Uma noite daquelas

Senta-se ao lado dele e se deixa levar pelas palavras. Fazia tempo que precisava desabafar, então solta tudo que estava engasgado.
- Estou cansada de ser deixada pra trás, sabe, cara? Eu sou tão só que tô até culpando as estrelas, igual naquele livro... que não tem nada e nem ninguém para culpar além das estrelas, porque a vida é assim, simplesmente. E eu não quero pensar nisso, porque culpar alguma coisa ou as outras pessoas é chato, ninguém tem culpa.
Ele olha para ela sem dizer nada. Os olhares se penetram como sempre. As pupilas se dilatam de desejo, aquela ideia do toque que libera uma porrada de dopamina, os lábios juntos, as mágoas que serão esquecidas logo mais... Ela acende um cigarro com o isqueiro laranja, porque laranja é sua cor preferida, mesmo combinando mais com preto que tem a ver com insegurança e tal.
- Eu tô ficando maluca, eu acho. Você já se sentiu assim alguma vez, por acaso?,e ele a responde, finalmente.
- Já sim, quase todos os dias. Às vezes fico lendo aquele conto sobre como seria esquecer o que é ser. Gosto de pensar nisso, mas se eu tivesse essa escolha... não sei se...
- Eu não acredito que está me falando isso. Esquecer nossa essência é como vegetar.
- Desculpe por agir como eu mesmo.
- Ei, as coisas não são assim, temos que viver o que há de ser.

Os dois voltam a se olhar, sentem aquela coisa de ficar sem graça, ou medo de dizer algo e ser mal interpretado. Se confiassem mais em si mesmos, com certeza não teriam esse problema. Está frio e a rua está deserta. A lua brilha intensamente bem no meio do céu, o cigarro chega ao fim, é jogado no chão e pisoteado. As garrafas de cerveja já estão pela metade. Mais uns goles, mais uns pensamentos e umas quebras de silêncio.
- Você quer ir pra minha casa?, pergunta a ele, pois é a que sempre acaba cedendo.
- Okay, vamos.
Ele assente. 

E, como de praxe, os amigos que se completam em noites como essa, se vão. Ela com as frustrações particulares, e ele, com o habitual infortúnio de ter nascido.
 
Maira Barbin
Enviado por Maira Barbin em 02/09/2017
Reeditado em 02/09/2017
Código do texto: T6102772
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