e feito o funeral de um pardal.

plp1064

plpdezmeiaquatro
Enviado por plpdezmeiaquatro em 26/02/2018
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