A lama

(Do meu romance “Cem dias sem laços” – Conversa entre os sócios jornalistas Alberto e André Luís)

O que valem algumas décadas? _ Pense bem, cara. O país está coberto de lama. E os que estão nela atolados encontram alívio quando um mundão de pessoas é atingida por uma lama literal, que mata pessoas e animais e destrói os parcos bens de moradores de cidades inteiras. A mídia esquece os promotores da lameira e se ocupa das vítimas, explora as lágrimas de cada uma, invadem a sua alma dolorida e sem esperanças de um país justo. Nem apura de verdade as reais causas da chamada tragédia. Tem mula por aí chamando a coisa de fatalidade, quando qualquer pessoa com um mínimo de inteligência sabe que o Estado, que agora se passa por bom samaritano, tem a sua parcela de culpa. É claro que, se é que houve uma fiscalização, ela foi ineficaz. De qualquer forma, uma falha muito feia.

De novo latinha aos lábios.

_ E então? Qual é a grande ideia?

_ Cara, o leque é enorme em se tratando de lama. Vou te dar um exemplo. Você sabe do fechamento dos bordéis. Eu que era frequentador de bordéis e discriminado por isso agora basta vir para a praça principal da cidade ou qualquer outra praça, para me sentir num bordel, sem preconceito e sem culpa. Não há diferença, estou aqui na praça numa tarde de segunda feira e não há diferença das madrugadas de domingo que já passei nos chamados antros de perdição. Eu acho o maior barato o convívio com mulheres desbocadas, as hoje chamadas profissionais do sexo, curto um carro com um potente equipamento de som de porta malas aberto às três da manhã a qualquer dia da semana, em qualquer ponto da cidade tocando um funk com uma letra que faz um show do Ari Toledo parecer uma aula de catecismo e isso não ser caracterizado como perturbação da ordem. Mas a maioria dos nossos leitores não pensam como eu. Logo a metáfora de que a lama acumulada nos bordéis invadiu as cidades fará enorme sentido para eles. Ainda tem brasileiros que querem dormir cedo para trabalhar no dia seguinte. Acredita nisso?

_ Está bom, Alberto. Já entendi onde quer chegar com esse discurso. Mas não estou convencido de que não está negligenciando o seu trabalho pra se embebedar na zona indiferente de onde ela esteja instalada.

_ Preste atenção, André. Empregando a metáfora da lama represada que rompeu a barragem e invadiu as cidades você pode falar de qualquer tema hoje. Sociedade, Política, Religião, as mais diversas instituições... sei lá, tudo que você pensar está sendo coberto de lama. O povo brasileiro tá no barro.

_ Alberto, você está com depressão, cara. Deve ter tido uma desilusão amorosa ou coisa assim. Vá se tratar. O Brasil está cheio de coisa bacana, de gente honesta, trabalhadora. Existem instituições sérias. Posso citar centenas de políticos trabalhando para o bem, instituições lutando para assistir os deserdados da nação...

_ Ah! Relaxa André. Amanhã de manhã estarei na redação e a edição desta semana será a melhor da história da Voz do Oeste.

_ Estou contando com isso.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 13/09/2017
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