O Acampamento de Nila

A noite estava começando quando chegamos ao local onde pernoitaríamos. A lua ainda não brilhava, a temperatura estava agradável, o meu Garmin marcava dezoito graus. Era uma sexta-feira da última semana do inverno no Rio de Janeiro.

— Chegamos pessoal! Vamos passar a noite aqui. A primeira coisa a fazer é pegar a lanterna de cabeça e acendê-la, em poucos minutos estará tudo escuro. — eu disse enquanto ajudava Nila a desequipar o seu material.

— Querido, antes de montar as barracas, por favor, prepare o kit do fogareiro, pois como sempre, não consigo adaptar o reservatório de gás. Quero preparar um lanche pra Nila. — disse Nicole.

— Vô Lino, a minha lanterna não quer acender.

— Ok, já vou olhar, Nila. Estou terminando de montar o fogareiro para a sua avó. Ela vai fazer o nosso chocolate quente.

Tão logo terminei de enroscar o reservatório de gás, fui atender à minha neta, pois ela estava, de pé, estática, junto à avó, provavelmente com medo dos pequenos insetos que voavam no lusco-fusco daquele fim de tarde.

— Nila, quem colocou as pilhas na sua lanterna? Foi você ou o seu pai? — eu perguntei ao constatar que a posição estava correta. Apenas uma pilha havia desencaixado do lado negativo, situação bastante comum de acontecer nesses tipos de lanterna.

— Eu coloquei. — ela respondeu demonstrando confiança no que tinha feito. E continuou falando enquanto eu ajeitava a lanterna na sua cabeça, tentando colocá-la por cima da touca que estava usando.

— Também arrumei o meu material na mochila e vesti a camisa de montanha que o senhor me deu. — ela disse no mesmo tom de voz

— Muito bom! Nila, você está de parabéns — procurando incentivá-la na sua primeira aventura, eu disse. E continuei elogiando:

— Conheço alguns adultos que não sabem as posições corretas das pilhas. Também gostei da sua caminhada. Do seu quarto até aqui, você carregou sua mochila e não pediu ajuda. Isso é muito bom.

— Eu treinei com a minha avó Cole. — assim ela chamava Nicole desde seus quinze meses quando articulou as primeiras palavras.

Apesar da nossa experiência em trekking, eu e minha esposa estávamos, de certa forma, preocupados. Era a primeira vez na vida que Nila dormiria em uma barraca. Nada poderia dar errado.

**

A ideia do acampamento havia surgido há três ou quatro meses, quando Nila estava passando uns dias conosco, pois o meu filho e a minha nora encontravam-se numa viagem a serviço. Se não me falha a memória, em Recife.

No sábado daquela semana, levantei cedo e coloquei diversos itens do meu material de montanhismo para arejar na varanda do apartamento. Por volta das nove horas, Nicole e Nila, cada uma com a sua bandeja do desjejum, sentaram à mesa praticamente ao meu lado.

Eu estava terminando de montar a barraca tipo iglu, o que despertou uma enorme curiosidade na minha neta.

— Vô, esta cabana é pra gente brincar? Posso tomar o café com a minha avó lá dentro? — ela, com os olhinhos brilhando e já em pé ao meu lado, perguntou.

— Nila, você tem a sua cabana de índio, lembra? Está no seu armário. Quer que vovô arme pra você brincar? — eu respondi.

Ela nada disse e com um semblante de tristeza, típico de criança quando recebe um não dos pais, voltou para mesa e sentou-se ao lado da avó.

Percebendo a desilusão de Nila com minha resposta, Nicole rapidamente tentou contornar a situação e disse:

— Querida, o vovô vai deixar você brincar na barraca sim. Mas tem que esperar ele terminar de arrumar o material. Depois nós vamos entrar no iglu. Agora tome o seu café, está bem?

— Tá bom!

—Vó, eu não tomo café! — Nila exclamou.

— Eu sei. Tome o seu leite com aveia que a vovó preparou.

A ida ao playground, que tínhamos combinado na noite anterior, não aconteceu. Como também não fomos almoçar no shopping, a brincadeira na barraca se estendeu até as duas da tarde. O almoço, ainda me lembro, foi Nila quem escolheu. Como sempre, ela quis peixe. Então, eu telefonei e pedi filé de tilápia grelhado com arroz branco, que foi fornecido pelo “delivery” do restaurante “Gula Gula” e por mim servido dentro do nosso iglu montado na varanda.

Nós, eu e Nicole, só conseguimos interromper as atividades na varanda depois de uma longa conversa, na qual prometemos à Nila que num outro dia faríamos um acampamento de verdade.

No instante seguinte em que concordei e prometi à minha neta que a levaria para dormir na barraca, foi que me dei conta de que o mais difícil da jornada seria conseguir a autorização dos pais dela.

Nos dias que se seguiram, duas ou três vezes por semana, quando o meu filho nos ligava pelo vídeo do WhatsApp, Nila aparecia na tela do smartphone e repetia:

— Vó, quando vamos à montanha?

— Oi querida! Não vai demorar muito, daqui a uns dias o seu avô nos levará. Ele está preparando o material.

Passaram-se mais três semanas até que meu filho e minha nora acabaram concordando com a participação de Nila na nossa aventura.

Realmente não foi fácil convencê-los, eles só permitiram a ida da minha neta quando eu disse onde pernoitaríamos.

Dez dias depois da autorização dos pais, fomos acampar.

**

Quando terminei de montar as duas barracas já não havia claridade do dia. Nila e Nicole, com as lanternas na cabeça, brincavam com as sombras das mãos que refletia na escuridão.

— Por favor, Nila e Nicole, vamos arrumar o material nos iglus.

Conforme combinamos, montei-os bem próximos um do outro. Vocês duas ficarão no cinza e eu ficarei no azul.

— Vô, a minha cor preferida é “pink” e depois “blue”. Eu e a vovó podemos morar na barraca azul?

— Ok! Então vamos trocar. — respondi já colocando as mochilas nas barracas, pois naquele instante eu estava preocupado com o som abafado de explosão que havia ouvido no momento da nossa chegada e que não tive dúvida, era de um trovão. Apesar de a previsão ter indicado tempo bom para aquela sexta-feira, uma chuva poderia cair a qualquer momento. Uma coisa é acampar com o céu limpo e estrelado outra, bem diferente, é com mau tempo.

Depois de todo o material arrumado, eu e Nicole esticamos ao máximo os tirantes das barracas, deixando-as prontas para nos proteger da chuva.

— Agora vou preparar o nosso jantar. Quero saber quem vai me ajudar? — eu perguntei olhando diretamente à minha neta que estava sentada no interior da barraca, dando os primeiros sinais de cansaço e de sono.

— Eu! Vamos fazer o macarrão instantâneo mais gostoso do mundo? O macarrão de montanha com almôndegas de frango e molho à bolonhesa. — Nila respondeu e, dando a mão à Nicole, disse. — Vem vó, vamos fazer o jantar com o vovô.

— Isso, querida! Acertou o cardápio. — eu respondi no mesmo tom de voz.

Nila, que adorava ouvir as nossas histórias sobre trilhas e escaladas, sabia de cor o menu básico das refeições e os detalhes de outras atividades que realizávamos em nossas aventuras.

Menos de vinte minutos depois, a nossa refeição estava pronta.

Eu estava sentado numa lona de camping, que forrava o chão em frente às duas barracas, e tinha ao meu lado Nicole e minha neta.

Nila era uma menina linda e muito inteligente para os seus quatro anos. Tinha os olhos castanhos aveludados e, como usava costumeiramente, tinha o cabelo dividido em duas tranças leves.

Confesso que naquele dia participei de um dos melhores jantares da minha vida.

O macarrão instantâneo, que era o melhor do mundo, naquela noite estava mais gostoso ainda. O suco de uva, servido por minha esposa em três canecas de plástico, tinha o sabor tão bom quanto o do vinho chileno “Bodegas Re Nace”.

A noite estava muito escura, as estrelas e a lua não brilhavam. Eu já não tinha dúvida. Aquelas nuvens grossas que apareceram à tarde anunciavam chuva para a madrugada.

Tão logo terminamos o jantar, Nila que havia adorado e comido as quatro almôndegas que eu tinha colocado em seu prato, mas não tinha nem tocado no macarrão, perguntou:

— Vô, agora é a hora do café solúvel mais saboroso que existe ou de ouvir o silêncio das montanhas?

— Primeiro, eu e sua avó vamos limpar e arrumar a panela e os pratos. Em seguida, vamos curtir o silêncio, depois vem o café, o banho de gato e por último dormir no saco. Lembra? Foi assim que combinamos.

Nila, apesar da pouca idade, como Nicole e eu prevíamos, aproveitava intensamente cada instante do acampamento. Quando ficamos, por quase cinco minutos, quietos, de mãos dadas, sentados ao ar livre, ela, vez por outra, dizia baixinho: “Vô, ainda não escutei a fauna”.

A minha neta, como as pessoas do meu convívio, já deveria ter me ouvido falar diversas vezes que o silêncio da montanha é um silêncio diferente. É atravessado, vez por outra, pelos sons característicos da fauna e da flora. É algo fácil de perceber quando se está lá, mas impossível de se descrever.

Durante o café solúvel, que Nila só provou um gole da caneca da avó, pois preferiu o seu leite com aveia, conversamos bastante sobre a viagem que ela faria em breve junto com os pais para Lima, no Peru.

Nicole tentava explicar à neta os motivos que a impediam de morar com ela em Miraflores, bairro de Lima, onde Marcos, meu filho, iria trabalhar e residir junto com a família por cinco anos.

— A vovó não pode morar lá com você, mas prometo que irei te visitar muitas vezes. — Nicole, abraçada com Nila, disse carinhosamente.

Enquanto eu preparava o material para o nosso desjejum da manhã seguinte, as duas já estavam dentro da barraca com o zíper da porta de entrada fechado. Nicole tentava ajudar Nila em sua higienização, mas ela não permitia. Aparentemente a minha neta estava se divertindo com o banho de gato. Sozinha se limpava da cabeça aos pés com lenços umedecidos. Em poucos minutos, gastou todo o pacote que a avó tinha levado especialmente para ela.

Antes de me recolher, chequei mais uma vez a amarração das barracas e as condições de dreno do terreno, pois o meu Garmin indicava queda brusca na temperatura e na pressão atmosférica. O alarme de tempestade não cessava. A chuva viria a qualquer momento.

Quando fui me despedir de Nicole e de Nila, ouvimos um trovão e eu, que estava agachado do lado de fora em frente à barraca, senti os primeiros pingos de chuva.

– Querido, pegue suas coisas e venha dormir com a gente – propôs Nicole com um semblante tranquilo.

Em verdade eu percebia a preocupação dela com o temporal que estava chegando

— Isso, vô! Fica aqui.

Avaliei a situação, o Garmin continuava indicando queda brusca na pressão, o que significava chuva abundante e vento forte de sul a sudoeste. Então concordei com a sugestão de Nicole.

— Tudo bem! Dormiremos todos no iglu azul.

— Querida, primeiro desenrolarei o saco de dormir duplo para você e sua neta. Ok?

Nila, com o rostinho de que não havia entendido, puxou a sua mochila da Minnie, que estava no fundo da barraca, e, enquanto pegava um saco de tecido, desses utilizados para embalagem de sapatos e roupas, disse.

— Eu vou dormir no meu, vô. Está aqui na mochila. Eu peguei na gaveta da mamãe.

Eu nada comentei.

— Nila, venha deitar aqui ao lado da vovó, pode trazer o seu saco de dormir.

Alguns minutos mais tarde, com a cabeça apoiada no travesseiro inflável, escutei o barulho ensurdecedor da chuva nas árvores. Desliguei a lanterna e fiz a pergunta já bastante conhecida da minha neta: “Quem é a estrelinha do vovô”?

“Eu, eu, eu, euuuu!”, ela respondeu.

Para não transparecer a minha preocupação com o mau tempo, disse tranquilamente: “Agora vamos dormir”.

Nicole, não chegou a concluir a segunda história que contava, quando percebeu que a neta já estava dormindo. Pouco tempo depois, a minha esposa também havia pegado no sono.

O barulho da chuva não esmorecia, o temporal continuava forte. Eu falava comigo mesmo: “Se o vento entrar forte do sul, o piso ficará encharcado.

E isso pode se tornar perigoso para Nila”.

Então, silenciosamente, saí do iglu, acendi a lanterna de cabeça e desviando dos móveis da varanda que estavam enfileirados juntos ao parapeito, fechei todas as placas da cortina de vidro e voltei para barraca.

Logo depois, num silêncio tranquilizador, dormi...

**

– Lino, acorde! O Marcos acabou de ligar. Ele não vai subir. Ele estacionou o carro na garagem do piso “S2” e pediu para descermos. Vamos! Nila vai chegar de Londres por volta das vinte horas – Nicole chamou-me, gentilmente, tocando o meu rosto.

– Querido, você não tomou o suco que lhe trouxe há dez minutos. Não pode sentar que dorme.

Ainda estava sonolento e encucado por ter sonhado por dois dias seguidos com o acampamento na varanda que eu e Nicole tínhamos prometido à Nila. Fizemos aquela promessa quando ela era uma menininha de quatro anos. Entretanto, por diversos motivos, aquilo nunca havia acontecido. Levantei-me apressadamente, lavei o rosto no banheiro do início do corredor dos quartos e alcancei minha esposa, que já estava caminhando em direção à porta de saída do apartamento.

Minutos mais tarde, estava sentado no banco traseiro do carro e seguindo para o Aeroporto do Galeão. Foi quando comentei em voz baixa com Nicole sobre o sonho que tivera, inclusive ressaltando o fato de sua repetição.

Após ouvir atenciosamente o que eu havia lhe dito, ela ficou calada por alguns segundos. Então disse num tom brando, com uma voz murmurante:

– Lino, ao longo dos últimos vinte anos, dezenas ou centenas de vezes, nós conversamos sobre esse assunto. No contexto geral da vida, um acampamento não é tão importante, mas o prometemos à nossa neta. E por mais simples que isto pareça, não conseguimos realizá-lo nem mesmo na varanda, nem na Pedra do Sino, local que ela sempre quis conhecer. Também não podemos esquecer que a estada do Marcos com a família no Peru, inicialmente prevista para cinco anos, transformou-se em quase dez. Nila saiu do Brasil uma criança e voltou uma linda jovem.

Naquele momento eu verifiquei no celular uma informação e respondi ao meu filho que o voo BA0249, da British Airways, estava no horário, com previsão de pouso às vinte horas e dez minutos.

Ao terminar de dar a aquela informação, Nicole voltou a falar. Ou melhor, cochichar para evitar que o assunto, de certo modo, apenas do nosso interesse, passasse a ser discutido pelo nosso filho e nora.

– Mesmo agora, tantos anos mais tarde, vez por outra você e eu padecemos com esse assunto. Pernoitar nas montanhas para nós sempre foi uma atividade comum, mas não conseguimos realizar um único trekking com a nossa neta. Então considero natural o seu sonho. Isto porque há cerca de um mês não se fala de outra coisa aqui em casa, a não ser da chegada de Nila.

Depois de dois anos no curso “Writing a Novel” da Faber Academy em Londres, Nila estava voltando ao Rio, junto com seu namorado inglês. Iriam passar trinta dias de férias naquela cidade.

Nila desde criança se destacava pela sua beleza e simpatia. Aos vinte e cinco anos tornara-se uma mulher maravilhosa. Já naquela idade escrevia artigos literários em espanhol e inglês e os publicava em revistas especializadas na Europa. Ela possuía luz própria e nas conversas sempre se destacava pelo seu carisma e conhecimento, não só sobre os clássicos da literatura mundial, mas também sobre as obras contemporâneas premiadas.

Tão logo Simon, o namorado de minha neta, terminou de agradecer a recepção, Marcos nos convidou para jantar no Frontera de Ipanema e depois para tomarmos um café em seu apartamento.

Seguimos todos no Chevrolet Spin do meu filho. Nila e o namorado sentaram-se na segunda fila de bancos, eu e Nicole na terceira, de modo que a conversa, que tinha como foco o casal de jovens, fluía sem atropelos, visto que ora eles olhavam para a frente e atendiam aos pais, ora voltavam-se para falarem conosco no banco de trás.

Apesar do contato semanal que fazíamos por meio do vídeo do WhatsApp, a conversa não cessou um segundo durante a viagem do Galeão à rua Visconde de Pirajá, em Ipanema.

À mesa do restaurante, depois que todos se serviram no buffet, brindamos à felicidade dos namorados e ao sucesso dos dois no curso que faziam na Inglaterra. É que havíamos ficado sabendo que eles eram colegas na Faber Academy e que o pai de Simon Yates era um escritor de sucesso na Inglaterra, já tendo dois de seus romances classificados entre os dez primeiros no “Booker Prize” no ano anterior.

Nila estava conversando com avó sobre a possibilidade de Nicole passar uns dias em Londres, quando de repente olhou pra mim e, com um brilho lindo nos olhos, disse:

– Vô, tem uma coisa sobre o Simon que eu ainda não falei, mas que o senhor vai gostar de saber.

– Ah, é! Diga.

– Simon escala e faz caminhadas em montanhas regularmente. Contei para ele algumas de suas aventuras. Além disso, Simon ficou abismado em saber que a vovó participa das trilhas junto com o senhor.

– Que maravilha! Então, além de literatura seu namorado gosta de trekking – eu falei em inglês, enquanto olhava para Yates.

Naquela noite, durante o nosso papo, o namorado de Nila contou-me sobre suas conquistas nos Alpes e a sua vontade de escalar nos picos Andinos, em especial os localizados na Bolívia.

Perguntou-me se eu conhecia ou já havia subido o Siula Grande, um desafio de seis mil e trezentos metros de altitude.

Quando eu estava lhe falando que o meu recorde de altitude tinha sido o cume do Vulcão Chimborazo no Equador, a seis mil duzentos e sessenta e sete metros, lembrei de que Siula Grande era a montanha no Peru, na qual o alpinista Joe Simpson havia sofrido um grave acidente e mais tarde registrara o ocorrido no livro “Tocando no Vazio”.

Falamos um pouco sobre Simpson, o alpinista, e Simpson, o escritor.

No momento final da nossa conversa, Yates quis saber em quanto tempo se chegaria ao Parque Nacional da Serra dos Órgãos.

Assim que terminei de explicar, resumidamente, no Waze do meu smartphone, o percurso da Barra da Tijuca até a entrada do Parque em Teresópolis, num tom de brincadeira, eu disse:

“Se você pretende escalar o Dedo de Deus ou a Agulha do Diabo, estou pronto para guiá-lo”.

Interrompendo-me, ele disse com um leve sorriso no rosto:

“Adoraria escalar um desses picos, mas a minha curiosidade é devido ao fato de Nila ter comentado comigo, duas ou três vezes, que tinha vontade de conhecer a Pedra do Sino. Segundo ela, local onde o senhor treinava quando ela era criança”.

***

Na manhã do dia seguinte, como costumeiramente acontecia, levantei-me cedo, junto com o amanhecer. Para não incomodar minha esposa que dormia até um pouco mais tarde, saí do quarto e caminhei lentamente em direção à sala.

Parei na porta da varanda, momentaneamente atraído pelo modo como a luz do sol infiltrava pela parte de cima do vidro do parapeito e inundava aquele espaço. Havia uma luminosidade diferente, amarelada e límpida, tal como às vezes descritas nos livros.

Naquele momento questionei-me:

“Como eu, que nunca tinha sido um mero espectador dos acontecimentos, pelo contrário, sempre busquei fazer acontecer, não tinha realizado um acampamento para minha neta naquela varanda”.

Um pouco mais tarde, enquanto tomávamos o nosso habitual cafezinho, em pé na cozinha, antes de descermos para uma caminhada no calçadão, comentei com Nicole sobre o meu papo que tivera com Yates, destacando que ele sabia dos nossos trekkings.

A minha esposa também se admirou de Nila ter tocado no assunto com o namorado tantos anos depois.

Mais tarde, durante a caminhada, com o visual da Pedra da Gávea à minha frente, lembrei-me de alguns fatos ocorridos anos atrás e senti saudades das façanhas nas montanhas.

Havia seis anos que eu tinha realizado a última aventura com Nicole. Na época eu estava chegando aos setenta e sete anos e Nicole tinha então setenta e três.

Era julho, e caminhamos por três dias seguidos na Chapada dos Veadeiros, em Goiás, nas trilhas do Vale da Lua e da Cachoeira dos Cristais. O inverno ameno daquele ano tornava o clima convidativo às atividades outdoor. Em seguida veio-me ao pensamento:

“Por que não convidar o jovem casal para subirmos até a Pedra do Sino? Sempre agi com o entendimento de que a idade, por si só, não deve ser um limitador. Parei com as caminhadas, não devido ao meu envelhecimento, mas sim por causa da hérnia de disco. Mas agora, depois de tanto tempo de tratamento e sem realizar esforço, sinto-me bem. Não tenho mais dores nas pernas. Mesmo aos oitenta e três anos, acho que, sem carregar peso, consigo vencer os treze quilômetros da trilha”.

Quando paramos para um alongamento na academia a céu aberto, de frente para o mar, na Praia do Pepê, eu olhei diretamente nos olhos da minha esposa e disse:

– Nicole, que tal subirmos até a Pedra do Sino na próxima semana?

A pergunta, feita de repente e sem uma introdução no assunto, a deixou muda por alguns segundos, tamanha fora a surpresa para ela.

– Devo ter ouvido mal! Querido, poderia repetir?

– Estou propondo, ou melhor, te convidando para passarmos uma noite na Serra dos Órgãos. Se você topar, nós chamaremos a Nila e o Yates. O que você acha?

Após refletir, não mais do que vinte ou trinta segundos, ela respondeu:

– Em primeiro lugar, não sei se ainda temos condições físicas para essa aventura. Em segundo, acho que um casal de vinte e poucos anos não gostaria de acampar com os avós. Mas prometo que vou pensar no assunto. Agora vamos terminar a caminhada. Este sábado será movimentado. Ficamos de encontrar com o Marcos, no Camarada Camarão do Rio Design para um almoço em família por volta de meio dia e quinze. Tenho dentista daqui a pouco, às nove e trinta, e ao final da tarde, Daniele, a minha amiga do pilates, ficou de aparecer para um chá.

Quando nos encontramos, na saída do consultório do Doutor Paulo, o dentista que nos atendia há anos, Nicole, depois de muitas perguntas sobre como eu planejava realizar o trekking, concordou em ir, com a condição de que caminharíamos sem mochilas. O nosso material seria levado por pessoas contratadas para tal, como ocorre nos Andes peruanos com os “porteadores” e no Himalaia com os “sherpas”.

Ao final do almoço, no Rio Design, enquanto Nila comia açaí batido com banana, sua sobremesa preferida desde criança, nós conversamos com ela sobre a possibilidade de irmos ao Sino.

Quando terminei de falar, ela não pensou duas vezes e, com aquele seu jeito de quem sabe o que está falando, respondeu:

– Adoraria, vô. Mas a resposta é não! O senhor e a vovó já fizeram essa trilha dezenas de vezes. Há bastante tempo pararam com as caminhadas nas montanhas. Nesta fase da vida, não precisam e não devem sair do conforto de casa. E a hérnia, vô? O papai conversou comigo, o senhor se esqueceu?

Nila continuou falando e, carinhosamente, argumentando com a avó os motivos que a levavam a não aceitar o esforço que nós teríamos que fazer por um simples capricho.

– Vó Cole, esse trekking não tem sentido. Depois de quase sete anos sem... – interrompendo a neta, minha esposa começou a falar.

Ela tentava fazê-la entender que não era por um capricho dela que queríamos pernoitar na Pedra do Sino.

– De jeito nenhum! Longe disso, Nila. Temos consciência de que se você e seu namorado desejarem aproveitar esses dias aqui no Rio para conhecerem a Serra dos Órgãos, o farão tranquilamente sem a nossa participação. Se há algum capricho ou outra motivação qualquer é minha e do Lino. Na realidade muito mais do seu avô do que minha.

Nicole contou sobre os meus sonhos e explicou como subiríamos a trilha.

Nila fez algumas perguntas sobre a equipe que nos acompanharia para levar o material de camping e preparar as refeições.

Depois de conversar com os pais e Yates, chegou bem próxima de mim, beijou o meu rosto e disse:

– Vovô, vamos acampar! Mas sem. Não é na varanda. Quero ir à Pedra do Sino, a nossa pedra. Lembra?

– Combinado, Nila. Com vinte anos de atraso, nós vamos dormir na barraca. Vou comprar uma nova camisa de montanha pra você. Lembra?

***

Dez dias depois

A noite estava começando quando chegamos à Pedra do Sino, local onde pernoitaríamos. A Lua já brilhava, a temperatura estava agradável, o Garmin do Alex, o chefe da equipe que nos apoiava, marcava quinze graus. Era uma sexta-feira e o inverno no Rio de Janeiro estava começando.

– Chegamos, pessoal! Vamos passar a noite aqui. A primeira coisa a fazer é pegar a lanterna de cabeça e acendê-la. Em poucos minutos estará tudo escuro – Alex disse, enquanto ajudava a minha esposa sentar-se em um tronco de árvore ali colocado para esse fim.

Quando o chefe da equipe parou de falar, Nila cochichou algo ao ouvido do namorado e disse-me:

– Vô, espere! Vou ajudá-lo a desequipar o material.

O meu material era uma pequena mochila com quatro maçãs e uma caixinha com os comprimidos que eu e Nicole tomávamos regularmente após as refeições.

Depois de todo o material arrumado, Alex, em tom de brincadeira e olhando para minha neta, disse:

– Agora vou preparar o nosso jantar. Alguém consegue adivinhar o cardápio?

– Vamos saborear o macarrão instantâneo mais gostoso do mundo! O macarrão de montanha com almôndegas de frango e molho à bolonhesa – Nila, segurando a minha mão, respondeu primeiro em português, depois em inglês.

– Isso, querida! – eu falei no mesmo tom de voz. – Você não esqueceu.

– Em seguida vamos curtir o silêncio das montanhas. Depois vem o café solúvel mais saboroso que existe, o banho de gato e, por último, dormir no saco. Lembra-se? – Nila falou num tom de voz baixo e carinhoso, com o rosto próximo ao meu.

Após o jantar, um dos melhores da minha vida, sentado na lona de camping, que forrava o chão em frente às barracas, Nila abraçou-me e disse:

– Vô Lino, obrigada por trazer-me à nossa Pedra.

Ainda abraçado à minha neta, eu, quase murmurando, perguntei-lhe:

– Quem é a estrelinha do vovô?

Ela, com a mesma entonação na voz de quando era criança, respondeu baixinho:

– Eu, eu, eu, euuuu!

Assim foi o acampamento de Nila...

Sérgio Coutinho
Enviado por Sérgio Coutinho em 14/08/2017
Reeditado em 23/01/2018
Código do texto: T6083951
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